CRÔNICA: O QUE DIZEM AS CAMISETAS
Carlos Drummond de Andrade
__ Que é que ele está anunciando? __ indagou o cabo
eleitoral, apreensivo. __ Será que faz propaganda do voto em branco? Devia ser
proibido!
__ O cidadão é livre de usar a camiseta que quiser __
ponderou um senhor moderado.
__ Em tempo de eleição, nunca __ retrucou o
outro. __ Ou o cidadão manifesta sua preferência política ou é um
sabotador do processo de abertura democrática.
__ O voto é secreto.
__ É secreto, mas a camiseta não é, muito pelo
contrário. Ainda há gente neste país que não assume a sua responsabilidade
cívica, se esconde feito avestruz e ...
__ Ah, pelo que vejo o amigo não aprova as pessoas que
gostam de usar uma camiseta limpinha, sem inscrição, na cor natural em que saiu
da fábrica.
A discussão ia rolar quando apareceu Christiane
Torloni (1), pedestre, ostentando bem visível, no peito, o nome de Eduardo
Mascarenhas (2). Todos ficaram deslumbrados.
__ Nessa eu votaria até para presidente da República,
do Banco Central, da ONU, de qualquer troço __ exclamou outro.
__ Ela não é candidata.
__ E precisa?
Ficou patente que as pessoas reparam mais no rosto do
que na inscrição, embora a falta de inscrição provoque a ideia de que falta
alguma coisa __ a identidade, o nariz, sei lá.
Vi na rua Sete de Setembro um homem que trazia a
inscrição "Guiné-pipi" na frente e nas costas.
__ Candidato a vereador? -- perguntei. __ De que
partido?
__ Não, senhor. Erva contra reumatismo. Quer
experimentar? É um porrete. Trago para o senhor uma amostra da fábrica., lá de
Cordovil (3).
__ Obrigado, amigo. O Dr. Nava já cuida do meu.
__ Mas qualquer problema, o senhor não tenha
cerimônia. É só dizer, que eu falo com os colegas, conforme o caso. Ou o senhor
mesmo fala, se encontrar com um deles.
__ E como é que eu vou saber?
__ Pela camiseta, é claro. Tem o Cipó-Azougue, que é
um balaço contra eczema, aliás, pessoalmente, é um cara ótimo. O Beldroega (faz
pouco ele passou por aqui) toma conta do fígado e depura o sangue. Do
Sete-Folhas, que é até meu vizinho, vejo que o senhor não carece, pois é para
emagrecer. Agora, convém não esquecer o Boldo. Lá um dia a gente tem uma
ressaca, e o Boldo resolve.
Vi que as camisetas da medicina natural são numerosas,
mas as de uísques, vinhos alemães, motos, motéis, cigarros, antigripais,
cursinhos, judô, budismo, loteria, jogo de búzios, etc. não fazem por menos.
Hoje em dia não há produto que não tenha, além dos comunicadores remunerados,
outros absolutamente gratuitos, e estes são maioria. Todo mundo anuncia alguma
coisa, e a camiseta é o cartaz na pele. Sendo de notar que há tendência para
anunciar para anunciar até no bumbum. Mas este é um ramo ainda experimental.
[...]
Quis empreender pesquisa de campo no domínio das
inscrições no anverso e no reverso do vestuário. Desisti porque teria de
elaborar um código de classificação muito complexo, tamanha a variedade de
interesses humanos que se refletem numa etiqueta comercial, industrial,
política, esportiva, religiosa, onírica. Hoje em dia a camiseta serve para
tudo, até (não principalmente) para vestir. E acompanha também a veloz
deterioração das coisas, sinal de finitude hoje mais visível do que nunca.
Puxa, como as coisas acabam cada vez mais depressa! Não há mais condições para
gravar palavras eternas em muros de catedral. Hoje estampam-se recados em
camisetas descartáveis. Como esta crônica.
(In "Moça deitada na grama", Rio de Janeiro, Record, 1987, p. 38-40)
(1) Atriz de teatro, cinema e televisão.
(2) Na época, candidato a cargo eletivo. A atriz era cabo eleitoral do
candidato.
(3) Logradouro da cidade do Rio de Janeiro.
VOCABULÁRIO
·
Ponderar: observar, alegar,
expor, considerar.
·
Patente: claro, evidente.
·
Depurar: purificar.
·
Anverso: lado principal nos
objetos que têm dois lados opostos.
·
Reverso: lado oposto ao
principal; verso.
·
Onírico: relacionado aos
sonhos.
·
Deterioração: estrago,
degeneração.
1. O conflito em torno do qual se desenvolveu a narrativa foi o fato de:
(A) alguém aparecer com uma camiseta sem nenhuma inscrição.
(B) muitas pessoas não assumirem sua responsabilidade cívica.
(C) um senhor comentar que o cidadão goza de total liberdade.
(D) alguém comentar que a camiseta, ao contrário do voto, não é secreta.
O que importa mais no
texto:
(A) É a descrição dos personagens que vestem
camisetas com inscrições.
(B) É a narração do encontro do cronista com o
homem que anuncia remédios.
(C) É a narração do
aparecimento da atriz.
(D) É a reflexão sobre a moda das camisetas com inscrições.
3. Diante das demonstrações de deslumbramento das pessoas, o que conclui o cronista?
O cronista conclui que
há diversas interpretações no que diz respeito à finalidade das inscrições nas
camisetas.
(A) Todos têm de se posicionar em relação as
coisas.
(B) As coisas se deterioram rapidamente.
(C)
As
camisetas se tornam o veículo de propaganda de ideias duradouras.
(D) Todas as crônicas,
assim como as camisetas, são descartáveis.
5. De acordo com o final do texto, as camisetas, atualmente, substituem os muros de catedral porque:
(A) São mais práticas.
(B) Nas camisetas nunca aparece uma mensagem
séria.
(C)
Já não
existem catedrais.
(D) As coisas se deterioram
cada vez mais depressa.
6. Independentemente de terem ou não inscrições, você acha que as roupas revelam a maneira de ser das pessoas? Justifique.
Resposta pessoal.