terça-feira, 14 de maio de 2019

ROMANCE: SÃO BERNARDO (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

Romance: São Bernardo - (fragmento)
                   
                   Graciliano Ramos

        O episódio a ser lido situa-se no final da obra, dois anos após a morte de Madalena. Os amigos deixaram de frequentar a casa. Paulo Honório, concretizando uma antiga ideia de compor um livro com auxílio de pessoas mais entendidas, entrega-se à empreitada de contar a sua história. Após a leitura do fragmento abaixo, responda às questões sobre a obra em questão.
        “Sou um homem arrasado. Doença! Não. Gozo de perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nenhum médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.
        O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casaca espessa e vê ferir cá dentro a sensibilidade embotada.
        Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? [...]
        As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.
        Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.
         Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-o. sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.    
        De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:
        – Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.
        A agitação diminui.
        – Estraguei a minha vida estupidamente.
        Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos…Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.
         A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele.         
        Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.
        Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.     
        Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.      
        E a desconfiança terrível, que me aponta inimigos em toda a parte!
        A desconfiança é também consequência da profissão.
        Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.
        Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.
        Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.
        A vela está quase a extinguir-se.
        Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.
        Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.
        É horrível! Se aparecesse alguém…Estão todos dormindo.
        Se ao menos a criança chorasse…Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!
        Casimiro Lopes está dormindo, Marciano está dormindo. Patifes!
        E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”

        Graciliano Ramos (13.ed. Martins Fontes: São Paulo, 1970. p.241 e 246-8).
Entendendo o texto:

01 – Dê o significado das palavras a abaixo:
·        Imputar: atribuir.
·        Diligenciar: esforçar-se, empenhar-se.
·        Molecoreba: molecada.
·        Cambembe: desajeitado, desastrado, sem importância.
·        Nordeste: vento.

02 – No final da vida, Paulo Honório admite ser e ter sido um homem bruto, egoísta e insensível. E mais: sente-se feio, um aleijado, um monstro. Lembrando-se de Madalena, chega a ferir-se nas mãos e nos lábios.
a)   Identifique, na linguagem do narrador-personagem, traços de sua brutalidade como pessoa.
Expressões como “vomitou dois artigos”; “O Brito... era uma besta”; “molecoreba”.

b)   De acordo com o narrador-personagem, de que provêm essas características?
Da profissão.

c)   Nessa explicação, nota-se a influência de uma corrente científica do século XIX. Qual é ela?
O determinismo.

d)   O que o sentimento de se achar fisicamente monstruoso revela a respeito da condição psicológica e moral de Paulo Honório?
Que ele se sente culpado pela destruição de Madalena e de sua própria vida.

e)   Que tipo de desejo inconsciente é revelado no trecho: “Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue”?
O desejo de autopunição, autoflagelação.

f)    Ao fazer um balanço de seu relacionamento com Madalena, Paulo Honório afirma que, se pudesse recomeçar sua vida com ela, tudo aconteceria de novo. Por que ele pensa assim?
Porque não se sente capaz de mudar.

03 – Segundo o crítico João Luís Lafetá, São Bernardo narra a trajetória de um burguês, Paulo Honório, que passara da condição de caixeiro-viajante e guia de cego à de rico proprietário da Fazenda São Bernardo. Para atingir seus objetivos capitalistas, o protagonista elimina todos os empecilhos que se colocam à sua frente, inclusive pessoas.
a)   Releia este trecho:
“Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?”
Que opinião Paulo Honório tem agora sobre o princípio capitalista da acumulação?
      Chega a consciência de que sua ânsia desenfreada de trabalhar para acumular não levou a nada; está sozinho, quase sem ter a quem deixar sua fortuna, e sua fazenda está em decadência.

b)   Karl Marx já apontava, no século XIX, um fenômeno decorrente das relações do sistema capitalista, a coisificação ou reificação, que consiste na extrema importância que se dá ao valor de troca da mercadoria, e não ao seu valor de uso. No plano das relações humanas, o interesse prevalece sobre sentimentos ou princípios morais, e as pessoas passam a ser vistas como coisas, como objetos. Identifique no texto uma passagem ou situação que evidencie a visão reificada que Paulo Honório tem do mundo.
Em especial a forma como ele se refere aos empregados Mestre Caetano, Rosa e aos filhos desse casal. Ele também reconhece que tratou mal aos outros a fim de alcançar seus objetivos.

