quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

CONTO: O ARQUIVO - VICTOR GIUDICE - COM GABARITO

 CONTO: O arquivo 

                  Victor Giudice

 No fim de um ano de trabalho, João obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.

joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.

Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.

Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.

Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.

Prosseguiu a luta.

Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.

joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.

Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.

Respirou descompassado.

— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.

joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.

— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.

O coração parava.

— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.

— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?

Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.

Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.

Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.

Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios.

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.

O corpo era um monte de rugas sorridentes.

Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.

O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:

— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

joão transformou-se num arquivo de metal.

(GIUDICE, Victor. In: Setecontos setecantos. São Paulo: FTD, 1986.v.2)

Fonte: Livro – Práticas de Linguagem – v.4 – São Paulo: Editora Scipione, 2000, p.37- 41.

SOBRE O TEXTO

1.   Como devemos entender as constantes “promoções” de joão?

Devemos interpretá-las como constantes “despromoções”. Realça que toda a carga irônica do texto está centrada numa absoluta inversão de valores.

2.   Qual seria a maior de todas as “promoções”?

Após estar “desassalariado”, a promoção seguinte daria a joão o “direito” de pagar para trabalhar.

3.   Como você percebeu, o personagem principal tem seu nome grafado com inicial maiúscula apenas na primeira frase do texto; a partir daí, seu nome aparece grafado com a inicial minúscula. Por que o autor teria usado esse recurso?

O texto trabalha com o crescente coisificação de joão, a qual atinge o clímax quando o personagem transforma-se em arquivo, isto é, literalmente numa coisa, num objeto. O uso da inicial minúscula reforça a ideia de joão como um objeto, um substantivo comum. Ao perder a individualidade, a personalidade, joão perdeu também a inicial maiúscula dos nomes próprios.

4.   O narrador participa dos fatos ou se coloca como observador?

O narrador se coloca como observador (narração em terceira pessoa).

5.   O texto poderia ser narrado em primeira pessoa? Por quê?

Sim. No entanto, como o texto trabalha com o aniquilamento e a absoluta desumanização do personagem, transformar joão em personagem-narrador exigiria uma apuradíssima técnica de composição da narrativa.

6.   Quando os fatos ocorrem?

Os fatos se sucedem ao longo de 40 anos, desde a primeira “promoção” até a coisificação de joão.

7.   Onde eles ocorrem?

Fundamentalmente, no escritório onde joão trabalha; no mais, há referências vagas aos lugares onde joão morou. No entanto, embora esses lugares não sejam propriamente descritos, desempenham papel importante na construção da narrativa: à medida que ele é “promovido”, vai se mudando para lugares mais distantes, até “não ter mais problemas de moradia” (passa a viver nos campos).

8.   Que conflito há na história? Quem é o protagonista? E o antagonista? Comente.

João é o protagonista; seu chefe seria o antagonista. O conflito está presente na relação (joão x empresa, explorado x explorador, etc). O interessante é que o autor soube usar muito bem a ironia, dando ao conflito a aparência de harmonia, isto é, transformando em “promoção” a crescente exploração do trabalhador.

 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

TEXTO: TERRA: O PLANETA DA VIDA - NEIDE SIMÕES MATTOS - COM GABARITO

 Terra: o Planeta da Vida

    Até o momento, não se conhece nenhum outro lugar do universo, além da Terra, que reúna condições para a existência de vida. As atividades humanas no nosso planeta, porém, têm reduzido cada vez mais essas condições.

    O crescimento constante da população e o consequente aumento do consumo vêm causando a destruição progressiva dos recursos disponíveis e modificando rapidamente o ambiente.

    A maioria dos seres vivos só se utiliza daquilo que realmente precisa para subsistir. O homem não, pois com seus instrumentos e máquinas é capaz de multiplicar infinitamente o trabalho que seria feito por um só indivíduo. Assim, ele se apropria intensiva e rapidamente dos recursos e rompe o equilíbrio frágil e extremamente complexo da natureza. Desse modo, prejudica os demais seres vivos, ocasionando, muitas vezes, sua total destruição.

