domingo, 9 de maio de 2021

CRÔNICA: O QUE DIZEM AS CAMISETAS - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

 CRÔNICA: O QUE DIZEM AS CAMISETAS

                       Carlos Drummond de Andrade

      Apareceram tantas camisetas com inscrições, que a gente estranha ao deparar com uma que não tenha nada escrito.

     __ Que é que ele está anunciando? __ indagou o cabo eleitoral, apreensivo. __ Será que faz propaganda do voto em branco? Devia ser proibido!
     __ O cidadão é livre de usar a camiseta que quiser __ ponderou um senhor moderado.
     __ Em tempo de eleição, nunca __ retrucou o outro.  __ Ou o cidadão manifesta sua preferência política ou é um sabotador do processo de abertura democrática.
     __ O voto é secreto.
     __ É secreto, mas a camiseta não é, muito pelo contrário. Ainda há gente neste país que não assume a sua responsabilidade cívica, se esconde feito avestruz e ...
     __ Ah, pelo que vejo o amigo não aprova as pessoas que gostam de usar uma camiseta limpinha, sem inscrição, na cor natural em que saiu da fábrica.
     A discussão ia rolar quando apareceu Christiane Torloni (1), pedestre, ostentando bem visível, no peito, o nome de Eduardo Mascarenhas (2). Todos ficaram deslumbrados.
     __ Nessa eu votaria até para presidente da República, do Banco Central, da ONU, de qualquer troço __ exclamou outro.
     __ Ela não é candidata.
     __ E precisa?
     Ficou patente que as pessoas reparam mais no rosto do que na inscrição, embora a falta de inscrição provoque a ideia de que falta alguma coisa __ a identidade, o nariz, sei lá.
     Vi na rua Sete de Setembro um homem que trazia a inscrição "Guiné-pipi" na frente e nas costas.
     __ Candidato a vereador? -- perguntei. __ De que partido?
     __ Não, senhor. Erva contra reumatismo. Quer experimentar? É um porrete. Trago para o senhor uma amostra da fábrica., lá de Cordovil (3).
     __ Obrigado, amigo. O Dr. Nava já cuida do meu.
     __ Mas qualquer problema, o senhor não tenha cerimônia. É só dizer, que eu falo com os colegas, conforme o caso. Ou o senhor mesmo fala, se encontrar com um deles.
     __ E como é que eu vou saber?
     __ Pela camiseta, é claro. Tem o Cipó-Azougue, que é um balaço contra eczema, aliás, pessoalmente, é um cara ótimo. O Beldroega (faz pouco ele passou por aqui) toma conta do fígado e depura o sangue. Do Sete-Folhas, que é até meu vizinho, vejo que o senhor não carece, pois é para emagrecer. Agora, convém não esquecer o Boldo. Lá um dia a gente tem uma ressaca, e o Boldo resolve.
     Vi que as camisetas da medicina natural são numerosas, mas as de uísques, vinhos alemães, motos, motéis, cigarros, antigripais, cursinhos, judô, budismo, loteria, jogo de búzios, etc. não fazem por menos. Hoje em dia não há produto que não tenha, além dos comunicadores remunerados, outros absolutamente gratuitos, e estes são maioria. Todo mundo anuncia alguma coisa, e a camiseta é o cartaz na pele. Sendo de notar que há tendência para anunciar para anunciar até no bumbum. Mas este é um ramo ainda experimental. [...]
     Quis empreender pesquisa de campo no domínio das inscrições no anverso e no reverso do vestuário. Desisti porque teria de elaborar um código de classificação muito complexo, tamanha a variedade de interesses humanos que se refletem numa etiqueta comercial, industrial, política, esportiva, religiosa, onírica. Hoje em dia a camiseta serve para tudo, até (não principalmente) para vestir. E acompanha também a veloz deterioração das coisas, sinal de finitude hoje mais visível do que nunca. Puxa, como as coisas acabam cada vez mais depressa! Não há mais condições para gravar palavras eternas em muros de catedral. Hoje estampam-se recados em camisetas descartáveis. Como esta crônica.


(In "Moça deitada na grama", Rio de Janeiro, Record, 1987, p. 38-40)
(1) Atriz de teatro, cinema e televisão.
(2) Na época, candidato a cargo eletivo. A atriz era cabo eleitoral do candidato.
(3) Logradouro da cidade do Rio de Janeiro.

