sábado, 26 de abril de 2025

REPORTAGEM: PLANTAR ÁRVORES DÁ MAIS PRAZER DO QUE FAZER FILMES - MARIA DA PAZ TREFAUT - COM GABARITO

 Reportagem: Plantar árvores dá mais prazer do que fazer filmes

          O cineasta paulista Fernando Meirelles concilia o cinema com o ativismo em defesa das florestas e dedica boa parte do seu tempo a acompanhar as questões ecológicas. Atualmente, anda pouco entusiasmo com os eventos do setor no Brasil.

Por Maria da Paz Trefaut

    

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEheR_1jxn9zzdnH8KSRvM3fni6GwEpYgWST0I25pAuhyO4OcrVwFl-2H-rrs1PRq8CEd4oGdJCR1EMUQP-84PZ9iJftQUqwwCH43xDMC_nuDXJ8yvraf525Hi3yhMsYzwGc5iDFYYh2CHEkapwwY-uPmZOkWgIVJbZtrJ8chbsQYeMSAoDjdSyyRse18H4/s320/24b53750e82c9e4f97b2301175fd417d.jpeg

    

Aos 56 anos, o cineasta Fernando Meirelles integra a galeria dos melhores diretores do cinema brasileiro. Entusiasta de filmes experimentais na juventude, criou programas para a televisão, trabalhou com publicidade e dirigiu sucessos como Cidade de Deus, em que usou a estética dos videoclipes para retratar a violência no Rio de Janeiro – obra que concorreu ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2004. Depois, vieram O jardineiro fiel e Ensaio sobre a cegueira, com atores e produtores internacionais. Seu filme mais recente, 360, [...] foi filmado em Viena com os atores Jude Law, Raquel Weisz e Anthony Hopkins. Em 2012, o cineasta iniciará um longa baseado no livro Nêmesis, do inglês Peter Adams, sobre a vida do multimilionário grego Aristóteles Onasis.

        Tanto quanto [por] cinema, Meirelles sempre se interessou por ecologia. No ano passado, chegou a ir ao Senado para se posicionar contra o novo Código Florestal. Há cinco anos vem se dedicando a um projeto de reflorestamento das matas ciliares da sua Fazenda Rifaina, em Rifaina, no interior de São Paulo. Já replantou 2,8 hectares com 3 mil mudas de 32 espécies de árvores nativas, das quais muito se orgulha, e vai continuar plantando. “Continuo melhorando meu viveiro de mudas nativas. Isso me dá mais satisfação do que fazer filmes”, afirma. Nesta entrevista, Meirelles revela que não está nada satisfeito com os rumos do Brasil.

        Precisamos mudar de cultura para adequar nossa civilização aos limites do planeta?

        Sabemos que precisaríamos dos recursos de três planetas para a população atual alcançar os padrões de consumo do Primeiro Mundo. Esse parece ser o objetivo de todos os governos e habitantes. Mas está claro que essas aspirações não cabem no espaço que temos. Apesar de muitos estudos anunciando a falta iminente de minérios, de peixes ou de água potável, nossa sociedade não sabe existir sem crescer. A mim parece óbvio que, mesmo contando com a ciência para tornar mais eficiente o uso de energia e de recursos naturais, uma hora vamos ter de inventar outra maneira de viver que não dependa do crescimento.

        Você integra o grupo Floresta Faz Diferença. O que essa causa representa para você?

        O www.florestafazdiferenca.org.br é o site de uma associação de 144 ONGs criada para informar o debate sobre o Código Florestal. Nele há informações a respeito das mudanças nocivas propostas para o código e alternativas elaboradas pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência ou pela Academia Brasileira de Ciência. Há, também, depoimentos de artistas, cientistas e técnicos. Tentamos iluminar a cabeça dos congressistas, embora muitos pareçam ser à prova de luz. Esse novo Código Florestal pode vir a ser um dos maiores erros já cometidos pelo Congresso, pois autoriza a derrubada de uma quantidade de mata que dificilmente será recuperada um dia. A visão de alguns ruralistas é estreita: eles não apresentam nenhum argumento que não seja o lucro de curto alcance.

        Há pessimismo sobre o esforço para se controlar as mudanças climáticas. Estamos numa corrida contra o tempo?

        Alguns cientistas dizem que estamos quase no ponto em que o processo de aquecimento se torna irreversível. Outros, que já ultrapassamos. Em 2000 estava claro que para o planeta não esquentar 2º centígrados até 2050 as emissões de carbono teriam que ser reduzidas em 2% ao ano, ao longo da década. Não aconteceu. Há indícios claros de que algo está mudando muito mais rapidamente do que se previa.

        Que exemplos o preocupam?

        No norte do Canadá existe a chamada Passagem do Nordeste, que era atravessada por barcos quebra-gelo no verão. Desde 2007 ela fica completamente aberta durante o verão e, para a alegria dos cargueiros, não há mais gelo. Em 2011 houve o maior degelo já registrado na região. Quando essa passagem deixar de se fechar no inverno, a água aquecida vai acelerar o degelo do Ártico. Isso pode causar um tal aumento do nível dos oceanos que a rua Ataulfo de Paiva, no Leblon, no Rio, poderá se transformar num embarcadouro mais cedo do que imaginamos. Mesmo assim o Brasil investe toda sua energia em mais extração de óleo e tenta acelerar o crescimento. Maluco, não?