    O número de habitantes do planeta, porém, cresce sem parar, e muitas áreas produtivas da Terra já foram, e continuam sendo, ocupadas sem planejamento e exploradas de modo inadequado. Se continuarmos a agir assim, esgotando os recursos da natureza, em pouco tempo só restarão na Terra ambientes impróprios para a vida e sem possibilidade de recuperação.

    Mas uma espécie como a nossa, capaz de realizações magníficas no campo das artes, das ciências e da filosofia, deverá saber organizar-se e encontrar soluções adequadas para garantir sua permanência na Terra.

MATTOS, Neide Simões de et al. “Nós e o ambiente”. São Paulo: Scipione, 1990. p.8-9. (O Universo da Ciência).

Livro: Práticas de Linguagem - Vol. 4 - Editora Scipione: São Paulo, 2000.p.128-9.

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.bomdiaonline.com%2Fnoticia%2F30379%2Fterra-planeta-aacutegua&psig=AOvVaw0r5aWEFBknJXfuE5PybIa4&ust=1611250482479000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCLjVhYqGq-4CFQAAAAAdAAAAABAE

 Teoria & Prática

1. O texto está estruturado em cinco parágrafos. Divida-os em introdução, desenvolvimento e conclusão.

Introdução: primeiro parágrafo; desenvolvimento: segundo, terceiro e quarto parágrafos; conclusão: quinto parágrafo.

2. Qual a ideia básica apresentada no primeiro parágrafo?

    As atividades humanas  têm reduzido as condições de vida na Terra.

3. Qual o recurso utilizado pelas autoras no terceiro parágrafo?

    Há uma comparação entre o homem e os demais seres vivos. Estes só utilizam o necessário para a subsistência; aquele, não: apropria-se dos recursos naturais e rompe o equilíbrio da natureza.

4. Qual a ideia básica apresentada no último parágrafo?

    O homem, por ter a capacidade de pensar, saberá organizar-se e encontrar soluções que garantam as condições de vida na Terra.

5. Essa ideia básica apresentada no último parágrafo é coerente com o desenvolvimento e a introdução do texto? Explique sua resposta.

    Resposta pessoal.

6. O texto tem o propósito de:

a) formar uma opinião no leitor.

b) entreter o leitor.

c) informar o leitor.

d) emocionar o leitor.

 7.  Aponte as causas, segundo o texto, da contínua modificação do ambiente:

     O crescimento constante da população e o consequente aumento do consumo.

 8. “As atividades humanas no nosso planeta, porém, têm reduzido cada vez mais essas condições.”. A que condições o texto se refere?

     O texto refere-se às condições para a existência de vida.

9.  O autor do texto dialoga diretamente com o leitor na passagem:

a) “Até o momento, não se conhece nenhum outro lugar do universo […]”

b) “A maioria dos seres vivos só se utiliza daquilo que realmente precisa para subsistir.”

c) “O número de habitantes do planeta, porém, cresce sem parar, e muitas áreas produtivas […]”

d) “Se continuarmos a agir assim, esgotando os recursos da natureza […]”

10.  Pela leitura do último parágrafo do texto, podemos concluir que o autor, em relação ao tema abordado, mostra-se:

a) pessimista

b) receoso

c) esperançoso

d) indiferente

 11.  O texto foi construído em uma linguagem:

a) culta

b) informal

c) técnica

d) científica

 


CONTO: SOFIA - LUIZ VILELA - COM GABARITO

 CONTO: SOFIA

                Luiz Vilela

          Já tinham brincado muito, e agora estavam reunidos ao pé do poste, pensando numa nova coisa para fazer.

          Ainda era cedo, a noite apenas começara.

          - Vamos mexer com a Sofia? - propôs um.

          Sofia era a dona do mercadinho - a vítima predileta deles. Pintavam o sete com ela. Sofia assustava-se com nada, e isso os deliciava. Viviam assombrando-a: vozes estranhas chamando lá fora, e ninguém (estavam no telhado), caveira de mamão verde com vela acesa dentro, capas, máscaras horrorosas, o caixote de lixo que sumia, o ferro de abaixar a porta que sumia, ratos, sapos, lagartixas aparecendo de repente, minha nossa! quase desmaiava, dessa vez eu chamo o guarda, mas nunca chamava o guarda, e tudo o que fazia era ameaçar os meninos, agitando o braço gordo:

        - Eu vai contar bra seu pai, menino! Eu vai contar bra seu pai!