VOCABULÁRIO

·        Ponderar: observar, alegar, expor, considerar.

·        Patente: claro, evidente.

·        Depurar: purificar.

·        Anverso: lado principal nos objetos que têm dois lados opostos.

·        Reverso: lado oposto ao principal; verso.

·        Onírico: relacionado aos sonhos.

·        Deterioração: estrago, degeneração.

 

 ENTENDENDO O TEXTO

1.   O conflito em torno do qual se desenvolveu a narrativa foi o fato de:  

(A) alguém aparecer com uma camiseta sem nenhuma inscrição.

(B) muitas pessoas não assumirem sua responsabilidade cívica.

 (C) um senhor comentar que o cidadão goza de total liberdade.

(D) alguém comentar que a camiseta, ao contrário do voto, não é secreta.​

 2.   Assinale (x) para responder:

O que importa mais no texto:

(A)    É a descrição dos personagens que vestem camisetas com inscrições.

(B)    É a narração do encontro do cronista com o homem que anuncia remédios.

(C)       É a narração do aparecimento da atriz.

(D)       É a reflexão sobre a moda das camisetas com inscrições.


3.   Diante das demonstrações de deslumbramento das pessoas, o que conclui o cronista?

O cronista conclui que há diversas interpretações no que diz respeito à finalidade das inscrições nas camisetas.

 4.   Segundo o raciocínio do cronista, as inscrições em camisetas demonstram que:

(A)    Todos têm de se posicionar em relação as coisas.

(B)    As coisas se deterioram rapidamente.

(C)       As camisetas se tornam o veículo de propaganda de ideias duradouras.

(D)       Todas as crônicas, assim como as camisetas, são descartáveis.

5.   De acordo com o final do texto, as camisetas, atualmente, substituem os muros de catedral porque:

(A)     São mais práticas.

(B)     Nas camisetas nunca aparece uma mensagem séria.

(C)       Já não existem catedrais.

(D)       As coisas se deterioram cada vez mais depressa.

6.   Independentemente de terem ou não inscrições, você acha que as roupas revelam a maneira de ser das pessoas? Justifique.

                   Resposta pessoal.

CRÔNICA: EQUIPAMENTO ESCOLAR - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

 CRÔNICA: EQUIPAMENTO ESCOLAR

                 Carlos Drummond de Andrade

_Pai! O material não tá completo não.

_O quê? Se eu já comprei livros, apostilas, cadernos, pasta, caixa de lápis de cor, lápis preto, esferográfica, borracha mole, borracha dura, régua, compasso, clipe, apontador, tudo novo, novinho, porque o material do ano passado está superado, como é que não está completo?

_Cê esqueceu do gravador.

_Esqueci nada, rapaz. Vi o gravador na lista e achei que era piada. Vocês gostam de brincar com a gente.

_Brincadeira tem hora, pai. Tou precisando de gravador.

_Verdade?

­_Lógico. A turma toda vai de gravador, só eu que dou uma de palhaço?

_Nunca me constou que a característica do palhaço é não levar um gravador na mão.

_A tiracolo pai, com alça. Tem um modelo japonês, levinho, muito bacana. Também se leva na sacola.

_Então você quer aparecer no colégio portando gravador porque está na moda, pois não?

_Cê não entende lhufas. Gravador faz parte do equipamento escolar moderno.

_Começo a perceber. O professor fala, você grava. Então vamos jogar na lixeira esses cadernos, esses lápis, essa parafernália inútil.

_Para... o quê?

_Fernália. Uma palavra que não existe mas que se aplica neste caso.

_Taí, dessa eu gostei. Como é que se escreve?

_Não interessa. Basta você gravar, quando tiver gravador. Até lá, me explique direito como é a aula com gravador.

_Seguinte. A gente liga, o professor começa o garganteio, a fita vai gravando e...

_E o quê?

_A gente pensa noutra coisa, né?

_Entendi. Não há necessidade de estar atento ao professor, porque o gravador presta atenção para você. Certo?

_Mais ou menos. O grilo é que a gente tem de prestar atenção no gravador da gente, senão de repente ele solta uma faixa de Billy Cohbam, e aí é uma zorra global, entende?

