terça-feira, 12 de dezembro de 2023

PEÇA TEATRAL: ROMEU E JULIETA - CENA 9 - BALCÃO - WILLIAM SHAKESPEARE - ADAP. CACÁ BRANDÃO - COM GABARITO

 Peça Teatral: Romeu e Julieta- CENA 9 – BALCÃO

Romeu:

(cantando.)

É a ti flor dos céus que me refiro

Neste trino de amor, nesta canção

Vestal dos sonhos meus por quem suspiro

E sinto palpitar meu coração É a ti flor do céu

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjBAYS5KsTX2VVoB4JZv39Q-Lhsv-uooy5W3SQn7iggH-Xdvp4hyqD1zhixftWWwjM7Y5LwBxqGA-WALlwA51JwQJoGBt5tx66Djp-RJ6Qbd8FYnTL6jCkEcRC6tJjLtIBFTDW2wm7vvQjh597W_st8NjZ82Gnvy1PI21-oLubwPXW_OihHqbJCT5C9mhA/s1600/JULIETA.jpg


Que luz será aquela

Que brilha na moldura da janela? Oh janela, Oh janela! És o nascente, E Julieta o sol resplandecente!

Está falando...Mas não ouço nada.

São seus olhos! Eles falam!

Foram duas estrelas das mais belas

Do céu, que tendo o que fazer algures

Pediram aos seus olhos que brilhassem Em seu lugar, até que elas voltassem. [...]

Julieta:

Ai de mim!

Romeu:

É ela!

Está falando!

Fala de novo, anjo resplandecente!

Tu, que pairas tão alto sobre mim E brilhas tanto dentro da noite.

Julieta:

Romeu, Romeu! Por que razão tu és Romeu?

Oh! Renega teu pai, despoja-te do nome!

Ou então, se não quiseres, jura ao menos que amor me tens E eu deixarei de ser Julieta Capuleto!

Romeu:

Devo continuar a ouvir ou responder-lhe?

Julieta:

Em ti só o teu nome é que é meu inimigo!

Tu não és um Montecchio, mas tu mesmo!

Afinal, que é um Montecchio?

Apenas um nome!

Se outro nome tivesse a rosa, em vez de rosa, Deixaria de ser por isso perfumosa?

Romeu, deixa esse nome,

E em troca dele, que não faz parte de ti, Toma-me a mim, que já sou toda tua!

Romeu:

Farei o teu desejo de bom grado!

Por ti, eu trocarei seja o que for!

Por ti, serei de novo batizado:

Não me chames Romeu... mas sim o Amor!

[...]

SHAKESPEARE, William. Romeu e Julieta. Tradução de Onestaldo de Penaforte.

Adaptação de Cacá Brandão. Belo Horizonte: Autêntica/PUC Minas, 2007. (Adaptado).

Vocabulário

Algures: em algum lugar.

Balcão: sacada.

Trino: gorjeio, berro.

Despojar: privar-se, desapropriar-se

Vestal: mulher virtuosa.

Grado: vontade, desejo

Entendendo o texto

01.               Após uma leitura do trecho de Romeu e Julieta, responda:

a)                   Em que ambiente acontece a cena?

        A cena acontece no balcão, na sacada.

b)                   Como você chegou a essa conclusão?

         A indicação da cena diz que ela acontece no balcão.

c)                    Quais personagens aparecem na cena?

          A nessa cena, aparecem Romeu e Julieta.

02.               Considerando as características do gênero dramático — texto teatral, assinale as alternativas corretas.

      ( X ) Romeu e Julieta apresenta um diálogo, ou seja, uma conversa entre dois personagens.

      ( X ) Na cena lida, não há presença de um narrador, isto é, uma pessoa contando a história.

       (   ) Na cena 9, a cena do balcão, não há nenhuma indicação de cena por meio de uma rubrica.

       ( X ) A  linguagem da cena lida é mais formal, pois representa a fala da época em que a peça foi escrita.