        Eles riam, alegres, distantes do braço dela.

        - Raledine baculé, pé de turco tem chulé!

        - Moleques! Sembrefonhas!

        - Sofia guer gombra galinha de raça? Cadê os urubus que ocê comprou hem Sofia? Cadê as galinhas de raça?

        Caíam na risada.


(VILELA, Luiz. Contos da infância e da adolescência. Ática: São Paulo, 1996. p.15-6).

Fonte: Livro - Práticas de Linguagem.Vol.4. Editora Scipione: São Paulo, 2000.p.94-6).

Teoria & Prática

1. Observe as falas de Sofia:

    "- Eu vai contar bra seu pai, menino! Eu vai contar bra seu pai!"

    "- Moleques! Sembregonhas!"

Como elas ficariam se fossem registradas no padrão formal da língua portuguesa?

- Eu vou contar para seu pai, menino! Eu vou contar para seu pai!

- Moleques! Sem-vergonhas!

2. Em sua opinião, qual é a nacionalidade de Sofia?

    Embora não fique explícito, provavelmente  Sofia era de origem síria, armênia ou libanesa. Na brincadeira dos meninos, ela é chamada de "turca". Pois aqui em nosso país, os imigrantes de origem árabe são erroneamente designados "turcos".

3. A linguagem utilizada pelo personagem Sofia é coerente com sua provável nacionalidade?

O autor procura reproduzir o modo de falar dos imigrantes "turcos".

4. Qual foi a intenção do autor ao reproduzir as falas de Sofia daquele modo, e não no padrão formal?

Porque tem a função estilística importante, sendo através dela é possível caracterizar o personagem.

5. Além da linguagem utilizada pelos personagens, que  outros elementos do texto revelam coerência?

As atitudes dos meninos (provocações e brincadeiras para assustar Sofia) são típicas de garotos, sendo, portanto, coerentes com os personagens.



















terça-feira, 19 de janeiro de 2021

TEXTO: A CUCA - SÁVIA DUMONT - COM GABARITO

 TEXTO: A CUCA

    Quem nunca escutou a cantiga de ninar que as mães cantam para adormecer criança que não quer saber de pagar no sono?

       Nana, neném, que a Cuca vem pegar

      Papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar....

      A Cuca é uma velha feiíssima, com jeito de bruxa, cabelos desgrenhados. Traz nas costas um saco enorme onde enfia as crianças malcriadas que não querem ir para a cama na hora certa.

      A Cuca guarda segredos na sua corcunda. Dizem que a megera faz gato parar de miar no telhado, cachorro deixar de latir quando ela passa e as folhas ficarem quietas nas árvores. Ela mete medo até em gente grande. Só de ver a figura magrela vagando na noite, a lua empalidece no céu.

        Não conheço criança que, ao ouvir uns passos se arrastando na rua no meio da noite, não pense com um arrepiozinho na espinha no saco da Cuca, que some assim que ela surrupia sua presa: criança que não quer saber de dormir.

        Mas é só fechar os olhos e cair no sono, que a velha bruxa segue em frente.

Sávia Dumont. Os meninos que viraram estrelas e outras histórias do Brasil. São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2002.

Conversando sobre o texto

1.   Você já conhecia a canção da Cuca?

Resposta pessoal.

2.   Em sua opinião, a Cuca é um ser assustador?

Resposta pessoal.

3.   Você acha importante que no texto apareçam as características do ser que está sendo descrito? Por quê?

Resposta pessoal- Sugestão – Saber as características dos seres é de extrema importância para “visualização” deles ao ler um texto.

 4.   Releia o trecho.

“A Cuca é uma velha feiíssima, com jeito de bruxa, cabelos desgrenhados.”

a)   O que quer dizer a palavra em destaque? Marque a opção mais adequada.