        O desenvolvimento da China, da Índia e do Brasil diminui a pobreza global, mas aumenta os impactos socioambientais. Dá para desarmar o impasse?

        Uma hora não será uma questão de querer ou não desarmar o impasse. Não haverá mais recursos naturais e ponto. Segundo a ONU, há 1,1 bilhão de pessoas sem acesso a água potável. Massas de refugiados estão começando a se deslocar no norte da África. Isso pode provocar mudanças geopolíticas e conflitos entre países. a China tem planos para ampliar a dessalinização da água do mar. Como essa água é mais cara, será usada de maneira mais racional. É pena que só assim consigamos ser mais racionais.

        Você acha que há empenho em mudar o modelo de vida consumista que temos?

        Muito pouco. Ambientalista ainda é sinônimo de chato, quando não de hippie maconheiro. “É gente contra o progresso, que acredita que comida nasce em supermercado”, diz a inacreditável senadora Kátia Abreu. Em curto prazo entendo por que se associa crescimento a bem-estar. O problema é que a visão de longo prazo não cabe no sistema visual dos homens públicos: eles trabalham com horizontes que vão, no máximo, até as próximas duas ou três eleições.

        A mensagem ambiental prega comprar menos, gastar menos, dirigir menos, compartilhar recursos, sacrifícios e severidade. É avessa à abundância e ao desfrute. Dá para mudar essas percepções?

        Não acho que haveria menos desfrute num mundo que consumisse menos bens. Desfruto mais da minha vida quando uso meu dinheiro e meu tempo para ler, estudar, ir ao cinema, praticar esporte, encontrar os amigos ou ouvir música. Essas atividades são sustentáveis e mais desfrutáveis do que achar vaga em estacionamento de shopping para comprar bugigangas que não preciso e que entopem armários.

        Qual é sua atitude diante do automóvel, da bicicleta e dos meios de transporte urbanos?

        Moro fora da cidade de São Paulo, num lugar que, infelizmente, não tem opção de transporte público. Organizei minha vida para não ter que sair de casa todos os dias. Quando tenho que ir ao centro, deixo meu carro próximo a uma estação e vou de metrô. Quase não uso ônibus, devido à falta de qualidade do serviço – não há corredores de trânsito, as viagens são muito demoradas, há poluição –, mas seria um usuário assíduo se houvesse opção melhor. Fora do Brasil, raramente tomo táxi. Só uso bicicleta ou transporte público. Em Los Angeles sou obrigado a alugar carro, pois, como aqui, as opções de transporte público são pouco eficientes.

        No passado todos se diziam democratas. Agora todas as empresas e todos os países se dizem sustentáveis. A palavra está desgastada?

        Virou um ponto de venda, uma questão de marketing, mais do que uma efetiva preocupação com os processos de produção e uso de energia e de recursos. Mesmo assim, é louvável que a sustentabilidade tenha se tornado um valor desejável. Ao anunciar um apartamento sustentável, mesmo que o imóvel não seja de fato lá essas coisas, vende-se a ideia de responsabilidade ambiental como um valor desejável.

        [...]

        Você é contra o eucalipto?

        Não. Acho que serve como combustível e para a produção de celulose. Mas querer usar plantação de eucalipto como reserva legal de floresta é palhaçada. Quantos passarinhos você já ouviu num bosque de eucaliptos? Não é por ser árvore que vamos acreditar que lavoura de eucalipto seja floresta. Floresta tem que ter diversidade.

        O cinema pode mitigar as emissões de carbono?

        Como toda forma de comunicação, o cinema pode ajudar a mudar comportamentos ao informar e tocar as pessoas. Lembro que fiquei extremamente impactado ao assistir a filmes como o francês Home – nosso Planeta, nossa casa ou o norte-americano Food Inc. São filmes sensacionais a respeito dos temas desta entrevista.

Planeta, nº 472. 

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 2. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª Ed. – Ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 240-241.

Entendendo a reportagem:

01 – Quem é Fernando Meirelles e qual a sua principal atividade profissional mencionada na reportagem?

      Fernando Meirelles é um cineasta paulista, conhecido por dirigir filmes como "Cidade de Deus", "O Jardineiro Fiel" e "Ensaio sobre a Cegueira".

02 – Além do cinema, qual outra área de interesse e atuação é destacada em relação a Fernando Meirelles?

      Além do cinema, Meirelles demonstra um grande interesse e atuação na área da ecologia e do ativismo em defesa das florestas.

03 – Qual projeto de reflorestamento Meirelles está desenvolvendo e onde ele está localizado?

      Meirelles está dedicando-se a um projeto de reflorestamento das matas ciliares de sua Fazenda Rifaina, localizada em Rifaina, no interior de São Paulo.

04 – Segundo Meirelles, o que lhe proporciona mais satisfação atualmente: plantar árvores ou fazer filmes?

      Segundo Meirelles, melhorar seu viveiro de mudas nativas e plantar árvores lhe dá mais satisfação do que fazer filmes.

05 – Qual a crítica de Meirelles em relação ao novo Código Florestal brasileiro?

      Meirelles critica o novo Código Florestal por considerar que ele autoriza a derrubada de uma grande quantidade de mata que dificilmente será recuperada, e por perceber uma visão estreita dos ruralistas focada apenas no lucro de curto alcance.