A  terceira alternativa está incorreta, pois há uma rubrica no início da cena, indicando que Romeu entra cantando.

03.               Sobre a conversa entre Romeu e Julieta, resolva as questões a seguir.

a)                   Romeu idealiza a amada Julieta e, de uma maneira romântica, ele a compara com alguns elementos. Quais são as comparações feitas por Romeu?

Romeu compara Julieta com o sol resplandecente, e os olhos dela com as estrelas.

b)                   Julieta tenta persuadir Romeu a fazer algo pelo amor do casal. O que ela suplica a ele?

        Julieta pede que Romeu renegue o pai, a família, e que deixe de lado o próprio sobrenome.

c)                    E o que ela afirma que fará, caso não seja possível que ele atenda ao pedido dela?

      Julieta diz que, caso ele não queira, ela deixará de assinar o próprio sobrenome, ou seja, não pertencerá mais à própria família.

 

04.               Por fim, considerando o contexto apresentado na cena 9, releia esta frase: “Em ti só o teu nome é que é meu inimigo!”. Explique-a.

       O contexto apresentado e a frase nos remetem à ideia principal da peça, que é a rixa entre a família de Julieta, os

Capuleto, e a família de Romeu, os Montecchio.

 

05.               Observe o trecho a seguir e explique o que são e o que indicam estas partes da peça teatral.

“Romeu: (cantando.)

É a ti flor dos céus que me refiro

Neste trino de amor, nesta canção

Vestal dos sonhos meus por quem suspiro

E sinto palpitar meu coração É a ti flor do céu...

Indicam a rubrica, que é a fala do personagem Romeu e o texto em itálico que indica que o personagem está cantando.


06. O gênero dramático — texto teatral é um gênero escrito para ser:

         (A)narrado.         (B) cantado.      

         (C) estudado.     (D) encenado.

 07. Em Romeu e Julieta, Shakespeare substitui a comédia pela tragédia, aumentando a tensão da história, o que pode levar o leitor:

a. a chorar ao longo de toda a história.

b. a rir ao longo de toda a história.

 

  c. a rir e a chorar ao longo da história.

d. a não se emocionar ao longo da história.

08. Pensando nas características do texto teatral e na história apresentada, é possível afirmar que esse texto pretende:

a.   ser interpretado para encantar com a história de amor de Romeu e Julieta.

b.   esclarecer alguns fatos dessa história.

c.   instruir a respeito de como devemos amar.

d.  recomendar que todos leiam Romeu e Julieta.

09.  Quais outros recursos são empregados no texto que ajudam a identificar os sentimentos e as reações dos personagens?

         A interjeição “oh”, e os sinais de pontuação como a interrogação, a exclamação e as reticências.


CRÔNICA: SÓ QUERO UM PRESENTE - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 CRÔNICA: Só quero um presente

                 Rubem Alves

Minhas netas: no dia 15 o vô ficou mais velho. Bobagem, porque a gente envelhece o tempo todo; o tempo não para; é como o rio. Só que a gente não percebe. Mas aí chega um dia que faz a gente parar e prestar atenção: o dia do aniversário. No dia do aniversário a gente diz: “Passou mais um ano da minha vida”. É o dia quando os números mudam. Quando me perguntam: “Qual é a sua idade?” – eu respondo: “67”. Mas depois do dia 15 a resposta é “68”.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-01fvWl6ck6q36oi9qtync_sZwb53LhiWy6GIRfpUUY60FfljwYgcsUHlEz925iBvrorphBeIkeb7lRSJ8QLuaLagI0hjO0Udw7shjV2pzHrEi3aZKgfKhCS3t2G5SDi662gMNth9gQlOvNT6LYtEWCS4B_1HZcE-pFH0rw8qoGFJodaXl0HQ47s2LOE/s1600/PRESENTE.jpg


Vocês crianças, quando pensam em aniversário, dão risada e ficam felizes. Aniversário é dia de festa e presentes. Toda criança quer que o tempo passe depressa para ficar mais velha, deixar de ser criança e ficar adulta. Acham que ser criança é coisa ruim, porque crianças não são donas do seu nariz, não fazem o que querem. Bom mesmo é ser grande. Os grandes fazem o que querem e não precisam pedir permissão. Criança é passarinho sem asas. Adulto é passarinho com asas: voam bem alto e vão aonde as crianças não podem ir. No dia do aniversário as crianças olham para frente: imaginam que está chegando o dia quando elas terão asas e poderão voar.