(    ) feia          (    ) pouco feia             ( x  ) muito feia

b)   Na sua opinião, por que a autora preferiu usar o termo feiíssima no lugar da palavra feia?

Resposta pessoal – Sugestão: A autora usou o termo feiíssima para dar mais ênfase à feiura da Cuca.

 5.   Nas histórias, é comum haver trechos que explicam como são os personagens, ou seja, apresentam a aparência e o modo de ser deles. Sabendo disso, assinale as frases que descrevem a Cuca.

(     ) “Nana, neném, que a Cuca vem pegar...”

(  x  ) “A Cuca guarda segredos na corcunda,”

(  x  ) “Ela mete medo até em gente grande.”

6.   Em sua opinião, o texto foi escrito para o público infantil ou para o público adulto? Justifique sua resposta.

Possível resposta: O assunto do texto é de interesse do público infantil; a música “Nana, neném” é cantada para crianças.

TEXTO: SUPERMÁQUINAS PEQUENINAS - REVISTA GALILEU - COM GABARITO

 TEXTO: SUPERMÁQUINAS PEQUENINAS

    

  Barquinhos, carrinhos, aviõezinhos, trenzinhos. Todos surgiram da mesma maneira: inventores criavam as máquinas, como fez santos Dumont, e os fabricantes de brinquedos copiavam em menor escala. No Egito Antigo, artesãos observavam os barcos a vela no Rio nilo e imitavam em miniaturas. Napoleão III, admirador de trens movidos a corda, até construiu uma miniferrovia com estações e desvios nos jardins de seu palácio. Os carrinhos nasceram com os automóveis, no início do século 20. Inicialmente feitos de peças de madeira, exigiam seis crianças para carrega-los.

                         Revista Galileu, ano 11, nº 125. São Paulo, Globo, dezembro/2001.

1)   No texto Supermáquinas pequeninas, dois substantivos próprios foram propositalmente escritos com letra inicial minúscula. Identifique-os e reescreva-os adequadamente.

            As palavras são “Santos” e “Nilo”.

        2)   Encontre, no texto, pelo menos três substantivos comuns.

    Sugestões: barquinhos, carrinhos, aviõezinhos, trenzinhos, maneira, inventores, máquinas, fabricantes, brinquedos, escala, artesãos, barcos, vela, miniaturas, trens, corda, etc.

       3)   Releia a seguinte frase do texto:

          “Barquinhos, carrinhos, aviõezinhos, trenzinhos.”

       Agora procure explicar porque a palavra barquinhos está escrita com letra inicial maiúscula se ela é um substantivo comum.

       É devido ao fato de esse substantivo comum estar iniciando a frase/o texto.

 

CONTO: A CAUSA SECRETA - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 CONTO: A CAUSA SECRETA   

  Machado de Assis

Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha.

Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, — de Catumbi, onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço. Tinham falado também de outra coisa, além daquelas três, coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do dia, do bairro e da casa de saúde.

Toda a conversação a este respeito foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de tal natureza, que para fazê-lo entender é preciso remontar à origem da situação.

Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele.

A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo Beco do Cotovelo, Rua de S. José, até o Largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No Largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da Praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada.

Decorreram algumas semanas. Uma noite, eram nove horas, estava em casa, quando ouviu rumor de vozes na escada; desceu logo do sótão, onde morava, ao primeiro andar, onde vivia um empregado do arsenal de guerra. Era este que alguns homens conduziam, escada acima, ensanguentado. O preto que o servia acudiu a abrir a porta; o homem gemia, as vozes eram confusas, a luz pouca. Deposto o ferido na cama, Garcia disse que era preciso chamar um médico.

— Já aí vem um, acudiu alguém.

Garcia olhou: era o próprio homem da Santa Casa e do teatro. Imaginou que seria parente ou amigo do ferido; mas, rejeitou a suposição, desde que lhe ouvira perguntar se este tinha família ou pessoa próxima. Disse-lhe o preto que não, e ele assumiu a direção do serviço, pediu às pessoas estranhas que se retirassem, pagou aos carregadores, e deu as primeiras ordens. Sabendo que o Garcia era vizinho e estudante de medicina pediu-lhe que ficasse para ajudar o médico. Em seguida contou o que se passara.