06 – Qual exemplo geográfico preocupa Meirelles em relação ao aquecimento global e suas consequências?

      Meirelles se preocupa com o degelo da Passagem do Nordeste, no norte do Canadá, que está ficando completamente aberta durante o verão, acelerando o degelo do Ártico e podendo causar um aumento significativo no nível dos oceanos.

07 – Qual a visão de Meirelles sobre o modelo de vida consumista e o empenho em mudá-lo?

      Meirelles acredita que há pouco empenho em mudar o modelo de vida consumista, e que ambientalista ainda é visto de forma negativa por muitos, com uma visão de curto prazo prevalecendo entre os homens públicos.

08 – Como Meirelles descreve suas preferências de lazer em relação ao consumo de bens materiais?

      Meirelles afirma que desfruta mais da vida ao investir seu tempo e dinheiro em atividades como leitura, estudo, cinema, esportes, amigos e música, considerando-as mais sustentáveis e prazerosas do que o consumo excessivo de bens desnecessários.

09 – Qual a opinião de Meirelles sobre a palavra "sustentabilidade" no contexto atual?

      Meirelles acredita que a palavra "sustentabilidade" se tornou um ponto de venda e marketing, muitas vezes sem uma preocupação efetiva com os processos de produção e uso de recursos, embora reconheça que é positivo que tenha se tornado um valor desejável.

10 – Qual a ressalva de Meirelles em relação ao plantio de eucalipto como reserva legal de floresta?

      Meirelles não é contra o eucalipto para certos fins, como combustível e celulose, mas considera um erro utilizá-lo como reserva legal de floresta, pois um bosque de eucaliptos não possui a diversidade de uma floresta nativa.

 

CRÔNICA: CONVERSA CONTEMPORÂNEA - FRAGMENTO - FABRÍCIO CORSALETTI - COM GABARITO

 Crônica: Conversa contemporânea – Fragmento

              FABRÍCIO CORSALETTI

        -- Hmmm, Renata, tá uma delícia!

        -- Que bom que vocês gostaram.

        -- Fantástico!

        -- Incrível!

        -- Ma-ra-vi-lho-so!

        -- Genial, Renatinha!

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgqyQ_6MtBTvAxbHZ_FIt4Saf2DDpw1as2r0_gRgZou3DZ_9frcBfdWE1j1lRlG8hyqIFzCvXVLdOYTHnIDVOfYYAeyobPpbZ-NmCP5rgjnaIYp7SHakvMSAK3B-NwA7gXbOJRrYj5NTcg8GUXBCFOI6Qzy_ZdV3UuO6itSnEPYUIdjXpi2xFuKRhR-vu8/s1600/images.png


        -- É fácil de fazer. É só escolher bem os olhos de tatu, temperar com capacetes frescos...

        -- De motoboy?

        -- Não. Tem que ser de motocross.

        -- Tá. E que mais?

        -- Aí afogam-se as folhas de manjericão em azeite de lágrimas, e forno!

        -- Eu disse que era azeite de lágrimas!

        -- E essa torta, como você conseguiu essa textura?

        -- Me passa o vinho, por favor?

        -- Simples. Vai no Santa Bárbara, compra picanha de grilo moída e mistura com polvilho alemão. Pronto. Se quiser, joga umas presilhas por cima que fica ótimo. O Túlio não gosta. Né, amor?

        -- Demais, Renatinha, demais!

        -- Mano, ontem fui no Le Bateau, ou Le Manteau, não lembro agora...

        -- É Le Manteau.

        -- Tá, não importa. Comi uma quiche que foi a melhor quiche que comi na vida. De cebolinha com fios de cabelo de albinos calvos. Coisa de louco.

        [...]

        -- Ixe, esqueci a sobremesa no fogo. Já volto.

        -- Ela tá feliz, né?

        -- Super!

        -- E como ela tá mandando bem!

        -- As suas massas também são ótimas, Marcos.

        -- Por que cê tá me falando isso? Não precisa me comparar com a Renata. Parece que eu tô com inveja dela.

        -- Tá um pouquinho...

        -- Era só o que me faltava.

        -- Abram espaço que eu tô chegando... Licença! Licençaaa...

        -- Uhu!

        -- Aêêê!

        -- O que é?

        -- Doce de leite de baby camelo com pêssegos frígidos aquecidos em banho josé maria.

        -- Hmmmmm...

        -- Arrasou!

        -- Me passa o vinho? Ei, me passa o vinho aí!

Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/saopaulo/1076377-conversa-contemporanea.shtml. Acesso em: 27/4/2012.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 2. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª Ed. – Ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 205.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a atmosfera geral da conversa inicial entre os personagens e como eles avaliam a comida de Renata?

      A atmosfera inicial da conversa é bastante efusiva e elogiosa. Os personagens utilizam exclamações e adjetivos como "delícia", "fantástico", "incrível", "maravilhoso" e "genial" para expressar que gostaram muito da comida de Renata.

02 – Qual é o tom predominante nas "receitas" apresentadas por Renata e qual o efeito desse tom na conversa?