Os grandes, no dia do aniversário, olham para trás. Eles têm saudades do tempo em que eram crianças. É só depois que a gente deixa de ser criança que a gente descobre que ser criança é muito bom.

Explico de outro jeito. Imaginem que vocês vão fazer uma viagem. A felicidade da viagem começa antes da viagem. A gente examina mapas, lê artigos sobre os lugares que vão ser visitados, conversa com amigos que já foram, olha fotografias. E só de imaginar fica feliz.

Depois de feita a viagem é diferente. A felicidade ficou para trás. Só resta ver as fotos e conversar…

Criança é quem ainda não viajou e fica feliz imaginando a viagem. Viagem imaginada é sempre feliz. Adulto é quem já viajou e fica feliz olhando as fotos da viagem.

Foi por isso que resolvi mexer numa caixa de fotografias velhas – fotografias do tempo em que eu era menino. Foi o tempo mais feliz da minha vida. Caí muitas vezes, cortei o pé com cacos de vidro (eu andava sempre descalço), me espetei com espinhos e pregos, cortei a mão com faca e serrote, fiquei doente, tive dor de dente, me queimei (eu vivia correndo; entrei correndo na cozinha e dei uma topada com a cozinheira que carregava uma panela de água fervente. A panela virou, a água fervente entornou no meu braço e peito; doeu muito; fiquei todo empolado), martelei o dedo, fui picado por marimbondos e abelhas, pus a mão em taturanas, caí de árvores, senti muita dor. Mas as dores passavam logo. E a alegria voltava. Fui um menino sempre alegre. Tudo no mundo me encantava. Menino, eu não imaginava que, um dia, eu seria velho…

Pois esse dia chegou. Meu aniversário me diz que agora sou velho. Ser velho tem vantagens. Uma delas é ser avô. Se eu fosse jovem não seria avô, não teria netas. E não estaria escrevendo agora pensando em vocês – porque vocês não existiriam. Houve um tempo em que vocês não existiam. Vocês só existem porque eu deixei de ser criança e fiquei velho. Vocês são, para mim, um motivo de alegria.

[...]

Não quero presentes comprados. Não preciso de nada. Um presente que vocês, minhas netas, e os meus filhos, me poderiam dar é simples: ler as coisas que eu escrevo. Cada coisa que eu escrevo – quero que cada uma delas seja gostosa como um morango vermelho… Escrevo para dar felicidade.

Quero que vocês sejam felizes.

ALVES, Rubem. Só quero um presente. In: Quando eu era menino. Campinas: Papirus, 2003.

 

Entendendo o texto

01. Sobre qual assunto cotidiano a crônica trata?

          Sobre as reflexões de um avô diante do aniversário e da percepção do próprio envelhecimento.

02. Segundo o cronista, qual é a principal diferença entre a criança e o adulto no dia do aniversário?

          A criança deseja que o tempo passe depressa para ficar adulta. Já os adultos sentem saudade do tempo em que eram crianças.

03. Assinale (V) para as afirmativas verdadeiras e (F) para as falsas.

        ( F ) O cronista deseja um presente bem caro.

        ( V ) O cronista pensa que a velhice tem suas vantagens, uma delas é ser avô.

       ( V ) As netas são motivo de alegria para o cronista.