04 – Praticamente sozinho, sem Madalena e abandonado por amigos, Paulo Honório consome as horas recordando sua vida e narrando em São Bernardo. Identifique um trecho que comprova ser São Bernardo um livro de recordações.
      Deitar-me, rolar no colchão até de madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. / De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha.

05 – Pelo trecho lido da obra, é possível afirmar que São Bernardo alcança um perfeito equilíbrio entre a análise social e a introspecção psicológica? Justifique.
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim. Pelo balanço de vida de Paulo Honório e por suas reflexões interiores, nota-se o quanto ele está destruído como pessoa. E as causas disso são sociais: a ideologia capitalista da competição e da acumulação.

06 – São Bernardo assemelha-se, em vários aspectos, a Dom Casmurro, de Machado de Assis. Veja este trecho do início da obra de Machado, narrado por Bentinho:
        “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice e adolescência. Pois, Senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui.
        Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; [...] falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

a)   Em São Bernardo, Paulo Honório, no fim da vida, é a mesma pessoa?
Não. Embora o protagonista não se sinta capaz de mudar, na verdade já mudou: está mais sensível, admite erros e culpas.

b)   Tente explicar os motivos conscientes e inconscientes que teriam levado o protagonista a reconstruir sua própria história.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Reconstruir a história pessoal é uma forma de compreende-la melhor e, nela, compreender-se.


POEMA DA NECESSIDADE - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

Poema da Necessidade
       Carlos Drummond de Andrade

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO. 

                  Carlos Drummond de Andrade. Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Record.

Entendendo o poema:

01 – O poema é construído a partir de uma estrutura paralelística, caracterizada por repetição de palavras e de estruturas sintáticas. Tornando o 1° verso – “É preciso casar João” – como exemplo dos outros, responda:
a)   Qual é a oração principal desse período?
É preciso.

b)   Como se classifica a oração casar João?
Subordinada substantiva subjetiva reduzida de infinitivo.

02 – Como você sabe, as orações substantivas têm esse nome porque equivalem a um substantivo. Veja essa equivalência em relação ao 1° verso da 2ª estrofe.

        “É preciso salvar o país.” – É preciso o salvamento do país.
Faça o mesmo em relação aos demais versos da 2ª estrofe, ou seja, substitua as orações substantivas por substantivos correspondentes.
        “É preciso crer em Deus.”É preciso a crença em Deus.
        “É preciso pagar as dívidas.”... o pagamento das dívidas.
        “É preciso comprar um rádio.”... a compra de um rádio.
        “É preciso esquecer fulana.”... o esquecimento de fulana.

03 – A oração É preciso se repete em quase todos os versos do poema.
a)   Que efeito de sentido tem a repetição dessa oração no texto?
Dá a ideia de algo que se repete no dia-a-dia, de que sempre falta algo.

b)   Que relação existe entre essa repetição e o título do poema?
O título sintetiza o poema, já que o texto é um elenco das necessidades, pessoais e sociais, de acordo com a ótica do eu lírico.

c)   As necessidades apontadas pelo eu lírico são de diferentes tipos: de ordem prática, emocional, material, espiritual, etc. De que tipo são as necessidades reunidas na 3ª estrofe?
São todas relacionadas a atitudes que fogem ao mundo prático e racional.

04 – A oração É preciso situa-se temporalmente no presente. Apesar disso, projeta a necessidade – representada por palavras com função de sujeito da oração principal – para um plano hipotético e futuro. Isso permite levantar hipóteses sobre a visão do eu lírico a respeito da realidade e da vida presentes.
a)   Qual é essa visão?
Para o eu lírico, a realidade e a vida presentes são incompletas, insatisfatórias, pois sempre falta algo para que a felicidade seja alcançada.

b)   Indique o item que completa corretamente a seguinte afirmação. O fato de o sujeito se ligar à oração principal sempre por relações de subordinação, portanto nunca diretamente, acentua ainda mais:
·        A possibilidade real de o eu lírico transformar a realidade.
·        O distanciamento ente o desejo do eu lírico e sua realização efetiva.
·        A ideia de que o mundo não existe fora do desejo do eu lírico.

05 – No último verso, a expressão FIM DO MUNDO, que finaliza o poema, é destacada pelo uso de maiúsculas. Considerando a carga negativa do texto, dê uma interpretação coerente ao verso final.
      O mundo, da forma como se apresenta, não é viável. É preciso destruí-lo para que, quem sabe, surja da destruição uma realidade diferente.