      O tom predominante nas "receitas" de Renata é claramente irônico e absurdo. Ela descreve ingredientes e preparações surreais, como "olhos de tatu temperados com capacetes frescos de motocross" e "folhas de manjericão afogadas em azeite de lágrimas". Esse tom cria um efeito cômico e de estranhamento na conversa, contrastando com os elogios exagerados e revelando uma possível crítica à superficialidade dos comentários.

03 – Como os outros personagens reagem às descrições inusitadas dos pratos de Renata?

      Inicialmente, os outros personagens parecem não notar a estranheza das descrições de Renata, seguindo com seus elogios entusiásticos. Há uma breve confusão sobre o tipo de capacete ("de motoboy?" / "Não. Tem que ser de motocross."), mas logo a conversa prossegue sem questionamentos sobre a veracidade dos ingredientes.

04 – Qual a reação de Marcos ao elogio feito às suas massas e o que essa reação sugere sobre seus sentimentos em relação a Renata?

      Marcos reage com irritação ao elogio de suas massas, interpretando-o como uma comparação desfavorável com Renata e insinuando que ele estaria com inveja dela ("Por que cê tá me falando isso? Não precisa me comparar com a Renata. Parece que eu tô com inveja dela."). Essa reação sugere que Marcos se sente inseguro ou competitivo em relação ao sucesso culinário de Renata.

05 – Qual a natureza da sobremesa trazida pelo último personagem a chegar e como os outros reagem a ela?

      A sobremesa trazida pelo último personagem é descrita de forma igualmente extravagante e incomum: "Doce de leite de baby camelo com pêssegos frígidos aquecidos em banho josé maria". A reação dos outros é positiva e entusiástica, com exclamações como "Hmmm..." e "Arrasou!".

06 – Que elemento se repete ao longo da conversa, indicando talvez um certo foco ou desejo dos personagens?

      A pergunta "Me passa o vinho?" se repete ao longo da conversa, sugerindo que a bebida é um elemento importante e presente no encontro, talvez indicando um desejo de descontração ou um acompanhamento constante da refeição.

07 – Qual a possível crítica ou reflexão que a crônica pode estar levantando sobre as conversas contemporâneas a partir desse fragmento?

      A crônica pode estar levantando uma crítica à superficialidade e à falta de profundidade em algumas conversas contemporâneas, onde elogios vazios e descrições absurdas são aceitas sem questionamento. A ausência de uma reação genuína às "receitas" de Renata e a preocupação de Marcos com a comparação sugerem uma sociedade focada na aparência e na competição, em vez de uma comunicação autêntica e atenta aos detalhes. A crônica utiliza o humor e o absurdo para satirizar essa dinâmica social.

 

 

POEMA: CARTA DE UM CONTRATADO - ANTÔNIO JACINTO - COM GABARITO

 Poema: Carta de um contratado

              Antônio Jacinto

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio
de te perder
deste mais bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg8znEm0QsYCVZxs6EAQI66CtSBXT-4_sxOXYf7-BUpkAzzIEuOvvISTRN9Dqq9xsEy27ar64f93wsPN18IREuyUvPirrnJhyphenhyphenF7pbyur0gMVLFLerQXsh_q3TrX-6P9SdZc0BkXyQvZN67Pc8Apo8qhcFD0MCzo2hWn0qnAEv0i23ZLkJXFwpPEsipOf6o/s320/p000007339.jpg


Eu queria escrever-te uma carta
amor,

uma carta de confidências íntimas,
uma carta de lembranças de ti,
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como diloa
dos teus olhos doces como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos
que maiores não encontrei por aí...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que recordasse nossos tempos a capopa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura da nossa separação...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kieza
que a relesses sem a frieza
do esquecimento
uma carta que em todo o Kilombo
outra a ela não tivesse merecimento...

Eu queria escrever-te uma carta
amor,
uma carta que ta levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos de nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levassem puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever-te amor....

Eu queria escrever-te uma carta...

Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu – Oh! Desespero! – não sei escrever também!

Antônio Jacinto. In: Manuel Ferreira, org. no reino de Caliban. Lisboa: Serra Nova, 1976. p. 133-135.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 2. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª Ed. – Ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 132-133.

Entendendo o poema:

01 – Qual é o principal desejo expresso pelo eu lírico ao longo de quase todo o poema?

      O principal desejo expresso pelo eu lírico é o de escrever uma carta para o seu amor. Essa vontade é repetida em diversos momentos, evidenciando a intensidade do seu sentimento e a necessidade de comunicação.

02 – Que tipo de conteúdo o eu lírico gostaria de incluir em sua carta, mencionando exemplos específicos presentes no poema?

      O eu lírico gostaria de escrever uma carta de confidências íntimas e de lembranças do seu amor. Ele cita especificamente os lábios vermelhos como tacula, os cabelos negros como diloa, os olhos doces como maboque, o andar de onça e os carinhos inesquecíveis. Também deseja recordar os tempos a capopa, as noites perdidas no capim, a sombra dos jambos, o luar das palmeiras, a loucura da paixão e a amargura da separação.

03 – Quais são os pedidos incomuns que o eu lírico faz em relação à leitura da carta?

      O eu lírico pede que a amada não leia a carta sem suspirar, que a esconda de figuras como "papai Bombo" e "mamãe Kieza", e que a releia sem a frieza do esquecimento. Ele também expressa o desejo de que nenhuma outra carta em todo o "Kilombo" tenha tanto merecimento quanto a sua.