04. Considerando o desfecho da crônica, explique o sentido do título.

          O título “Só quero um presente” faz referência ao pedido de presente de aniversário do avô, destacado no desfecho da crônica: ele deseja que suas netas sejam felizes.

05. Leia os trechos e responda às questões.“[...] o tempo não para; é como o rio.”

a.   Quais elementos são comparados?

               O tempo e o rio.

b.   Explique em que consiste a comparação feita.

               Tanto o tempo quanto o rio têm como característica comum o fato de nunca pararem.

06. Leia o trecho e responda às questões.

(A) Criança é passarinho sem asas.

(B) Adulto é passarinho com asas: voam bem alto e vão aonde as crianças não podem ir.

a.   Que elementos são comparados implicitamente em cada trecho?

              A: crianças e passarinho sem asas;

             B: adulto e passarinho com asas.

        b.   Explique em que consiste a comparação feita.

         As asas são elementos empregados para se referir à condição de liberdade. Assim, as crianças ainda não se sentem livres, enquanto os adultos, sim.

        c.   Que efeito essa comparação implícita garante ao texto?

          O emprego de metáfora garante mais poeticidade e expressividade ao texto.

        07. A crônica lida tem a finalidade de promover:

            a.   o humor.

           b.   a ironia.

          c.   a reflexão.

          d.   a crítica.

      08. Considerando a crônica lida, é possível afirmar que ela pretende levar o leitor a concluir que:

         a.   a infância é a fase mais importante da vida.

         b.   a fase adulta é a fase mais importante da vida.

        c.   a velhice é a fase mais importante da vida.

       d.   todas as fases da vida são importantes.

 

 

CONTO: HISTÓRIA DE UM BODE - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 CONTO: História de um bode

                   Graciliano Ramos

 – Outro caso que tenho pensado em contar a vossemecês é o do bode, anunciou Alexandre um domingo, sentado no banco do copiar. Podemos encaixá-lo aqui para matar tempo. Que diz, seu Firmino?

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg5MTNJQcaMcnHgSx9h4aTQZUb008LtKDWB2LfoJ2MgPbEoFWrQ5GpuSb-q_wVivli109KGQ-qdfiKlqrZvLxB-GS0Ii40Efo6X_Ze-kkgRbDM1_F1nBTShPYBgEk0nakYyioyRZoCsYqkzwNnWSFTKWsdLuj48KF8r4MxW3Lwlh5JL8jSshue_TXJNOao/s320/bode.jpg
O cego preto Firmino e mestre Gaudêncio curandeiro, os dois ouvintes daquela tarde, sem falar em Das Dores e Cesária, entusiasmaram-se:

– Está certo, seu Alexandre. Bote o bode para fora.

– Venha o bode, meu padrinho, exclamou Das Dores batendo palmas. Alexandre tomou fôlego e principiou:

– Isso se deu pouco tempo depois da morte da onça. Os senhores se lembram, a onça que morreu de tristeza por falta de comida. Um ano depois, mais ou menos. Havia lá na fazenda uma cabra que tinha sempre de uma barrigada três cabritos fornidos. Três cabritos, pois não, três bichos que faziam gosto. Uma vez, porém, nasceu apenas um cabrito, mas tão grande como os três reunidos, tão grande que o pessoal da casa se admirou. Eu disse comigo:

— “Isto vai dar coisa.” Era realmente um cabrito fora de marca. Tanto que recomendei ao tratador das cabras:

— “Deixe que este bicho mame todo o leite da mãe. Quero ver até que ponto ele cresce.” Mamou e cresceu, ficou um despotismo de cabrito. Eu tinha uma ideia que parece maluca, mas os senhores vão ver que não era. Um animal daquele podia perder-se como bode comum, seu Gaudêncio? Não podia. Foi o que pensei. Quando ele endureceu, botei-lhe os arreios e experimentei-o. Saltou muito, depois amunhecou, e vi que ele ainda não aguentava carrego. Passados alguns meses, tornei a experimentar: deu uns pinotes, correu feito um doido e aquietou-se. Achei que estava taludo e comecei a ensiná-lo. Sim senhores, deu um bom cavalo de fábrica, o melhor que vi até hoje. Mandei fazer uns arreios bonitos, enfeitados com argolas e fivelas de prata — e metido nos couros, de perneiras, gibão e peitoral bem preparados, não deixava boi brabo na capueira. Rês em que eu passasse os gadanhos estava no chão. A minha fama correu mundo. Não era por mim não, era por causa do bode. Talvez os senhores tenham ouvido falar nele. Não ouviram? Muito superior aos cavalos. Os cavalos correm, e o bode saltava por cima dos alastrados e das macambiras. Por isso andava depressa. A dificuldade era a gente segurar-se no lombo dele. Eu me segurava, conhecia todas as manhas e cacoetes do bicho. Quando me aprumava na sela, nem Deus me tirava de lá. Ora numa vaquejada que houve na fazenda vieram todos os vaqueiros daquelas bandas. Meu pai matou meia dúzia de vacas e abriu pipas de vinho branco para quem quisesse beber. Nunca se tinha dado festa igual. Cesária estava lá, de roupa nova, brincos nas orelhas e xale vermelho com ramagens. Hem, Cesária?

– É verdade, Alexandre, respondeu Cesária. Essa festa ficou guardada aqui dentro. Você apareceu de gibão, perneiras, peitoral e chapéu de couro, tudo brilhando, enfeitado de ouro.

– Exatamente, gritou Alexandre, tudo enfeitado de ouro. Trouxeram o bode arreado, montei-me e pensei:

— “Vai ser uma desgraceira. Quem chegue perto de mim pode haver, mas quem passe adiante é que não.” Esse bode, meus amigos, era do tamanho de um cavalo grande. Sim senhores. Do tamanho de um cavalo grande, muito barbudo e com um par de chifres perigosos, inconvenientes no princípio. A gente se metia na catinga, e ele enganchava as pontas nos cipós, gastava tempo sem fim para se desembaraçar. Mas como era um vivente caprichoso e não tinha nascido para correr, logo viu que, pulando por cima dos pés de pau, não se atrapalhava. E fazia um barulhão, soltava berros medonhos. Ora muito bem. No dia da vaquejada, quando me escanchei e peguei na rédea, o bicho largou-se pelo pátio, como quem não quer e querendo, num passinho miúdo que não dava esperança. Os vaqueiros caçoavam de mim:

— “Que figura, meu Deus! Era melhor que estivesse montado num cabo de vassoura.” E eu calado, com pena deles todos, e o bode no passinho curto, mangando dos cavalos.

De repente avistei uma novilha que não conhecia mourão e gritei para os outros:

— “Aquela é minha.”

A resposta foi uma gargalhada, mas só ouvi o começo dela, porque um minuto depois estava longe, percebem? É isto mesmo. O bode, que ia brincando, fazendo pouco dos cavalos, empinou-se e tomou vergonha. Foi um desespero. A novilha escapuliu-se, ligeira como o vento, e nós na rabada dela, pega aqui, pega acolá, íamos voando. Sim senhores, voando, que aquilo não era carreira. O mato me açoitava a cara e um assobio me entrava pelos ouvidos. Não se enxergava nada. Só uma nuvem de poeira, e dentro da poeira os quartos da novilha. Nunca vi boi correr daquele jeito, parecia feitiço. Eu me aproximava da bicha, ela torcia caminho e se afastava. Pelejamos assim muitas horas. Pega aqui, pega acolá, suponho que andamos umas sete léguas. Afinal chegamos à ribanceira de um rio seco, a novilha parou, eu consegui passar as unhas no sedenho dela e foi a conta. Arreou, despencou-se lá de cima e caiu numas pedras que havia no meio do rio. Desci a ribanceira, apeei e notei que a infeliz tinha desmantelado a pá direita na queda. Fiz o que pude para levantá-la e não houve remédio. Vejam vossemecês que eu estava num embaraço muito grande. Como havia de provar aos outros vaqueiros que a novilha tinha sido pegada? Hem? Como havia de provar? Aí é que estava o negócio.

