Texto: Selfies
Marcelo Coelho
Muita gente se irrita, e tem razão, com
o uso indiscriminado dos celulares. Fossem só para falar, já seria ruim. Mas
servem também para tirar fotografias, e com isso somos invadidos no Facebook
com imagens de gatos subindo na cortina, focinhos de cachorro farejando a
câmera, pratos de torresmo, brownie e feijoada.
Se depender do que vejo com meus filhos
— dez e 12 anos —, o tempo dos “selfies” está de todo modo chegando ao fim.
Eles já começam a achar ridícula a mania de tirar retratos de si mesmo em
qualquer ocasião. Torna-se até um motivo de preconceito para com os colegas.
“Fulaninha? Tira fotos na frente do
espelho.” Hábito que pode ser compreensível, contudo. Imagino alguém dedicado a
melhorar sua forma física, registrando seus progressos semanais. Ou apenas
entregue, no início da adolescência, à descoberta de si mesmo.
A bobeira se revela em outras
situações: é o caso de quem tira um “selfie” tendo ao fundo a torre Eiffel, ou
(pior) ao lado de, sei lá, Tony Ramos ou Cauã Reymond.
Seria apenas o registro de algo
importante que nos acontece — e tudo bem. O problema fica mais complicado se
pensarmos no caso das fotos de comida. Em primeiro lugar, vejo em tudo isso uma
espécie de degradação da experiência.
Ou seja, é como se aquilo que vivemos
de fato — uma estadia em Paris, o jantar num restaurante — não pudesse ser
vivido e sentido como aquilo que é.
Se me entrego a tirar fotos de mim
mesmo na viagem, em vez de simplesmente viajar, posso estar fugindo das minhas
próprias sensações. Desdobro o meu “self” (cabe bem a palavra) em duas
entidades distintas: aquela pessoa que está em Paris, e aquela que tira a foto
de quem está em Paris.
Pode ser narcisismo, é claro. Mas o
narcisismo não precisa viajar para lugar nenhum. A complicação não surge do
sujeito, surge do objeto. O que me incomoda é a torre Eiffel; o que fazer com
ela? O que fazer de minha relação com a torre Eiffel?
Poderia unir-me à paisagem, sentir como
respiro diante daquela triunfal elevação de ferro e nuvem, deixar que meu olhar
atravesse o seu duro rendilhado que fosforesce ao sol, fazer-me diminuir entre
as quatro vigas curvas daquela catedral sem clero e sem paredes.
Perco
tempo no centro imóvel desse mecanismo, que é como o ponteiro único de um
relógio que tem seu mostrador na circunferência do horizonte. Grupos de
turistas se fazem e desfazem, há ruídos e crianças.
Pego, entretanto, o meu celular: tiro uma
foto de mim mesmo na torre Eiffel. O mundo se fechou no visor do aparelho. Não
por acaso eu brinco, fazendo uma careta idiota; dou de costas para o monumento,
mas estou na verdade dando as costas para a vida.
Não digo que quem tira a foto da cerveja
deixe de tomá-la logo depois. Mas intervém aí um segundo aspecto desse
“empobrecimento da experiência”. Tomar cerveja não é o bastante. Preciso tirar
foto da cerveja. Por quê?
Talvez porque nada exista de verdade,
no mundo contemporâneo, se não for na forma de anúncio, de publicidade. Não
estou apenas contando aos meus seguidores do Facebook que às 18h42 de sábado
estava num bar tomando umas. Estou dizendo isso a mim mesmo. Afinal, os meus
seguidores do Facebook, sei disso, não estão assim tão interessados no fato.
Não basta a sede, não basta o prazer,
não basta a vontade de beber. Tenho de constituí-la como objeto publicitário.
Preciso criar a mediação, a barreira, o intervalo entre o copo e a boca.
Vejam, pergunto a meus seguidores inexistentes, “não é sensacional?”. Eis uma
cerveja, a da foto, que nunca poderá ser tomada. A foto do celular imortaliza o
banal, morrerá ela mesma em algum arquivo que apagarei logo depois.
Não importa; fiz meu anúncio ao mundo.
Beber a cerveja continua sendo bom. Mas talvez nem seja tão bom assim, porque
de alguma forma a realidade não me contenta.