EDITORIAL: INIMIGOS ÚTEIS - ULISSES CAPOZOLI - COM QUESTÕES GABARITADAS

EDITORIAL: Inimigos úteis
             
                         Ulisses Capozoli

  VÍRUS – CAPAZES DE INFECTAR seres vivos ou, mais recentemente, programas de computadores –, à primeira vista podem ser apenas mais um desses conceitos vagos que aparecem com frequência na mídia. Ao menos para a maioria das pessoas.
      Considerados mais atentamente, no entanto, vírus – que infectam organismos – são estruturas fascinantes.
        Vírus podem ser considerados vivos? A dúvida sobre essa classificação dá a medida da complexidade dessas estruturas que, no entanto, podem ter desempenhado papel fundamental na emergência das mais diferentes formas de vida. Os vírus teriam, por exemplo, esculpido o DNA, o chamado ácido da vida.
        Esta edição especial de SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL dedicada aos vírus, com relato do histórico da descoberta dessas estruturas, investigação sobre atuação e estratégias refinadas para multiplicação em organismos vegetais, animais e humanos, entre outras considerações, tem o objetivo de ampliar o horizonte dos leitores para as amplas potencialidades dessas estruturas. Vírus podem tanto produzir infecções letais como servir de instrumentos terapêuticos. No primeiro caso estão infecções como as da AIDS e, no segundo, estratégias que ampliam a frente de combate ao câncer.
        Independentemente do aspecto prático e imediato, no entanto, os vírus surpreendem de muitas maneiras e sugerem várias ordens de reflexões.
        A mutabilidade dessas estruturas, além de abordagens – que cabem perfeitamente no enfoque matemático da teoria dos jogos – certamente suscita considerações de natureza filosófica mais complexa, e questionamentos sobre a origem e natureza da vida. Cabem ainda outras avaliações como a adoção de estratégicas que, de um ponto de vista ético, interpretaríamos como recursos “trapaceiros”.
        Mas se há dúvida sobre vírus serem ou não estruturas vivas, faz sentido levar a sério a possibilidade de que possam desenvolver estratégias com recurso à trapaça?
        Numa consideração isolada – como sempre ocorre em interpretações não devidamente contextualizadas – pode parecer absurda. Levando-se em conta um conjunto de relatos, como os que integram esta adição especial, no entanto, essa interpretação ganha sentido novo e uma fascinante coerência.
        Para assegurar a qualidade desta edição tivemos a contribuição, na qualidade de consultores especiais, de dois médicos: o especialista em moléstias infecciosas, Francisco Oscar de Siqueira França, do Serviço de Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e do Hospital Vital Brasil, do Instituto Butantã. Ele partilhou uma leitura cuidadosa, acompanhada de recomendações, com a médica Noêmia Barbosa Carvalho, assistente do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias do HC.
        Com essa edição esperamos ajudar a minimizar a rarefação de trabalhos na área de virologia publicados em português e dirigidos a leitores não necessariamente especializados.
        Boa Leitura.
                         Ulisses Capozoli. Revista Scientific American Brasil.
N° 28, s/d. Edição especial.
Entendendo o texto:

01 – O editorial escrito por Ulisses Capozoli fornece algumas informações sobre o assunto geral das matérias publicadas nesse número da revista Scientific American Brasil?
      Sim. Ele indica que a revista trata do tema vírus.

02 – O editorial da Scientific American Brasil apresenta uma questão polêmica. Qual?
      Se os vírus são ou não seres vivos.

03 – Essa questão polêmica é respondida ao longo do editorial ou fica em aberto? Na sua opinião, por que isso ocorre?
      A questão fica em aberto, porque o assunto anunciado por ela será tema das matérias publicadas na revista.

04 – Segundo o texto, quais as características de um vírus?
      São seres “fascinantes”, e discute-se se são ou não seres vivos. São também responsáveis por provocar doenças em plantas e animais embora também sejam vetores de pesquisas para a cura de outras doenças e males que afetam os seres vivos.

05 – A forma como o autor do editorial descreve os vírus pode ser considerada mais objetiva ou mais subjetiva? Justifique sua opinião.
      Há uma mistura de impressões subjetivas e características objetivas dos vírus, evidenciada pelos adjetivos utilizados e pelas explicações a respeito dos vírus.