Nesse ponto o cego preto Firmino fez uma pergunta:

– O bode tinha descido com o senhor ou tinha ficado na ribanceira?

– Não me interrompa, seu Firmino, resmungou Alexandre. Assim a gente não pode contar. Então eu já não expliquei? Desci e apeei, foi o que eu disse. Foi ou não foi?

– Exatamente, concordou mestre Gaudêncio.

– Pois é, continuou Alexandre. Se eu desci primeiro e apeei depois, naturalmente desci montado. Isto é claro. Desci montado, percebe? Com um salto. O natural do bode, como ninguém ignora, é saltar. E agora os senhores me façam o favor de escutar, para não me virem com perguntas tolas. Sabem que eu estava atrapalhado para dar aos outros vaqueiros a notícia da pega. Se contasse a história com todos os ff e rr, eles haviam de acreditar, mas eu queria chegar à fazenda com a rês. E, por desgraça, a pobre estava ali caída, ruim de saúde, com uma pá quebrada. Depois de muito pensar, resolvi, não podendo levá-la, mostrar ao pessoal ao menos uns pedaços dela. Acham que pensei direito? Não havia outro jeito, meus amigos. Puxei a faca de ponta, sangrei a novilha, esfolei-a, tirei um quarto dela e amarrei-o na garupa do bode. Botei o couro na maçaneta da sela, pisei no estribo e tomei o caminho de casa. Isto é, pisei no estribo, montei, o bode pulou para cima da ribanceira e tomou o caminho de casa. Para seu Firmino é preciso que a gente diga tudo, palavra por palavra. Se eu não escorresse tantas miudezas, talvez seu Firmino pensasse que eu tinha viajado com um pé no estribo e outro no chão. Pois é verdade. Larguei-me para casa, devagar, fumando, matutando. Passei por baixo de um pau a cavaleiro da estrada. Não liguei importância a isso: galhos tortos há muitos, e eu ia embebido, fora do mundo, sim senhores. De repente uma coisa me chamou a atenção: o bode começou a puxar uma perna traseira. Caminhava algumas braças e arrastava a perna, como se estivesse carregando um peso grande.

— “Que diabo terá este bode?”, perguntei a mim mesmo. Um bicho que nunca tinha feito figura triste, acostumado a varar capueira, cansando à toa! Ali havia coisa. Olhei para trás. Sabem que foi que vi? Calculem. Imaginem que foi que eu vi, Das Dores.

Das Dores espiou a telha e ficou um minuto pensando. Baixou os olhos e confessou:

– Não sei não, meu padrinho. Como é que eu posso adivinhar o que o senhor viu? Uma alma do outro mundo?

– Não, Das Dores, respondeu Alexandre. Vi uma onça. Uma onça lombo- preto, sim senhora, trepada na garupa do bode e já com o bote armado para me agarrar.

— “Estou comido”, pensei. Mas não perdi a calma. Sou assim, nunca perdi a calma. Certamente aquela diaba estava em cima do galho torto e na minha passagem tinha voado na carne fresca. Virei o rabo do olho para o traseiro do animal. Só havia ali o cangaraço da novilha, osso esbrugado. Se eu não tivesse muito sangue-frio, era um homem perdido. Mas encomendei-me a Deus e disse baixinho: — “Morto eu já estou, morto e quase jantado por esta miserável. Agora cruzar os braços e entregar-me à sorte é que não vai. Nem cruzo nem me entrego. Quem está morto não se arrisca. Não vale a pena ter medo, e o que vier na rede é peixe.” Puxei o facão devagarinho, virei-me de supetão e — zás! — no pescoço da onça. Ela caiu no chão, meio azuretada, eu dei um salto e cortei-lhe a cabeça que foi amarrada na maçaneta da sela, junto ao couro da novilha. Montei- me de novo e uma hora depois estava no pátio da fazenda, conversando com os vaqueiros. Cesária pode confirmar o que eu digo.