— Foi uma malta de capoeiras. Eu vinha do quartel de Moura, onde fui visitar um primo, quando ouvi um barulho muito grande, e logo depois um ajuntamento.

Parece que eles feriram também a um sujeito que passava, e que entrou por um daqueles becos; mas eu só vi a este senhor, que atravessava a rua no momento em que um dos capoeiras, roçando por ele, meteu-lhe o punhal. Não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos, achei melhor trazê-lo.

— Conhecia-o antes? perguntou Garcia.

— Não, nunca o vi. Quem é?

 — É um bom homem, empregado no arsenal de guerra. Chama-se Gouvêa.

 — Não sei quem é.

Médico e subdelegado vieram daí a pouco; fez-se o curativo, e tomaram-se as informações. O desconhecido declarou chamar-se Fortunato Gomes da Silveira, ser capitalista, solteiro, morador em Catumbi. A ferida foi reconhecida grave. Durante o curativo ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela, os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito. No fim, entendeu-se particularmente com o médico, acompanhou-o até o patamar da escada, e reiterou ao subdelegado a declaração de estar pronto a auxiliar as pesquisas da polícia. Os dois saíram, ele e o estudante ficaram no quarto.

Garcia estava atônito. Olhou para ele, viu-o sentar-se tranquilamente, estirar as pernas, meter as mãos nas algibeiras das calças, e fitar os olhos no ferido. Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara. Teria quarenta anos. De quando em quando, voltava-se para o estudante, e perguntava alguma coisa acerca do ferido; mas tornava logo a olhar para ele, enquanto o rapaz lhe dava a resposta. A sensação que o estudante recebia era de repulsa ao mesmo tempo que de curiosidade; não podia negar que estava assistindo a um ato de rara dedicação, e se era desinteressado como parecia, não havia mais que aceitar o coração humano como um poço de mistérios.

Fortunato saiu pouco antes de uma hora; voltou nos dias seguintes, mas a cura fez-se depressa, e, antes de concluída, desapareceu sem dizer ao obsequiado onde morava. Foi o estudante que lhe deu as indicações do nome, rua e número.

— Vou agradecer-lhe a esmola que me fez, logo que possa sair, disse o convalescente.

Correu a Catumbi daí a seis dias. Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.

 — Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.

O pobre-diabo saiu de lá mortificado, humilhado, mastigando a custo o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar à cabeça e refugiar-se ali como uma simples ideia. Foi assim que o próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento da ingratidão.

Tudo isso assombrou o Garcia. Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de decompor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum.

Tempos depois, estando já formado e morando na Rua de Mata-cavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a frequência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visita-lo ali perto, em Catumbi.

— Sabe que estou casado?

— Não sabia.

— Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo.

— Domingo?

— Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo.

Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. Um dia, estando os três juntos, perguntou Garcia a Maria Luísa se tivera notícia das circunstâncias em que ele conhecera o marido.

— Não, respondeu a moça.

— Vai ouvir uma ação bonita.

— Não vale a pena, interrompeu Fortunato.

— A senhora vai ver se vale a pena, insistiu o médico.

Contou o caso da Rua de D. Manoel. A moça ouviu-o espantada. Insensivelmente estendeu a mão e apertou o pulso ao marido, risonha e agradecida, como se acabasse de descobrir-lhe o coração. Fortunato sacudia os ombros, mas não ouvia com indiferença. No fim contou ele próprio a visita que o ferido lhe fez, com todos os pormenores da figura, dos gestos, das palavras atadas, dos silêncios, em suma, um estúrdio. E ria muito ao contá-la. Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco. "Singular homem!" pensou Garcia.

Maria Luísa ficou desconsolada com a zombaria do marido; mas o médico restituiu-lhe a satisfação anterior, voltando a referir a dedicação deste e as suas raras qualidades de enfermeiro; tão bom enfermeiro, concluiu ele, que, se algum dia fundar uma casa de saúde, irei convidá-lo.

— Valeu? Perguntou Fortunato.

— Valeu o quê?