_Entendo. Billy Cohbam não é autor recomendado pelo Cesgranrio.

_Por isso não. É que numa hora dessas a turma ataca de Pink Floyd ou de Mahavishnu, e a aula acaba sem a gente escutar um som legal, de tanta zoeira.

 _Então o uso do gravador na aula é muito inconveniente, filho. Baralha as músicas que vocês adoram. Preferível não levar gravador e deleitar-se com as músicas fora do colégio.

_Delei... o quê? Cês têm um papo esquisito. Mas eu saquei: cê não tá querendo comprar o gravador, e sem ele me passam pra trás.

_Não é isso. Queria que a aula de vocês fosse bem musical, e nem a voz do professor atrapalhasse, mas vejo que isto é impossível.

_Tou vendo. Mas olha aí. Mesmo com gravador, o material ainda tá faltando.

_Não me diga.

_Esqueci de botar na lista a minicalculadora. Faz uma falta danada na aula de Matemática. Beto já comprou a dele, Heleno também, Miquinha também.

_Pelo que vejo, o Brasil contará com grandes matemáticos no futuro.

_Tá debochando? Sem calculadora, como é que a gente vai calcular? Resolver um problema ouriçado?

_No meu tempo...

_Seu tempo já era. Não tinha calculadora, como é que cês iam precisar de calculadora?

_Talvez você tenha razão. Era um tempo muito mal equipado. Pior: nem equipado era.

_Viu? Gosto quando cê reconhece a verdade. Mas tem mais. Tá faltando o principal.

_Um helicóptero, imagino?

_Não. Um minicomputador. Tem aí um modelo escolar que é joia. Não pesa muito na mochila, é um barato, vou te contar. Sem microcomputador não posso aparecer no colégio, fico desmoralizado!

  ANDRADE, Carlos Drummond de.  As palavras que ninguém diz. Crônica. 4. ed.  Rio de Janeiro: Ed. Record, 1999. pp. 63-66.

 

VOCABULÁRIO:

1.Billy Cohbam: Baterista do grupo musical - Nirvana

2.Cesgranrio: Instituição que promovia o vestibular no Rio de Janeiro

3.Deleita-se: deliciar-se, agradar.

4.Lhufas: nada

5.Mahavishnu: Banda musical

6.Ouriçado: difícil, espinhoso

7.Parafernália: equipamento, acessório.

8.Pink Floyd: Grupo musical inglês

 ENTENDENDO O TEXTO

1. Aponte os temas presentes no texto: 

(A) O conflito de gerações.

(B) O autoritarismo dos mais velhos sobre os mais jovens.

(C) O domínio do grupo sobre a vontade do indivíduo.

(D) O consumismo nas novas gerações.

(E) A moral antiquada em choque com a moral moderna.

 

2.Em que época do ano ocorre a conversa entre o pai e filho? Como você chegou a essa conclusão?

No início do ano, já que foram comprados materiais escolares para o início do ano letivo.

 3. Interprete a expressão usada pelo filho ao argumentar com a necessidade de uma calculadora como material escolar. “_ Seu tempo já era.”

A época em que o pai era jovem é muito diferente da época do filho, cheia de inovações tecnológicas.
  

4.Releia os parágrafos 7,8 e 9 e responda:

Na sua opinião, o que o pai, ironicamente, quer ensinar ao seu filho?
A importância do professor e da utilização dos cadernos e lápis.

5.Complete os períodos abaixo, criando orações que contenham as ideias pedidas:

a) O uso do gravador é muito conveniente______________________________________________________(oposição, contraste) – Resposta pessoal.

b) Esqueci de colocar na lista a calculadora_____________________________________________________(conclusão) – Resposta pessoal.

c) O Brasil contará com grandes matemáticos no futuro__________________________________________________(alternância, escolha) – Resposta pessoal.

d) Sem microcomputador não posso aparecer no colégio __________________(explicação, razão, motivo) – Resposta pessoal.

e) O Brasil contará com grandes matemáticos no futuro ____________________________(alternância, escolha) – Resposta pessoal.