06 – Além do assunto “vírus”, que outras informações podem ser obtidas pela leitura do editorial?
      O editorial também alerta para o fato de não haver muitas publicações em português sobre vírus.

07 – Qual o objetivo da revista Scientific American Brasil que se pode depreender da leitura do seu editorial?
      Trata-se de uma publicação de caráter científico cujo objetivo, nesse texto, é apresentar estudos e pesquisas sobre o tema vírus ao público leitor brasileiro.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

MÚSICA(ATIVIDADES): FORA DE SI - ARNALDO ANTUNES - COM GABARITO

Música(Atividades): Fora de Si

                                  Arnaldo Antunes

Eu fico louco
Eu fico fora de si
Eu fica assim
Eu fica fora de mim

Eu fico um pouco
Depois eu saio daqui
Eu vai embora
Eu fico fora de si

Eu fico oco
Eu fica bem assim
Eu fico sem ninguém em mim

                                   Composição: Arnaldo Antunes

Entendendo a canção:

01 – A letra da canção, é relativamente simples quanto ao conteúdo, já que se organiza em torno de uma ideia central. Qual é essa ideia?
      A do estado de “loucura”, de insensatez em que se encontra o eu lírico.

02 – A canção se intitula “fora de si”.
a)   O que significam expressões como “ficar fora de si” ou “ficar fora de mim”?
Perder o controle, perder a razão ou o senso.

b)   Logo, o título da canção é coerente com seu assunto central?
Sim, pois o título reforça a ideia central de desvario.

03 – O texto causa estranhamento devido à falta de concordância entre algumas palavras e termos.
a)   Reescreva todos os versos em que se verificam desvios de concordância em relação à variedade padrão da língua, adequando-os a essa variedade.
“Eu fico fora de mim / Eu fico assim / eu fico fora de mim / eu vou embora / eu fico fora de mim / eu fico bem assim.”

b)   Identifique o tipo de problema de concordância verificado em cada um dos versos reescritos: concordância verbal (entre o verbo e o sujeito), concordância nominal (entre os pronomes) ou concordância verbal e nominal (entre o verbo e o sujeito e entre os pronomes).
1ª estrofe: eu fico fora de mim (conc. nominal), eu fico assim (conc. verbal), eu fico fora de mim (conc. verbal). 2ª estrofe: eu vou embora (conc. verbal), eu fico fora de mim (conc. verbal e nominal). 3ª estrofe: eu fico bem assim (conc. verbal).

04 – Como se nota, os desvios com relação à variedade padrão identificados nessa canção são intencionais, uma vez que quebram pressupostos básicos do uso corrente da língua, dominados até por falantes não letrados, como, por exemplo, em “eu fica assim”. Levando em conta que a forma de um texto geralmente está relacionada com seu conteúdo, responda: que papel tem a concordância ou a falta dela na construção do sentido global da canção?
      A falta de concordância reforça, no nível linguístico, a ideia de “loucura” de que trata a canção.

05 – Em todos os versos, o centro do discurso é a figura do eu lírico, identificado pelo pronome reto eu. Apesar disso, os verbos e pronomes se alternam entre a 1ª e a 3ª pessoa, sugerindo a presença de outra pessoa, talvez um interlocutor, não mencionada explicitamente no texto.
a)   Quem poderia ser essa pessoa?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Talvez a pessoa amada, ou alguém da intimidade do eu lírico.

b)   Levante hipóteses: que relação pode haver entre a falta de concordância do texto e o relacionamento entre o eu lírico e essa pessoa?
A ausência dessa pessoa ou a falta de entendimento com ela poderia ter provocado o estado de loucura do eu lírico, que já não consegue discernir o que é certo ou errado. E também: a falta de concordância linguística sugere a falta de sintonia entre o eu lírico e uma 3ª pessoa.

CONTO: NAS ÁGUAS DO TEMPO - MIA COUTO - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Nas águas do tempo
        