04 – De que maneira o eu lírico idealiza a viagem de sua carta até a amada?

      O eu lírico idealiza que a carta seja levada pelo vento que passa e que até mesmo elementos da natureza, como cajus, cafeeiros, hienas, palancas, jacarés e bagres, pudessem entender a mensagem. Ele espera que, compadecidos do seu sofrimento, esses elementos da natureza transmitam as palavras ardentes e magoadas da sua carta através de seus próprios sons e movimentos.

05 – Qual é a frustrante revelação que surge no final do poema e qual o seu impacto na mensagem transmitida?

      A frustrante revelação no final do poema é que o eu lírico não sabe escrever e a amada não sabe ler. Essa constatação final causa um impacto profundo, pois torna o desejo de comunicação expresso ao longo do poema inatingível, intensificando a sensação de saudade, separação e desespero.

06 – Como a repetição da frase "Eu queria escrever-te uma carta, amor" contribui para a expressividade do poema?

      A repetição da frase "Eu queria escrever-te uma carta, amor" enfatiza o anseio profundo e constante do eu lírico em se comunicar com a amada. Essa repetição cria um ritmo melancólico e reforça a intensidade do seu desejo, mesmo diante da impossibilidade final.

07 – Que elementos da cultura e da natureza parecem importantes para o eu lírico em suas lembranças e na idealização da carta?

      Elementos da cultura e da natureza africana são importantes para o eu lírico. Ele menciona a "tacula" e a "diloa" para descrever a cor dos lábios e cabelos, o "maboque" para a doçura dos olhos, o "andar de onça", o tempo "a capopa", o "capim", os "jambos", as "palmeiras", o "Kilombo", os "cajus", os "cafeeiro", as "hienas", as "palancas", os "jacarés" e os "bagres". Esses elementos enriquecem as lembranças e a idealização da carta, enraizando o sentimento do eu lírico em seu contexto cultural e natural.

 

 

CONTO: GERMNINAL - FRAGMENYO - ÉMILE ZOLA - COM GABARITO

 Conto: Germinal – Fragmento

           Émile Zola

        Por pouco Etienne não fora esmagado. Seus olhos habituavam-se, já podia ver no ar a corrida dos cabos, mais de trinta metros de fita de aço que subiam velozes à torre, onde passavam em roldanas para, em seguida, descer a pique ao poço e prenderem-se nos elevadores de extração. […]

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEha2oax5_wHVssxwrZprH_ob4jsWRvXPE6wWnOHZRSsviu3BZEw6cWEirkU9tsjjGUX7SnPgIFpSnppwC616TqRY7Ky1v3vyX9QbxDS4qV0qt-80495qHq8Ht5lYOySxgcPUX1AwlRGN7WwjG54MfmfRmsyQUPkKFz2WN3x00XBu3QBRmkxeECTFNOqVpg/s320/Germinal_first_edition_cover.jpg


        Só uma coisa ele compreendia perfeitamente: que o poço engolia magotes de vinte e de trinta homens, e com tal facilidade que nem parecia senti-los passar pela goela. Desde as quatro horas os operários começavam a descer; vinham da barraca, descalços, lâmpada na mão, e esperavam em grupos pequenos até formarem número suficiente. Sem ruído, com um pulo macio de animal noturno, o elevador de ferro subia do escuro, enganchava-se nas aldravas, com seus quatro andares, cada um contendo dois vagonetes cheios de carvão. Nos diferentes patamares, os carregadores retiravam osvagonetes, substituindo-os por outros vazios ou carregados antecipadamente com madeira em toros. E era nesses carros vazios que se empilhavam os operários, cinco a cinco, até quarenta de uma vez, quando ocupavam todos os Compartimentos. Uma ordem partia do megafone, um tartamudear grosso e indistinto, enquanto a corda, para dar o sinal embaixo, era puxada quatro vezes, convenção que queria dizer “aí vai carne” e que avisava da descida desse carregamento de carne humana. Em seguida, depois de um ligeiro solavanco, o elevador afundava silencioso, caía como uma pedra, deixando atrás de si apenas a fuga vibrante do cabo.

        — É muito fundo? — perguntou Etienne a um mineiro com ar sonolento que esperava perto dele.

        — Quinhentos e cinquenta e quatro metros — respondeu o homem. […]

Émile Zola. Germinal. 2. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1976. p. 26-8.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 2. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª Ed. – Ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 229-230.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

      -- Aldrava: pequena tranca metálica que fecha a porta.

      -- Magote: ajuntamento de coisas ou pessoas; amontoado, porção.

      -- Tartamudear: falar com dificuldade, gaguejar, balbuciar.

02 – Qual o perigo imediato que Etienne quase enfrenta ao chegar ao local descrito no início do fragmento?

      Etienne quase foi esmagado pela corrida dos cabos de aço que subiam velozmente à torre, utilizados para movimentar os elevadores de extração da mina.

03 – Como o narrador descreve o processo de entrada dos mineiros no poço da mina e qual a quantidade de homens que geralmente eram "engolidos" de uma vez?

      O narrador descreve o poço como algo que "engolia magotes" de vinte a trinta homens com facilidade. Os operários chegavam descalços, com suas lâmpadas, e esperavam em pequenos grupos até formar um número suficiente para descer no elevador.