 

6.Numere as orações em destaque na 2ª coluna com as ideias estabelecidas pelas conjunções contidas na  1ª coluna:

(1) Tempo

(2) Proporção

(3) Condição de hipótese

(4) Causa

(5) Comparação

3Se eu já comprei livros, apostilas, cadernos, pasta, caixa de lápis de cor, lápis, canetas, borracha, régua, compasso, apontador, tudo o material já está completo?

1 ) Basta você gravar quando tiver gravador.

4  ) É desnecessário ficar atento ao professor porque o gravador presta atenção por você.

(  5 ) O meu tempo não era como o seu tempo é.

(  2 ) À medida que o tempo passa, a tecnologia avança até mesmo nas salas de aula.

7. Numere, de acordo com o desejo do filho no texto, os objetos, a partir da ordem estabelecida na crônica apresentada.

(  2  ) calculadora                           (  3 ) minicomputador

(  4  ) caderno                                 (  1 ) gravador

(  5  ) lápis

 

8. O que você notou quanto à linguagem das duas personagens?

a) do pai: linguagem formal.

b) do filho: linguagem coloquial, com uso de gírias.

9. Relacione os significados às palavras, numerando adequadamente a 2ª coluna de acordo com a 1ª .

(A) Carmem, por favor, traga-me a pasta bancária.

(B) Mamãe misturou a maionese com o presunto fazendo uma pasta.

(C) O professor Carvalho Lopes foi convidado para a pasta da Educação, mas não aceitou.

(D) Tem aí um modelo escolar de minicomputador jóia.

(E) Você conhece alguma mulher que não gosta de jóia?

(F) “Mas eu saquei: cê não tá querendo comprar o gravador...?”

(G) O policial sacou o revólver e fez com que o ladrão se rendesse.

(H) Saquei tudo o que tinha no banco.

 (  H  ) retirar.

(  C  ) órgão que promove a execução das leis, ministério.

(  G  ) puxar.

(  F  ) entender.

(  D  ) ser muito bom.

 

 

sábado, 8 de maio de 2021

POEMA: PASSAGEM DA NOITE - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

POEMA: PASSAGEM DA NOITE

    Carlos Drummond de Andrade

É noite. Sinto que é noite

não porque a sombra descesse

(bem me importa a face negra)

mas porque dentro de mim,

no fundo de mim, o grito

se calou, fez-se desânimo.

Sinto que nós somos noite,

que palpitamos no escuro

e em noite dissolvemos.

Sinto que é noite no vento,

noite nas águas, na pedra.

 

 E que adianta uma lâmpada?

E que adianta uma voz?

É noite no meu amigo.

É noite no submarino.

É noite na roça grande.

É noite, não é morte, é noite

de sono espesso e sem praia.

Não é dor, nem paz, é noite,

é perfeitamente a noite.

 

Mas, salve, olhar de alegria!

E salve, dia que surge!

Os corpos saltam do sono,

o mundo se recompõe.

Que gozo na bicicleta!

Existir: seja como for.

A fraterna entrega do pão.

Amar: mesmo nas canções.


De novo andar: as distâncias,

as cores, posse das ruas.

Tudo que à noite perdemos

se nos confia outra vez.

Obrigado, coisas fiéis!

Saber que ainda há florestas,

sinos, palavras; que a terra

prossegue seu giro, e o tempo

não murchou; não nos diluímos!

Chupar o gosto do dia!

Clara manhã, obrigado,

o essencial é viver!

 (Reunião. 10. ed. Rio de Janeiro:José Olympio, 1980. p. 88.)

Fonte: Livro- Português: Linguagem, 1/ William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11.ed – São Paulo: Saraiva, 2016, p.74/75.

(Fonte: Carlos Drummond de Andrade. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004, p. 132-133)

 

 ENTENDENDO O TEXTO

1. O poema está estruturado em três estrofes.

a) Que relação há entre a 3ª estrofe, iniciada pelo verso “Mas, salve, olhar de alegria!”, e as anteriores?

• contradição

• confirmação

• oposição

• aproximação

b) A relação entre as estrofes é representada por duas palavras. Quais são essas palavras?

São noite e dia.

2. A palavra noite, utilizada nas duas primeiras estrofes, está empregada em sentido figurado, ou seja, conotativo.

a) Que sentidos conotativos essa palavra tem no contexto?

Desânimo, desesperança.

b) Em que trechos do poema se nota o uso conotativo de noite?