A imagem engoliu minha experiência de
beber; já não estou sozinho. Mesmo que ninguém me veja, o celular roubou minha
privacidade; é o meu segundo eu, é a minha consciência, não posso andar sem
ele, sabe mais do que nunca saberei, estará ligado quando eu morrer.
Talvez as coisas não sejam tão
desesperadoras. Imagine-se que daqui a cem anos, depois de uma guerra atômica e
de uma catástrofe climática que destruam o mundo civilizado, um pesquisador
recupere os “selfies” e as fotos de batata frita.
“Como as pessoas eram felizes naquela
época!” A alternativa seria dizer: “Como eram tontas!”. Dependerá, por certo,
dos humores do pesquisador.
Entendendo o texto:
01 – No texto, o autor,
Marcelo Coelho, aborda o uso do telefone celular.
a) Ele vê esse uso de maneira
positiva ou negativa? Por quê?
Conforme o texto, entendemos que o autor
vê o uso de maneira negativa, já que as pessoas querem tirara
"selfie" de tudo, em todas as ocasiões, e com isso, vão perdendo a
interação e a privacidade.
b) Das múltiplas funções do
celular, qual é a que mais o incomoda?
A função que mais
incomoda para o autor, sem dúvidas, é a de tirar fotos.
c) O que ele pensa de fotos
banais, como “gatos subindo na cortina, focinhos de cachorro farejando a
câmera, pratos de torresmo, brownie e feijoada”?
Ele faz uma
crítica sobre essas fotos, já que para ele, a pessoa perde a experiência, não
vive o momento.
02 – De acordo com o texto,
apesar do uso quase ilimitado do celular nos dias de hoje para tirar fotos, o
selfie é uma unanimidade entre os adolescentes? Por quê?
Para ele, o uso
das fotos é utilizada mais pelos adolescentes, uma vez que os mesmos são os que
mais usam os aparelhos, são mais narcisistas, estão se descobrindo, etc.
03 – O autor se posiciona
claramente sobre os selfies.
a) Em que situação ele acha
que haveria sentido alguém fotografar a si mesmo?
Para ele haveria
sentido fotografar a si mesmo caso de questões de publicidade.
b) Em que tipo de situação
ele rejeita os selfies?
Ele rejeita as
selfies no sentido de não aproveitar o momento, em tirar foto com a comida, do
cachorro, de uma viagem, ao invés de aproveitar a experiência.
04 – Segundo o autor, a onda
dos selfies provocou uma “espécie de degradação da experiência”. Explique o que
ele quer dizer com isso.
Isto quer dizer que, quando as pessoas
estão no local, elas não aproveitam a experiência, aquele momento vivido, elas
se limitam apenas a fazer registros. E nem sempre quer dizer que aquilo que foi
fotografado foi algo legal, é apenas aparência.
05 – Para ilustrar seu ponto
de vista, o autor cita uma viagem a Paris.
a) Em tese, o que uma pessoa
procura quando vai a Paris?
Em tese, a pessoa
procura os monumentos como a Torre Eiffel, ponto turístico que atrai diversas
pessoas do mundo todo.
b) O que muda quando ela
fotografa a si mesma em Paris?
Muda que ela não consegue aproveitar a
paisagem, é como se ela estivesse tirando foto de alguém que está em Paris,
como afirma o autor.
c) Por que o autor vê
narcisismo nesse tipo de atitude?
Vê um narcismo,
uma vez que a pessoa se preocupa apenas com a própria imagem.
06 – O texto tem como
objetivo:
a) Descrever as múltiplas
funções do celular.
b) Relatar situações
corriqueiras e desinteressantes do uso ilimitado do celular.
c) Instruir os leitores
sobre o uso adequado dos selfies.
d) Ilustrar o
ponto de vista do autor sobre o uso dos selfies.
07 – Por suas
características formais, por sua função e uso, o texto pertence ao gênero:
a) Artigo de
opinião por se tratar de um posicionamento do autor diante de um tema atual.
b) Depoimento, pela
apresentação de experiências pessoais.
c) Relato, pela descrição
minuciosa de fatos verídicos.
d) Reportagem, pelo registro
impessoal de situações reais.
08 – No trecho “Se depender
do que vejo com meus filhos – dez e 12 anos –, o tempo dos “selfies” está de
todo modo chegando ao fim”, o travessão:
a) Destaca um
esclarecimento.
b) Substitui os dois-pontos.
c) Indica a fala no discurso
direto.
d) Isola um chamamento.