04 – Descreva o elevador utilizado para transportar os mineiros e como ele operava no processo de descida e subida, incluindo a convenção utilizada para sinalizar a descida de pessoas.

      O elevador de ferro subia silenciosamente do escuro com quatro andares, cada um contendo dois vagonetes de carvão. Nos patamares, os vagonetes eram trocados. Os operários se empilhavam nos carros vazios, até quarenta de uma vez. Para sinalizar a descida de pessoas, a corda era puxada quatro vezes, uma convenção que significava "aí vai carne". Após um solavanco, o elevador afundava silenciosamente.

05 – Que pergunta Etienne faz a um dos mineiros e qual a resposta que ele recebe sobre a profundidade do poço?

      Etienne pergunta a um mineiro com ar sonolento que esperava perto dele: "É muito fundo?". O mineiro responde que o poço tem quinhentos e cinquenta e quatro metros de profundidade.

06 – Que impressão geral o fragmento transmite sobre o trabalho na mina e a relação dos mineiros com o ambiente subterrâneo?

      O fragmento transmite uma impressão de um trabalho perigoso e rotineiro, onde os mineiros são tratados quase como uma carga ("carregamento de carne humana"). A descrição do poço como algo que "engole" os homens e a profundidade mencionada reforçam a ideia de um ambiente hostil e imponente, onde a vida humana parece ser apenas mais um elemento a ser transportado para as profundezas da terra.

 

 

CONTO: A CAUSA SECRETA - FRAGMENTO - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Conto: A Causa Secreta – Fragmento

            Machado de Assis

        [...] 

        Garcia tinha-se formado em medicina, no ano anterior, 1861. No de 1860, estando ainda na Escola, encontrou-se com Fortunato, pela primeira vez, à porta da Santa Casa; entrava, quando o outro saía. Fez-lhe impressão a figura; mas, ainda assim, tê-la-ia esquecido, se não fosse o segundo encontro, poucos dias depois. Morava na rua de D. Manoel. Uma de suas raras distrações era ir ao teatro de S. Januário, que ficava perto, entre essa rua e a praia; ia uma ou duas vezes por mês, e nunca achava acima de quarenta pessoas. Só os mais intrépidos ousavam estender os passos até aquele recanto da cidade. Uma noite, estando nas cadeiras, apareceu ali Fortunato, e sentou-se ao pé dele. 

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgmsT1yxv9IuPF00r1y-a7gW9PRUrIPl1nrkj9d4ISzbo-zcdIj5lphv_BjUspEA4iYQ76qVWiuPidPTMb0NiPp0_iEfKrxatO3wXjpY4gcKcGgakvCar_6DK5BqbOUJzsFpHeFPjtZ9-9FVbbI0BzM9RRlvIgvG1BWYdAFLjhP8mIo_iShX8PX5_q57ko/s1600/CAUSA.jpg


        A peça era um dramalhão, cosido a facadas, ouriçado de imprecações e remorsos; mas Fortunato ouvia-a com singular interesse. Nos lances dolorosos, a atenção dele redobrava, os olhos iam avidamente de um personagem a outro, a tal ponto que o estudante suspeitou haver na peça reminiscências pessoais do vizinho. No fim do drama, veio uma farsa; mas Fortunato não esperou por ela e saiu; Garcia saiu atrás dele. Fortunato foi pelo beco do Cotovelo, rua de S. José, até o largo da Carioca. Ia devagar, cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia; o cão ficava ganindo e ele ia andando. No largo da Carioca entrou num tílburi, e seguiu para os lados da praça da Constituição. Garcia voltou para casa sem saber mais nada. 

        [...]

        Tempos depois, estando já formado e morando na rua de Matacavalos, perto da do Conde, encontrou Fortunato em uma gôndola, encontrou-o ainda outras vezes, e a frequência trouxe a familiaridade. Um dia Fortunato convidou-o a ir visitá-lo ali perto, em Catumbi. 

        — Sabe que estou casado? 

        — Não sabia. 

        — Casei-me há quatro meses, podia dizer quatro dias. Vá jantar conosco domingo. 

        — Domingo? 

        — Não esteja forjando desculpas; não admito desculpas. Vá domingo. 

        Garcia foi lá domingo. Fortunato deu-lhe um bom jantar, bons charutos e boa palestra, em companhia da senhora, que era interessante. A figura dele não mudara; os olhos eram as mesmas chapas de estanho, duras e frias; as outras feições não eram mais atraentes que dantes. Os obséquios, porém, se não resgatavam a natureza, davam alguma compensação, e não era pouco. Maria Luísa é que possuía ambos os feitiços, pessoa e modos. Era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos; tinha vinte e cinco anos e parecia não passar de dezenove. Garcia, à segunda vez que lá foi, percebeu que entre eles havia alguma dissonância de caracteres, pouca ou nenhuma afinidade moral, e da parte da mulher para com o marido uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor. [...]