“Sinto que é noite”, “Sinto que nós somos noite”, “Sinto que é noite no vento”, “É noite no meu amigo”.

 3. Na 3ª estrofe, a palavra dia também foi empregada em sentido conotativo e estabelece, portanto, oposição à noite.

a) Que sentidos conotativos essa palavra tem no contexto?

Alegria, prazer, esperança, vida.

b) Indique trechos do poema em que se observa o uso de sentidos conotativos de dia.

alegria: “salve, olhar de alegria!”, “salve, dia que surge!”; prazer: “Que gozo na bicicleta!”; esperança: “Saber que ainda há florestas, sinos, palavras”; vida: “o mundo se recompõe”, “Existir: seja como for”, “o essencial é viver!”

 4. O poema foi publicado no livro A rosa do povo, de 1945, que reúne textos escritos por Drummond durante a Segunda Guerra Mundial e a ditadura do Estado Novo, instaurada por Getúlio Vargas no Brasil. Considerando esse fato, indique as afirmativas verdadeiras:

a) A noite representa para o eu lírico um momento de tristeza e de desesperança, possivelmente relacionado com a guerra e a ditadura.

b) Apesar do descontentamento com o momento político, o poema manifesta a esperança de um futuro melhor.

c) As palavras noite e dia, empregadas conotativamente, representam respectivamente um tempo de dificuldades e um tempo de redenção.

d) Os sentimentos do eu lírico oscilam entre o modo como as pessoas, em geral, sentem a noite e o dia.

e) No poema, a contraposição entre dia e noite expressa o descontentamento do eu lírico com a passagem do tempo.

 


POEMA: GRITO NEGRO - JOSÉ CRAVEIRINHA - COM GABARITO

 POEMA: GRITO NEGRO


  José Craveirinha

 

Eu sou carvão!

E tu arrancas-me brutalmente do chão

e fazes-me tua mina, patrão.

Eu sou carvão!

e tu acendes-me, patrão

para te servir eternamente como força motriz

mas eternamente não, patrão.

Eu sou carvão

e tenho que arder, sim

e queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão

tenho que arder na exploração

arder até às cinzas da maldição

arder vivo como alcatrão, meu irmão

até não ser mais a tua mina, patrão.

Eu sou carvão

Tenho que arder

queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!

Eu serei o teu carvão, patrão!

(In: Mário de Andrade, org. Antologia temática de poesia africana.

3. ed. Lisboa: Instituto Cabo-Verdeano do Livro, 1980. v. 1. p. 180.).

Fonte: Livro- Português: Linguagem, 1/ William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11.ed – São Paulo: Saraiva, 2016, p.19/20.

 

GLOSSÁRIO

alcatrão: um dos componentes do carvão.

motriz: que se move ou faz mover alguma coisa

 Entendendo o texto

1. O texto lido é um poema, um dos vários gêneros literários. Nos poemas, é comum o eu lírico expor seus sentimentos e pensamentos.

a) Qual é o tema do poema lido?

É a relação de exploração que há entre o patrão e o eu lírico, supostamente seu escravo ou empregado.

 b) O que predomina nesse poema: aspectos individuais ou sociais?

 Resposta pessoal. Espera-se que os alunos percebam que, além da relação social, a mais evidente, há também a exposição dos sentimentos do eu lírico.

2. Os poemas geralmente utilizam uma linguagem plurissignificativa, isto é, uma linguagem figurada, em que as palavras apresentam mais de um sentido. O eu lírico do poema lido, por exemplo, chama a si mesmo de carvão. Que sentidos têm as palavras carvão e mina no contexto?

 O carvão representa a força de trabalho do negro (“a força motriz”) e a mina representa o próprio negro, ou seja, o lugar de onde o patrão extrai sua riqueza. Logo, carvão e mina representam a exploração do homem pelo homem, ou a exploração do homem negro pelo homem branco.

 3.Para o patrão, o eu lírico é carvão, pois é a força motriz do  trabalho e da produção. O eu lírico aceita sua condição de “carvão”, mas com um sentido diferente do que tem para o patrão. Releia os versos finais do poema e interprete o último verso.

“Eu sou carvão

Tenho que arder

queimar tudo com o fogo da minha

[combustão.