– Perfeitamente, Alexandre, exclamou Cesária. Conte o resto.

– O resto é aquilo que você viu. Meu irmão tenente, isto é, meu irmão mais novo, pessoa de coragem que mais tarde chegou a tenente de polícia, ficou amarelo como flor de algodão. Eu expliquei a coisa com todos os pontos e vírgulas, mandaram buscar o resto da novilha e o corpo da onça. Foi uma admiração, meus amigos, e a festa da vaquejada rolou muitos dias. Meu irmão tenente…

– E o bode? murmurou o cego. Que fez o senhor do bode?

– Ora essa! rosnou Alexandre. O bode se finou, como todos os viventes. Se fosse vivo, tinha trinta anos, e nunca houve bode que vivesse tanto. Morreu, sim senhor. E fez muita falta, foi o melhor cavalo de fábrica daquela ribeira.

Entendendo o texto

01. No texto apresentado, Alexandre narra um causo.

          Quem são seus interlocutores?

      Seu Firmino, mestre Gaudêncio, Das Dores e Cesária.

02. Que história é contada a eles?

          A história de um bode tão grande que foi usado como cavalo em vaquejadas.

03. Em um causo, é comum o emprego de palavras e expressões que marcam a passagem do tempo.

a. Identifique-as em cada um dos trechos a seguir.

         “Um ano depois, mais ou menos. Havia lá na fazenda uma cabra que tinha sempre de uma barrigada três cabritos fornidos.”

          Um ano depois.

         b. “ Uma vez, porém, nasceu apenas um cabrito, mas tão grande como os três reunidos, tão grande que o pessoal da casa se admirou.”

          Uma vez.

        c. “ Passados alguns meses, tornei a experimentar: deu uns pinotes, correu feito um doido e aquietou-se.”

          Alguns meses.

       d. “Quando me aprumava na sela, nem Deus me tirava de lá.”

            Quando me aprumava na sela.

04. No trecho “Eu disse comigo: — ‘Isto vai dar coisa’”, é possível inferir que o narrador do causo é:

a.   narrador-personagem, pois o verbo e o pronome destacados estão na primeira pessoa.

b.   narrador-observador, pois o verbo e o pronome destacados estão na terceira pessoa.

c.   narrador-personagem, pois o verbo e o pronome destacados estão na terceira pessoa.

d.   narrador-observador, pois o verbo e o pronome destacados estão na primeira pessoa.

05.  Em relação ao espaço em que se passa a história narrada por Alexandre, é possível concluir que se trata de um espaço:

         (  )  urbano.         (x ) rural.

06. Quando chegou à vaquejada, Alexandre usava perneira, gibão e peitoral. Pesquise o significado de cada um desses acessórios e escreva-os a seguir.

         perneira: peça que protege as pernas dos vaqueiros;

         gibão: casaco de couro usado por vaqueiros; e

         peitoral: placa de couro que cobre o peito.

07. Releia o trecho a seguir.

          “Outro caso que tenho pensado em contar a vossemecês é o do bode.”

a.   A quem Alexandre se dirige ao empregar a expressão destacada?

         Aos seus interlocutores.

b.   O que essa expressão significa e por que ela foi empregada?

         A palavra vossemecês é a contração de vossas mercês, que significa uma forma mais antiga do pronome de tratamento você.       Pode ter sido empregada para demonstrar respeito pelos interlocutores.

08. Por que, no trecho a seguir, foram empregados as aspas e o travessão ao mesmo tempo?

          — “Vai ser uma desgraceira. Quem chegue perto de mim pode haver, mas quem passe adiante é que não.”

        Para forçar que é o próprio narrador-personagem falando diretamente.