— Vamos fundar uma casa de saúde?

— Não valeu nada; estou brincando.

— Podia-se fazer alguma coisa; e para o senhor, que começa a clínica, acho que seria bem bom. Tenho justamente uma casa que vai vagar, e serve.

Garcia recusou nesse e no dia seguinte; mas a ideia tinha-se metido na cabeça ao outro, e não foi possível recuar mais. Na verdade, era uma boa estreia para ele, e podia vir a ser um bom negócio para ambos. Aceitou finalmente, daí a dias, e foi uma desilusão para Maria Luísa. Criatura nervosa e frágil, padecia só com a ideia de que o marido tivesse de viver em contato com enfermidades humanas, mas não ousou opor-se-lhe, e curvou a cabeça. O plano fez-se e cumpriu-se depressa.

Verdade é que Fortunato não curou de mais nada, nem então, nem depois. Aberta a casa, foi ele o próprio administrador e chefe de enfermeiros, examinava tudo, ordenava tudo, compras e caldos, drogas e contas.

Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido da Rua D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia. Fortunato estudava, acompanhava as operações, e nenhum outro curava os cáusticos.

— Tenho muita fé nos cáusticos, dizia ele.

A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo, para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada.

No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como coisa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências.

— Mas a senhora mesma...

Maria Luísa acudiu, sorrindo:

— Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz... Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada.

— Deixe ver o pulso.

— Não tenho nada. Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo.

Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali: ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita.

— Que é? perguntou-lhe.

 — O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.

Garcia lembrou-se que, na véspera, ouvira ao Fortunado queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado.

— Mate-o logo! disse-lhe.

— Já vai.

E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida.

Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue.

Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida.

"Castiga sem raiva", pensou o médico, "pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem".

Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.

Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:

— Fracalhona! E voltando-se para o médico:

— Há de crer que quase desmaiou?

Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar.

Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal.

Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.

De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco.

 — Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois.

Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado.

Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços.

Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.

 Fonte da imagem acima:https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.youtube.com%2Fwatch%3Fv%3DPlQOHkOIy08&psig=AOvVaw3iUz56bEmnhq3QvgQQHLcP&ust=1611146282435000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCLjcwOWBqO4CFQAAAAAdAAAAABAF

ENTENDENDO O CONTO

 01. O clímax se dá quando Garcia e Maria Luiza flagram Fortunato torturando um pequeno rato, cortando-lhe pata por pata com uma tesoura e levando-lhe ao fogo, sem deixar que morresse. É assim que se percebe a causa secreta dos atos daquele homem: o sofrimento alheio lhe é prazeroso. Comprove essa afirmação com outros fragmentos que demonstrem seu prazer na dor.

“Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.”

“Fortunato recebeu-o constrangido, ouviu impaciente as palavras de agradecimento, deu-lhe uma resposta enfastiada e acabou batendo com as borlas do chambre no joelho. Gouvêa, defronte dele, sentado e calado, alisava o chapéu com os dedos, levantando os olhos de quando em quando, sem achar mais nada que dizer. No fim de dez minutos, pediu licença para sair, e saiu.

 — Cuidado com os capoeiras! disse-lhe o dono da casa, rindo-se.”

 02. Os nossos jornais todos os dias trazem muitas notícias de tragédias, e os editores justificam a exploração desse tema explicando que o ser humano gosta de ver sofrimento alheio. Vocês concordam com essa explicação? Vocês gostam de ler sobre isso? Podemos chamar isso de sadismo?


 

       Resposta pessoal.

 03. Dizem que os temas explorados pela música sertaneja são principalmente traição e amor não correspondido. Cite exemplo de uma música e comprove através de trecho que explore o gosto pelo autossofrimento como vimos em Fortunato na última frase do conto A Causa Secreta.

      Resposta pessoal.

