Crônica: Más Intenções
Walcyr Carrasco
ENTRA ANO, SAI ANO, é sempre a mesma coisa.
Começo a delirar com as boas intenções para 1996. Não adianta refletir que se
trata de uma data simbólica e que a vida não vira de cabeça para baixo de uma
noite para outra. A passagem do ano mexe com a gente. Vejo meus amigos em
torno, repletos de resoluções. Lembro do ano passado e tento me acalmar. Um
deles me garantiu, na noite do 31, que até o final do ano (este que termina)
faria seu primeiro milhão de dólares vendendo ações. Quando o ouvi, fiquei com
os neurônios verdes de inveja e pensei: "Por que nunca aprendi a vender
ações para também ganhar meu milhãozinho?".
— Li meu mapa astral. Este será o meu ano. Vou
ter grande projeção na tevê. Tenho a intuição de que vou virar estrela de
novela.
De fato, apareceu na tevê. Como vítima de um
assalto, chorando histérica e dando declarações aos gritos. Ganhou, é verdade,
seus cinco segundos de fama. Tem crises de nervos cada vez que ouve falar em
mapa astral. Há pessoas mais modestas. O sonho de uma amiga é tão simples
quanto irrealizável: emagrecer. Já a encontrei, neste final de ano, com um copo
de cerveja na mão e um prato repleto de lombo de porco com molho de ameixa.
Espantei-me:
— Na semana passada você estava de regime
estrito!
— E só desta vez. O ano está acabando mesmo.
Fica para o próximo.
Aguarde!
Aguardo, sim! Aguardo o dia em que, em vez de
andar, ela vai sair rolando. (Regimes quebrados nas festas são um capítulo à
parte. As pessoas nunca se enganam tanto como nesta época.) O aspecto mais
trágico dessas resoluções é a despedida. A pessoa resolve deixar de fumar a
partir de janeiro e manda ver em dez maços cotidianos até o réveillon, para dar
o adeus definitivo. Fica à beira de um ataque e volta a fumar no dia 2. Outra
promete nunca mais usar o cheque especial, a partir do Ano-Novo. Corre aos
shoppings e torra o que pode, com um fantástico sentimento de autoconfiança.
Afinal, aquela fase da vida está terminando e nunca mais ela gastará tanto.
Quase é presa por calote. E, logo depois do réveillon, lembra-se de que
esquecera de comprar só mais uma coisinha.
Certo ano despenquei numa loja prestes a
fechar, batalhei com o gerente e consegui levar um despertador digital. Tudo
porque estava decidido a acordar às 6 da manhã para correr no Ibirapuera. Era
importante iniciar o ano com o pé direito. Ou melhor, com o relógio certo,
começando a correr na exata manha do dia l.. Já me vi atlético e bronzeado,
veloz como um puro-sangue, vencendo a próxima São Silvestre. Saí do réveillon
de madrugada, preocupado, com a camisa branca marcada de vinho. Senti que não
estava na melhor forma para cumprir a resolução. Recorri a um estratagema.
Adiantei o relógio quatro horas: "Quando ele tocar, pensarei que são 10.
Na verdade, serão 6. Levanto e saio correndo sem tomar café, para não
atrasar".
Despertei com o barulho horrendo. Vi que eram
10, mas lembrei que talvez fossem 6. Fiquei em dúvida. Desliguei o relógio com
um argumento: "Se já são 10, significa que não cumpri a promessa. Sou um
crápula comigo mesmo. Assim nunca serei atlético". Suspirei, virei para o
lado e ronquei docemente.
Um fato é inegável: resoluções de Ano-Novo são
mais frustrantes do que panetone sem passas. Desta vez, tirei a máscara.
Decidi não virar o ano garantindo que serei tão afável quanto um poodle. Confesso: meu coração pulsa repleto de deliciosas más intenções para 1996. É que as boas intenções de Ano-Novo só servem para provar uma coisa: que ninguém é de ferro. Felizmente. Se todo mundo cumprisse as promessas torturantes desta época, o planeta seria tão chato quanto um réveillon com menu dietético.
Entendendo
o texto
01.Qual é o tema central abordado na crônica
"Más Intenções" de Walcyr Carrasco?
a) As
boas intenções de Ano-Novo.
b) As
resoluções frustrantes.
c) A importância do réveillon.
d) O hábito de fumar.
02. Quem narra a crônica "Más Intenções"?
a) Um
observador externo.
b) O autor,
Walcyr Carrasco.
c) Um personagem fictício.
d) Um amigo do autor.
03. O que o autor destaca como o aspecto mais
trágico das resoluções de Ano-Novo?
a) A despedida.
b) A volta ao cheque especial.
c) A quebra dos regimes nas festas.
d) A promessa de deixar de fumar.
04. Qual é a resolução da amiga atriz mencionada na
crônica?
a)
Deixar de fumar.
b) Emagrecer.
c) Aprender a vender ações.
d) Não usar mais o cheque especial.
05. Como o autor descreve a reação das pessoas em
relação aos regimes quebrados nas festas?
a) As pessoas se enganam mais nesta época.
b) É um capítulo à parte das
festividades.
c) Todos conseguem manter o regime.
d) As festas não afetam os regimes.
06. Qual foi a estratégia adotada pelo autor para
cumprir a resolução de correr no Ibirapuera?
a)
Comprar um despertador digital.
b) Adiantar
o relógio quatro horas.
c) Correr sem tomar café.
d) Deixar de beber vinho no
réveillon.
07. O que aconteceu quando o autor despertou na
manhã do dia 1º?
a) Ele
correu no Ibirapuera.
b) Admitiu
que não cumpriu a promessa.
c) Sentiu-se atlético e
bronzeado.
d) Tomou um café reforçado.
08. Como o autor descreve as resoluções de Ano-Novo
em relação ao réveillon com menu dietético?
a) Frustrantes.
b) Divertidas.
c) Motivacionais.
d) Sem graça.
09. O que o autor confessa sobre suas intenções
para o próximo ano?
a) Ter boas intenções.
b) Cumprir suas promessas.
c) Ter más intenções.
d) Mudar radicalmente de estilo de
vida.
10. Como o autor caracteriza o planeta se todo
mundo cumprisse as promessas de Ano-Novo?
a) Chato como um réveillon com menu dietético.
b) Animado como uma festa de
carnaval.
c) Feliz como uma tarde de domingo.
d) Interessante como uma viagem ao
exterior.