Crônica: Cem dias entre o céu e mar –
Fragmento
Amyr
Klink
[...]
Trinta de agosto. Embora não fosse
sábado, o calor do final de tarde me inspirou a fazer a barba, que já resistia
há algum tempo. As roupas secavam na antena. Os remos já estavam prontos pra ir
dormir. Mas, ao reconhecer o que ainda estava solto sobre o barco, um susto!
-- Navio! Navio! – berrei.
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhjqvjWgQ6fVAgfbSKta-NEYb5WXyLg9RoTjuEyAYyNIhXHU2IyQrfQsXHGygblwajKaYZbBX87NWeiw9XBNSvjtfaqNDrKSCk5B3HMxGhRQLCyclPfZK0zVfC9KyGhfMjjXYV2nssHqTO87qWNRF0Y7O1TeRGKvCuxEHH7elT7LQ4rNIMlJItc2ZuaYdQ/s320/AMIYR.jpg
Quase caí na água. Um enorme navio
cinzento cruzava minha proa a menos de meia milha de distância no rumo
verdadeiro de 310º. [...]
Os navios são cegos no mar, e quem
navega sozinho deve assumir por sua conta e risco este fato. Especialmente
durante o dia. À noite, as luzes de um pequeno barco são visíveis a uma
razoável distância, e neste caso o vigia pode tomar alguma atitude. Se houver
vigia. Mas quando o mar se apresenta levemente formado e, sobretudo, à luz do
dia, um barco pequeno só é visível nos poucos segundos em que não está
escondido entre duas ondas, o que representa menos de 20% do tempo. Isto, se
naquele exato instante houver alguém olhando precisamente na mesma direção.
Soma-se ainda o problema do reflexo dos raios na água, o que inutiliza metade
do campo visual de um navio quando o sol está baixo, e o dos dias de vento mais
forte, quando os carneirinhos, deixados pelas ondas que arrebatam, se confundem
com qualquer embarcação. Quanto mais perto se está do nível do mar, pior o
problema, pois, em decorrência da curvatura da Terra, o horizonte se torna
próximo e um enorme navio pode surgir da invisibilidade absoluta, até o nariz
da vítima, em rápidos minutos.
A única solução é manter uma vigília
permanente e nunca esperar que um monstro de aço saia da frente primeiro. Na
prática, isto é impossível para um solitário, e o jeito é dormir em intervalos
regulares tanto menores quanto mais próximo se estiver de rotas conhecidas de
navegação. Existem também alguns recursos técnicos para evitar colisões no mar:
os refletores-radar e o detector de radares. a utilidade de ambos, em rotas
transoceânicas, é muito relativa. Para auxílio e localização de um barco são
muito interessantes, mas nem tanto para evitar acidentes, pois, na prática,
raras vezes os navios acionam o radar em alto mar.
Inanimado, o navio seguia em frente
enquanto eu barrava de alegria. A distância não permitia distinguir pessoas,
mas ao menos sabia que, peça primeira vez em mais de oitenta dias, havia gente
nas proximidades, gente trabalhando, comendo em mesas, com versando, ali a
minha frente, dentro do vulto de aço que soltava fumaça pela chaminé. Que
saudades, meu Deus! Chamei pelo VHF, no canal 16: “Grande navio cinza. Grande
navio cinza. Aqui embarcação IAT chamando. Responda, Câmbio.”
E que surpresa ao ouvir a resposta num
inglês bem napolitano: “Prossiga IAT. Aqui é o Mount Cabrite. Câmbio.”
Era um cargueiro de bandeira liberiana
e tripulação italiana que seguia para os Estados Unidos. A comunicação VHF é de
curto alcance, e, portanto, eles imaginavam que deveriam avistar outro barco
próximo, um veleiro talvez. Mas não conseguiram. Sem trair a emoção que eu
sentia, pedi uma confirmação de posição para checar a precisão dos meus
cálculos. E o diálogo que se seguiu foi um pouco lacônico:
-- Não o avistamos. Você perdeu o
mastro? – perguntou o operador.
-- Não tenho mastro! – respondi.
-- Você está com pane nas máquinas?
-- Não tenho máquinas. Estou remando!
Houve um silêncio no rádio.
-- Há outros sobreviventes? – voltou
ele novamente.
-- Não! Não! – respondi. – Sou o único
tripulante a bordo. Vou para Salvador. Está tudo bem. Por favor, confirme e
comunique minha posição ao Concontramar no Rio de Janeiro.
-- Morreram todos os outros?
-- Não, não. Eu parti só, da África, de
Luderitz.
Novo silêncio. O oficial de rádio
custou a acreditar e, enquanto pedia a posição à ponte de comando, não escondeu
que duvidava do que ouvia.
KLINK, Amyr. Cem dias
entre céu e mar. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 102-103.
Fonte: Maxi: Séries
Finais. Caderno 2. Língua Portuguesa – 6º ano. 1.ed. São Paulo: Somos Sistemas
de Ensino, 2021. Ensino Fundamental 2. p. 36-37.
Entendendo a crônica:
01 – De acordo com o texto, o
que significa a palavra lacônico?
Em poucas palavras, sucinto, resumido.
02 – Explique a afirmação
feita no texto, de acordo com o relato do navegador.
“Os navios são cegos no mar, e quem
navega sozinho deve assumir por sua conta e risco este fato.”
Pela afirmação,
que os navios não conseguem ver as embarcações menores no mar, por isso, são
“cegos”. Ciente desse fato, o navegador que assume enfrentar uma viagem sozinho
deve ter consciência desse fato, o que pode representar um risco.
03 – De acordo com o texto, há
quantos dias Klink estava navegando quando encontrou o navio?
Há oitenta dias quando encontrou o navio.
04 – Qual foi o motivo da
alegria do navegador ao se deparar com
um navio?
O fato de ter tido um contato humano
depois de oitenta dias de navegação solitária.
05 – Como o autor navegante
descreve o navio que encontrou no caminho?
O navio era um
cargueiro de bandeira liberiana e tripulação italiana que estava seguindo para
os estados Unidos.
06 – Por que a tripulação do
cargueiro pensou que Klink era um sobrevivente?
Pelo fato de ele estar sozinho,
imaginando que ele teria escapado, provavelmente, de um naufrágio.
07 – Como você justifica o
fato de o oficial de rádio ter duvidado sobre o que o navegante contava?
O oficial de
rádio poderia ter duvidado sobre o que o navegante dizia, pois o fato de haver
um navegante sozinho em alto mar parecia ser algo estranho e improvável, a
menos que fosse, por exemplo, um sobrevivente.
08 – Com base no texto que
você leu, indique qual foi o fato que mais lhe chamou a atenção. Justifique sua
resposta.
Resposta pessoal do aluno.