 04. A partir da análise do conto, podemos dizer que o texto classifica-se como?

     a) Um texto do tipo carta argumentativa, muito comum em jornais e revistas. Apresenta argumentos incisivos com intenção de influenciar ou rebater a opinião de outros leitores.

    b) Um texto dissertativo, cuja principal intenção é a exposição de opiniões com a intenção de persuadir o leitor;

      c) Um texto narrativo-descritivo, pois é predominantemente narrativo com passagens descritivas;

     d) Um texto de relato, pois transmite os fatos acontecidos com foco no acontecimento;

    e) Um texto narrativo, seu material é o fato e a ação que envolve os personagens.

 05. Qual é a causa secreta no conto de Machado​

     A causa secreta é o sadismo de Fortunato, o prazer que ele sente com o sofrimento alheio, de pessoas ou de animais.

 06.Qual o foco narrativo em cada um dos contos?

     Um texto narrativo-descritivo, pois é predominantemente narrativo com passagens descritivas.

07. Os nossos jornais todos os dias trazem muitas notícias de tragédias, e os editores justificam a exploração desse tema explicando que o ser humano gosta de ver sofrimento alheio. Vocês concordam com essa explicação? Vocês gostam de ler sobre isso? Podemos chamar a isso de sadismo?

      Resposta pessoal.

 08. Dizem que os temas explorados pela música sertaneja são principalmente traição e amor não correspondido. Tragam para a sala exemplos de músicas que explorem o gosto pelo auto-sofrimento como vimos em Fortunato na última frase do texto Causa secreta.

       Resposta pessoal.

 

 

 

 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

MÚSICA(ATIVIDADES): A PORTA DA ALEGRIA - OSWALDO MONTENEGRO - COM GABARITO

 Música(Atividades0: A Porta da Alegria

                                                            Oswaldo Montenegro

Cada vez que eu subo ao palco pra cantar

Eu me lembro de você

Será que ainda quero falar?

Ainda há coisas pra contar ou pra dizer?

O vento corta a pele, mas

O coração por dentro resistiu

O sol lá fora é novo, mas você não viu

 

Cada vez que alguém me olha com atenção

Dá vontade de gritar

Que o tempo tá na contramão

E é preciso de algum jeito se apressar

A vida exige sonhos, e o amor, é só um jeito de sonhar

E não há mais segredo se a gente falar.

 

Mas eu sei que fiz as coisas do meu jeito

Não há o que consertar

Cada um tem sua história

Só quem viveu, é que pode contar

E o passado é diferente na memória

E o certo é o que virá

Abre a porta da alegria e deixa entrar!

Abre a porta da alegria e deixa entrar

 

Hoje eu sei só quem tirou a fantasia

Aproveita o carnaval

Apaga o que havia

E comemora o que há de novo no quintal

O amor troca de rosto

Mas mudar não quer dizer que é o final

Se lembra: Toda a nostalgia pode ser fatal

E descansa que a vida dá um jeito

Que for para ajeitar

E o que não foi possível, é possível que ainda esteja lá

 

De repente, em qualquer rua sem aviso

A gente vai se achar

Abre a porta da alegria e deixa entrar

Abre a porta da alegria e deixa entrar

E hoje eu sei que fiz as coisas do meu jeito

Não há o que consertar

Abre a porta da alegria e deixa entrar

Abre a porta da alegria e deixa entrar

           Composição: Oswaldo Montenegro / Arlindo Da Paixão

Entendendo a canção:

01 – De que se trata a canção?

      Fala da esperança de dias melhores, alegres.

02 – O eu lírico diz que quando sobe ao palco lembra de sua amada e faz que questionamento?

      Se ainda que falar, se ainda há coisas pra contar ou pra dizer.

03 – Que mensagem traz o verso: “O sol lá fora é novo, mas você não viu”?

      Que o sol continua brilhando, mas sua amada não percebeu.

04 – Na segunda estrofe o eu lírico fala que se deve correr menos e viver mais; que esse é o segredo válido para todos os tempos. Copie os versos que retratam esse fato.

      “E é preciso de algum jeito se apressar / A vida exige sonhos, e o amor, é só um jeito de sonhar / E não há mais segredo se a gente falar”.

05 – Após analisar a letra da canção, responda: a temática é positiva ou negativa? Em seguida, explique por quê?

      A temática é positiva, pois o eu lírico nos convida a abrir a porta da alegria e deixa-la entrar.