Sim!

Eu serei o teu carvão, patrão!”

 Resposta pessoal. Sugestão: Embora o eu lírico afirme que é carvão, não pretende continuar sendo o combustível da exploração do patrão, e sim “queimar tudo”, isto é, destruir a própria figura do patrão, que representa a exploração..

 4.O poema de Craveirinha, além de expressar os sentimentos e as ideias do eu lírico, é também uma recriação da realidade. Por meio dessa recriação o poeta denuncia as condições de vida a que eram submetidos os negros em Moçambique antes do processo de independência. Na sua opinião, a literatura pode contribuir para transformar a realidade concreta? Explique

Resposta pessoal.

Espera-se que os alunos respondam que sim, pois, denunciando os problemas da realidade, a literatura sensibiliza as pessoas, preparando-as e estimulando-as para as mudanças sociais.

 5.O escritor e educador Rubem Alves afirma que o escritor “escreve para produzir prazer”. Em sua opinião, a literatura proporciona prazer ao ser humano, mesmo quando trata de problemas sociais, como ocorre no poema de Craveirinha? Justifique sua resposta.

Resposta pessoal. Espera-se que os alunos respondam que sim, pois, mesmo quando trata de problemas sociais, a literatura é capaz de provocar emoções e reflexões no ser humano.

 

 

CRÔNICA: A MULHER SEM MEDO - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

 TEXTO I

Cientistas americanos estudam o caso de uma mulher portadora de

uma rara condição, em resultado da qual ela não tem medo de nada.

(Folha de S. Paulo, 17/12/2010. Cotidiano.)

TEXTO II

CRÔNICA: A MULHER SEM MEDO

                   Moacyr Scliar

Ele não sabia o que o esperava quando, levado mais pela curiosidade do que pela paixão, começou a namorar a mulher sem medo. Na verdade havia aí também um elemento interesseiro; tinha um projeto secreto, que era o de escrever um livro chamado “A Vida com a Mulher sem Medo”, uma obra que, imaginava, poderia fazer enorme sucesso, trazendo-lhe fama e fortuna. Mas ele não tinha a menor ideia do que viria a acontecer.

Dominador, o homem queria ser o rei da casa. Suas ordens deveriam ser rigorosamente obedecidas pela mulher. Mas como impor sua vontade? Como muitos ele recorria a ameaças: quero o café servido às nove horas da manhã, senão… E aí vinham as advertências: senão eu grito com você, senão eu bato em você, senão eu deixo você sem comida.

Acontece que a mulher simplesmente não tomava conhecimento disso; ao contrário, ria às gargalhadas. Não temia gritos, não temia tapas, não temia qualquer tipo de castigo. E até dizia, gentil: “Bem que eu queria ficar assustada com suas ameaças, como prova de consideração e de afeto, mas você vê, não consigo”.

Aquilo, além de humilhá-lo profundamente, deixava-o completamente perturbado. Meter medo na mulher transformou-se para ele em questão de honra.

Tinha de vê-la pálida, trêmula, gritando por socorro.

Como fazê-lo? Pensou muito a respeito e chegou a uma conclusão: para amedrontá-la só barata ou rato. Resolveu optar pela barata, por uma questão de facilidade: perto de onde moravam havia um velho depósito abandonado, cheio de baratas. Foi até lá e conseguiu quatro exemplares, que guardou num vidro de boca larga.

Voltou para casa e ficou esperando que a mulher chegasse, quando então soltaria as baratas.

Já antegozava a cena: ela sem dúvida subiria numa cadeira, gritando histericamente. E ele enfim se sentiria o vencedor.

Foi neste momento que o rato apareceu. Coisa surpreendente, porque ali não havia ratos, sobretudo um roedor como aquele, enorme, ameaçador, o Rei dos Ratos. Quando a mulher finalmente retornou encontrou-o de pé sobre uma cadeira, agarrado ao vidro com as baratas, gritando histericamente.

Fazendo jus à fama ela não demonstrou o menor temor; ao contrário, ria às gargalhadas. Foi buscar uma vassoura, caçou o rato pela sala, conseguiu encurralá-lo e liquidou-o sem maiores problemas. Feito que ajudou o homem, ainda trêmulo, a descer da cadeira.