     Mia Couto

      Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.
        — Mas vocês vão aonde?
        Era a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem.
        — Voltamos antes de um agorinha, respondia.
        Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era. Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me segurava a mão e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo à frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver.
        Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mão em concha. E eu lhe imitava. — Sempre em favor da água, nunca esqueça! Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem. Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra. Naquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens. Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que parecíamos perfeitos.
        De repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por instante, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano.
        — Você não vê lá, na margem? Por trás do cacimbo?
        Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.
        — Não é lá. É láááá. Não vê o pano branco, a dançar-se?
        Para mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se perde. Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem companhia de palavra.
        Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos próximos futuros. Não queria que fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali moravam. Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos seus não propósitos. Mas depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira: — Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte... O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invenção dele, avisava minha mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar.
        Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim não podia haver homem mais antigo que meu avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à margem, colocar pé em terra não firme.
        — Nunca! Nunca faça isso!
        O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tão bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou:
        — Neste lugar, não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades.
        Eu tinha um pé meio-fora do barco, procurando o fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei chão para assentar o pé. Sucedeu-me então que não encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a força que me sugava era maior que o nosso esforço. Com a agitação, o barco virou e fomos dar com as costas posteriores na água. Ficámos assim, lutando dentro do lago, agarrados às abas da canoa.
        De repente, meu avô retirou o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre a cabeça.
        — Cumprimenta também, você!
        Olhei a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao avô, acenando sem convicções. Então, deu-se o espantável: subitamente, deixámos de ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria. Voltámos ao barco e respirámos os alívios gerais. Em silêncio, dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu: — Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu?
        Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim:
        --- Nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos.
        — Me entende?
        Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, também o avô não via mais que a enevoada solidão dos pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada:
        — Fique aqui!
        E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa ficou balançando, em desequilibrismo com meu peso ímpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme brancura atravessar o céu. Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco.
        Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se poentaram as visões.
        Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem.

     In: Tania Macêdo e Rita Chaves. Literaturas de língua portuguesa: marcos e marcas – Moçambique. São Paulo: Arte & Ciência, 2007. p. 136-40.

Entendendo o conto:

01 – Mia Couto é um escritor inventivo, que recria a linguagem, obtendo sentidos inusitados.
a)   Identifique no texto alguns neologismos, ou seja, palavras inventadas pelo autor.
Entre outras possibilidades: devagaroso, desabandonado, musculíneo, aflautinados, desabitual, desequilibrismo, arrepioso, barafundido.

b)   Você teve dificuldade para compreender o sentido desses neologismos? Por que você acha que isso acontece?
Resposta pessoal do aluno.

02 – O avô frequentemente navega com o menino próximo às margens do rio.
a)   O que ele pretende com isso?
Pretende ensinar o neto a ver os panos.

b)   Como o avô explica ao neto sua capacidade de ver “os panos”?
Explica que as pessoas em geral perderam a capacidade de olhar para dentro, como nos sonhos, e ver seres de uma outra dimensão, não material.

03 – As ações das personagens, somadas ao uso de expressões como “receáveis aléns”, “olhos que se abrem para dentro”, “solidão dos pântanos” e “interditos territórios”, entre outras, criam certa atmosfera no conto. Como é essa atmosfera?
      É uma atmosfera mágica, misteriosa, sobrenatural.

04 – Já quase no final do conto, o avô desce do barco e pisa “os interditos territórios”. Nesse momento, o neto consegue ver os panos na margem, inclusive o pano vermelho de seu avô, eu começa a mudar de cor.
a)   Interprete a mudança de cor do pano do avô.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Ela representa a morte do avô.

b)   O avô conseguiu atingir seu objetivo? Por quê?
De acordo com a resposta sugerida para a questão anterior, sim, pois o neto começa a ver os panos e, assim, a se comunicar com os “outros” da margem.

05 – O conto tem por título “Nas águas do tempo”. Segundo o avô, “a água e o tempo são irmãos gêmeos, nascidos do mesmo ventre”.
a)   Considerando o desfecho do conto, dê uma interpretação coerente à fase do avô.
As águas de um rio correm sempre, como o tempo. Não sentimos a mudança do rio, pois parece que ele está sempre igual; contudo, suas águas nunca são as mesmas. Assim também ocorre conosco em relação ao tempo, que passa ininterruptamente.

b)   O que representa o rio que o narrador, no último parágrafo do texto, diz ter dentro de si?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Talvez o conhecimento adquirido com o avô sobre os mistérios da vida e do tempo.

c)   Que relação existe entre a metáfora do rio e o ensinamento que o narrador transmite a seu filho?
Assim como as águas do rio estão sempre se renovando, o ensinamento que o narrador transmite ao filho também representa a renovação, o passar das gerações.

06 – Você diria que o texto apresenta um fundo filosófico? Por quê?
      Sim, pois ele promove uma reflexão sobre questões metafísicas, como vida e morte, passagem do tempo, razão de existir, vida depois da morte, etc.