        A comunhão dos interesses apertou os laços da intimidade. Garcia tornou-se familiar na casa; ali jantava quase todos os dias, ali observava a pessoa e a vida de Maria Luísa, cuja solidão moral era evidente. E a solidão como que lhe duplicava o encanto. Garcia começou a sentir que alguma coisa o agitava, quando ela aparecia, quando falava, quando trabalhava, calada, ao canto da janela, ou tocava ao piano umas músicas tristes. Manso e manso, entrou-lhe o amor no coração. Quando deu por ele, quis expeli-lo para que entre ele e Fortunato não houvesse outro laço que o da amizade; mas não pôde. Pôde apenas trancá-lo; Maria Luísa compreendeu ambas as coisas, a afeição e o silêncio, mas não se deu por achada. 

        No começo de outubro deu-se um incidente que desvendou ainda mais aos olhos do médico a situação da moça. Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães. Como os guinchos dos animais atordoavam os doentes, mudou o laboratório para casa, e a mulher, compleição nervosa, teve de os sofrer. Um dia, porém, não podendo mais, foi ter com o médico e pediu-lhe que, como cousa sua, alcançasse do marido a cessação de tais experiências. 

        — Mas a senhora mesma... 

        Maria Luísa acudiu, sorrindo: 

        — Ele naturalmente achará que sou criança. O que eu queria é que o senhor, como médico, lhe dissesse que isso me faz mal; e creia que faz... 

        Garcia alcançou prontamente que o outro acabasse com tais estudos. Se os foi fazer em outra parte, ninguém o soube, mas pode ser que sim. Maria Luísa agradeceu ao médico, tanto por ela como pelos animais, que não podia ver padecer. Tossia de quando em quando; Garcia perguntou-lhe se tinha alguma coisa, ela respondeu que nada. 

        — Deixe ver o pulso. 

        — Não tenho nada. 

        Não deu o pulso, e retirou-se. Garcia ficou apreensivo. Cuidava, ao contrário, que ela podia ter alguma coisa, que era preciso observá-la e avisar o marido em tempo. 

        Dois dias depois, — exatamente o dia em que os vemos agora, — Garcia foi lá jantar. Na sala disseram-lhe que Fortunato estava no gabinete, e ele caminhou para ali; ia chegando à porta, no momento em que Maria Luísa saía aflita. 

        — Que é? perguntou-lhe. 

        — O rato! O rato! exclamou a moça sufocada e afastando-se.

        Garcia lembrou-se que na véspera ouvira ao Fortunado queixar-se de um rato, que lhe levara um papel importante; mas estava longe de esperar o que viu. Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado. 

        — Mate-o logo! disse-lhe. 

        — Já vai.  

        E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. Garcia desviou os olhos, depois voltou-os novamente, e estendeu a mão para impedir que o suplício continuasse, mas não chegou a fazê-lo, porque o diabo do homem impunha medo, com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia. Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver. Ao descê-lo pela quarta vez, até a chama, deu ainda mais rapidez ao gesto, para salvar, se pudesse, alguns farrapos de vida. 

        Garcia, defronte, conseguia dominar a repugnância do espetáculo para fixar a cara do homem. Nem raiva, nem ódio; tão-somente um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética. Pareceu-lhe, e era verdade, que Fortunato havia-o inteiramente esquecido. Isto posto, não estaria fingindo, e devia ser aquilo mesmo. A chama ia morrendo, o rato podia ser que tivesse ainda um resíduo de vida, sombra de sombra; Fortunato aproveitou-o para cortar-lhe o focinho e pela última vez chegar a carne ao fogo. Afinal deixou cair o cadáver no prato, e arredou de si toda essa mistura de chamusco e sangue. 

        Ao levantar-se deu com o médico e teve um sobressalto. Então, mostrou-se enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel; mas a cólera evidentemente era fingida. 

        -- Castiga sem raiva, pensou o médico, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem. 

        Fortunato encareceu a importância do papel, a perda que lhe trazia, perda de tempo, é certo, mas o tempo agora era-lhe preciosíssimo. Garcia ouvia só, sem dizer nada, nem lhe dar crédito. Relembrava os atos dele, graves e leves, achava a mesma explicação para todos. Era a mesma troca das teclas da sensibilidade, um diletantismo sui generis, uma redução de Calígula.

        Quando Maria Luísa voltou ao gabinete, daí a pouco, o marido foi ter com ela, rindo, pegou-lhe nas mãos e falou-lhe mansamente:

        — Fracalhona! 

        E voltando-se para o médico: 

        — Há de crer que quase desmaiou? 

        Maria Luísa defendeu-se a medo, disse que era nervosa e mulher; depois foi sentar-se à janela com as suas lãs e agulhas, e os dedos ainda trêmulos, tal qual a vimos no começo desta história. Hão de lembrar-se que, depois de terem falado de outras coisas, ficaram calados os três, o marido sentado e olhando para o teto, o médico estalando as unhas. Pouco depois foram jantar; mas o jantar não foi alegre. Maria Luísa cismava e tossia; o médico indagava de si mesmo se ela não estaria exposta a algum excesso na companhia de tal homem. Era apenas possível; mas o amor trocou-lhe a possibilidade em certeza; tremeu por ela e cuidou de os vigiar. 

        Ela tossia, tossia, e não se passou muito tempo que a moléstia não tirasse a máscara. Era a tísica, velha dama insaciável, que chupa a vida toda, até deixar um bagaço de ossos. Fortunato recebeu a notícia como um golpe; amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la. Não poupou esforços, médicos, remédios, ares, todos os recursos e todos os paliativos. Mas foi tudo vão. A doença era mortal. 

        Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou, é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só. 

        De noite, indo repousar uma parenta de Maria Luísa, que a ajudara a morrer, ficaram na sala Fortunato e Garcia, velando o cadáver, ambos pensativos; mas o próprio marido estava fatigado, o médico disse-lhe que repousasse um pouco. 

        — Vá descansar, passe pelo sono uma hora ou duas: eu irei depois. 

        Fortunato saiu, foi deitar-se no sofá da saleta contígua, e adormeceu logo. Vinte minutos depois acordou, quis dormir outra vez, cochilou alguns minutos, até que se levantou e voltou à sala. Caminhava nas pontas dos pés para não acordar a parenta, que dormia perto. Chegando à porta, estacou assombrado. 

        Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento.  Olhou assombrado, mordendo os beiços. 

        Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o cadáver; mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa. 

50 contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 368-376.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 2. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª Ed. – Ensino médio. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 222-226.

Entendendo o conto:

01 – Como Garcia e Fortunato se conheceram inicialmente e qual foi a primeira impressão que Fortunato causou em Garcia?

      Garcia e Fortunato se encontraram pela primeira vez à porta da Santa Casa. Fortunato causou uma impressão em Garcia, embora esta pudesse ter sido esquecida se não houvesse um segundo encontro poucos dias depois.

02 – O que despertou a atenção de Garcia durante a peça de teatro em que ele e Fortunato se encontraram pela segunda vez?

      A atenção de Garcia foi despertada pelo singular interesse de Fortunato pela peça, um dramalhão cheio de violência. Nos lances dolorosos, a atenção de Fortunato redobrava, e seus olhos seguiam avidamente os personagens, levando Garcia a suspeitar de reminiscências pessoais do vizinho na peça.

03 – Como Garcia descreve a aparência física de Fortunato após conhecê-lo melhor e qual era o contraste com os seus modos?

      Garcia descreve a figura de Fortunato como inalterada, com olhos que eram "chapas de estanho, duras e frias" e outras feições não atraentes. Havia um contraste com os seus obséquios, que, embora não resgatassem sua natureza, ofereciam alguma compensação.

04 – Qual foi a impressão de Garcia sobre o relacionamento entre Fortunato e Maria Luísa após algumas visitas à casa do casal?

      Garcia percebeu que havia uma dissonância de caracteres e pouca ou nenhuma afinidade moral entre Fortunato e Maria Luísa. Notou também que os modos da mulher para com o marido transcendiam o respeito, confinando na resignação e no temor.

05 – Que sentimento começou a surgir em Garcia em relação a Maria Luísa e como ele tentou lidar com isso?

      Garcia começou a sentir amor por Maria Luísa. Ele tentou expeli-lo para que sua relação com Fortunato permanecesse apenas a de amizade, mas não conseguiu. Ele apenas trancou esse sentimento, embora Maria Luísa tenha compreendido tanto a afeição quanto o seu silêncio.

06 – Qual o incidente que revelou ainda mais a situação de Maria Luísa aos olhos de Garcia e qual o pedido incomum que ela fez ao médico?

      O incidente foi o hábito de Fortunato de estudar anatomia e fisiologia rasgando e envenenando animais em casa, perturbando Maria Luísa. Ela pediu a Garcia que, como se fosse um pedido dele, convencesse o marido a cessar tais experiências, alegando que lhe faziam mal.

07 – Descreva a cena chocante presenciada por Garcia no gabinete de Fortunato e qual a reação do médico diante do que viu?

      Garcia viu Fortunato torturando um rato, cortando suas patas e aproximando-o repetidamente de uma chama com um sorriso de satisfação. Garcia ficou horrorizado e pediu para que ele matasse o animal logo, mas a serenidade prazerosa de Fortunato o intimidou.

08 – Qual a interpretação de Garcia sobre o comportamento de Fortunato ao torturar o rato e que comparação ele faz para tentar entender a motivação do amigo?

      Garcia interpretou o comportamento de Fortunato como uma necessidade de encontrar uma sensação de prazer através da dor alheia, considerando isso o "segredo" do amigo. Ele compara essa atitude a um "diletantismo sui generis" e a uma "redução de Calígula", sugerindo uma busca por sensações extremas e um certo sadismo.

09 – Como Fortunato reagiu à doença e à morte de Maria Luísa, segundo o narrador?

      Fortunato recebeu a notícia da doença de Maria Luísa como um golpe e tentou todos os recursos para curá-la, pois a amava a seu modo e estava acostumado com ela. No entanto, nos últimos dias, seu egoísmo subjugou qualquer outra afeição, e ele observou a agonia da esposa sem demonstrar emoção, apenas sentindo-se aturdido ao ficar sozinho após a morte dela.

10 – Qual a cena final surpreendente presenciada por Fortunato e qual a sua reação ao ver Garcia beijando o cadáver de Maria Luísa?

      A cena final mostra Fortunato vendo Garcia beijar a testa do cadáver de Maria Luísa com lágrimas de amor e desespero. Fortunato ficou assombrado, interpretando o beijo não como amizade, mas como o possível fim de um adultério. Embora não sentisse ciúmes, sua vaidade ressentiu o gesto, e ele saboreou tranquilamente a explosão de dor moral de Garcia.