E aí viu que ele segurava o vidro com as quatro baratas. O que deixou-a assombrada: o que pretendia ele fazer com os pobres insetos? Ou aquilo era um novo tipo de perversão?

Àquela altura ele já nem sabia o que dizer. Confessar que se tratava do derradeiro truque para assustá-la seria um vexame, mesmo porque, como ele agora o constatava, ela não tinha medo de baratas, assim como não tivera medo do rato. O jeito era aceitar a situação.

E admitir que viver com uma mulher sem medo era uma coisa no mínimo amedrontadora.

(Moacyr Scliar. Folha de S. Paulo, 17/1/2011.)

Fonte: Livro- Português: Linguagem, 1/ William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11.ed – São Paulo: Saraiva, 2016, p.13-15.

Entendendo o texto

1. O texto I é parte de uma notícia internacional.

a) Por que esse fato mereceu destaque no noticiário?

    Por ainda não se conhecer alguém que não tivesse algum tipo de medo.

 b) A que campo do conhecimento humano esse fato causa interesse?      Ao campo científico.

2. O texto II foi criado pelo escritor Moacyr Scliar a partir da notícia reproduzida no texto I.

a) Qual dos dois textos trata de um fato concreto da realidade?

     O texto I.

b) Qual deles cria uma história ficcional a partir de dados da realidade?

     O texto II.

3. O texto II, por ser uma crônica, apresenta vários componentes comuns a outros gêneros narrativos, como fatos, personagens, tempo, espaço e narrador. Além disso, apresenta também preocupação quanto ao modo como os fatos são narrados.

a) O que a narrativa revela quanto a características psicológicas do marido ao longo da história?

    Revela que ele era um homem curioso, dominador, competitivo.

b) Que dados da história comprovam sua resposta?

     O fato de ele se casar com a mulher por curiosidade, e não por amor; pelas tentativas constantes de dominá-la; pela relação competitiva que estabeleceu com a mulher.

    4. Observe estes fragmentos do texto:

• “Aquilo, além de humilhá-lo profundamente, deixava-o completamente perturbado.”

• “E ele enfim se sentiria o vencedor.”

Com base nesses fragmentos, conclua: Como o homem encarava a característica da mulher de não sentir medo?

Encarava como um desafio pessoal, como uma limitação dele, e não como uma característica dela.

5. Em sua última tentativa de amedrontar a mulher, o homem pensa em baratas e ratos.

a) Por que ele imaginou que esses seres poderiam amedrontá-la? Porque boa parte das pessoas, principalmente mulheres, tem medo de baratas e ratos.

b) O que o resultado dessa experiência mostrou quanto a quem tinha medo desses seres?

Mostrou que ele é quem tinha medo de ratos e baratas, e não ela.

6. Você observou que os dois textos abordam o mesmo tema. Apesar disso, eles são bastante diferentes. Essas diferenças se devem à finalidade e ao gênero de cada um dos textos, bem como ao público a que cada um deles se destina.

a) Qual é a finalidade principal do texto I, considerando-se que se trata de uma reportagem jornalística?

 Informar o leitor sobre um acontecimento raro.

b) Qual é a finalidade principal do texto II, considerando-se que se trata de uma crônica literária?

Entreter o leitor, diverti-lo, além de provocar algumas reflexões sobre a natureza humana.

7. A fim de sintetizar as diferenças entre os dois textos, compare-os e responda:

a) Qual deles apresenta uma linguagem objetiva, utilitária, voltada para explicar um problema da realidade?

O texto I.

b) Em qual deles a linguagem é propositalmente organizada com o fim de criar expectativa ou envolvimento do leitor?

O texto II.

c) Qual deles tem a finalidade de informar o leitor sobre a realidade?

O texto I.

d) Qual deles tem a finalidade de entreter, divertir ou provocar reflexões no leitor a partir de um tema da realidade?

O texto II.

e) Considerando as reflexões que você fez sobre a linguagem dos textos em estudo, responda:

Qual deles é um texto literário? Por quê?

O texto II, por ser um texto que recria ficcionalmente a realidade; por ter uma linguagem propositalmente organizada com o fim de criar mais de um sentido; e por entreter e divertir o leitor, além de provocar reflexões sobre a vida e o mundo.