A LÍNGUA ABSOLVIDA
[...]
O Danúbio, em seu curso inferior, onde
banha a Bulgária, é muito largo. Giurgiu, a cidade na outra margem, pertencia à
Romênia. De lá, assim me contavam, viera a ama que me alimentou com seu leite.
Fora uma camponesa forte e sadia que ao mesmo tempo amamentava seu próprio
filho, que trouxera consigo. Sempre ouvi elogios a seu respeito, e embora não
consiga lembrar-me dela, por sua causa a palavra romeno, para mim, sempre teve
um som doce.
Houve anos, bastante raros, em que o
Danúbio congelou no inverno, o que deu origem a histórias excitantes. Minha
mãe, em sua juventude, várias vezes viajara à Romênia de trenó, e me mostrou as
peles quentes com que se agasalhava. Quando o frio se tornava muito intenso, os
lobos, famintos, desciam da montanha e atacavam os cavalos que puxavam os
trenós. O cocheiro tentava afugentá-los com o relho,
mas isso de nada adiantava e era necessário atirar neles. Numa dessas viagens,
verificou-se que não se havia trazido nenhuma arma de fogo. Deveria ter-lhes
acompanhado um tcherquesse armado, que vivia em casa como criado, mas se
atrasara e o cocheiro partira sem ele. Foi difícil defenderem-se dos lobos, e o
perigo foi grande. Se, por acaso, não tivesse vindo a seu encontro um trenó com
dois homens, que mataram um lobo a tiros e afugentaram os demais, o fim poderia
ter sido triste. Minha mãe ficara aterrorizada, e descrevia as línguas
vermelhas dos lobos, que haviam chegado tão perto; após muitos anos ela ainda
sonhava com eles.
Muitas vezes lhe pedi essa história, e
ela gostava de conta-la. Assim, os lobos foram os primeiros animais selvagens
que povoaram a minha fantasia. O terror que eles me infundiam era alimentado
pelos contos que ouvia das camponesas búlgaras. Sempre havia cinco ou seis
delas vivendo em nossa casa. Eram muito jovens, talvez com dez ou doze anos, e
suas famílias as haviam trazido das aldeias à cidade para emprega-las como
domésticas nas casas dos burgueses.
Andavam descalças pela casa e sempre
bem-dispostas; pouco tinham que fazer e faziam tudo em conjunto: foram meus
primeiros companheiros de infância.
À noite, quando meus pais saíam, eu
ficava em casa com elas. Ao longo das paredes da grande sala de estar, em todo
o seu comprimento, havia otomanas baixinhas.
Além dos tapetes, que havia por toda parte, e de algumas mesinhas, eram os
únicos móveis de que me lembro daquela sala. Quando escurecia, as meninas
ficavam com medo. Nos aconchegávamos todos juntos numa das otomanas, logo
abaixo da janela; eu ficava no meio, e então elas começavam com suas histórias
de lobisomens e vampiros. Assim que uma terminava, começava a outra; era
aterrorizante, contudo me sentia bem, comprimido de todos os lados pelas
meninas. Ficávamos tão aterrorizados que ninguém ousava levantar-se, e quando
meus pais voltavam para casa, nos encontravam aglomerados num monte trêmulo.
Dos contos que ouvi então, só conservei
na memória os de lobisomem e vampiros. Talvez não me contassem outros. Não
posso tomar nas mãos um livro de contos balsâmicos sem logo reconhecer vários
deles. Eu os tenho presentes em todos os seus detalhes, mas não na língua em
que os ouvi. Eu os ouvi em búlgaro, mas os conheço em alemão, e esta tradução
talvez seja o fato mais estranho de minha juventude que tenho para relatar, e
já que o destino linguístico da maioria das crianças transcorre diferente,
talvez eu deva falar um pouco sobre isso.
Entre si, meus pais falavam alemão, do
que eu nada devia entender. Conosco, os filhos, e com todos os parentes e
amigos, falavam em ladino. Essa era, afinal, a língua corrente, aliás um
castelhano antigo, que também mais tarde ouvi com frequência e jamais esqueci.
As meninas camponesas que ficavam em nossa casa só falavam búlgaro, e com
certeza foi com elas, principalmente, que eu o aprendi. Mas como jamais
frequentei uma escola búlgara, e abandonei Ruschuk com seis anos, em breve o
esqueci completamente. Todos os acontecimentos daqueles primeiros anos se
desenrolaram em latino ou búlgaro. Mais tarde se traduziram, em grande parte,
para o alemão. Apenas as ocorrências mais dramáticas, mortes e assassinatos,
por assim dizer, e os meus maiores sustos, conservaram-se para mim em ladino,
mas neste caso de forma muito precisa e indelével.
Todo resto, portanto a maior parte, e principalmente tudo quanto era búlgaro,
como os contos, trago na cabeça em língua alemã.
Não sei exatamente como isso aconteceu.
Não sei em que época e em que circunstâncias se traduziu isto ou aquilo dentro
de mim. Nunca cheguei a investigar este tema, talvez porque receasse que uma
análise metódica, e conduzida por princípios rígidos, pudesse destruir as
lembranças mais preciosas que trago comigo. Só estou certo de uma coisa: tenho
presentes os acontecimentos daqueles anos toda força e todo vigor – há mais de
sessenta anos eles me alimentaram –, mas, em sua maior parte, estão ligados a
palavras que, naquela época, eu não conhecia. Parece-me perfeitamente natural que
eu agora as escreva e não tenha a impressão de estar alterando ou adulterando
alguma coisa. Não é como a tradução literária de um livro, de um idioma para
outro; é antes uma tradução espontânea que se produziu no inconsciente, e como
costumo evitar como a peste esta palavra, cujo uso indiscriminado tornou inócua, espero que me seja relevado o seu uso neste só
e 125 único caso.
Elias
Canetti. A Língua absolvida. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 17-9.
RELHO:
chicote, açoite.
OTOMANA:
espécie de sofá baixo e largo, em que cabem várias pessoas sentadas ao mesmo
tempo.
INDELÉVEL:
permanente.
INÓCUO:
que não produz o efeito pretendido.
1 – No primeiro parágrafo, o
autor garante saber a origem de sua ama de leite? Justifique sua resposta.
Não. Ele afirma que está repetindo o que
lhe contavam: “... assim me contavam...”
2 – Releia:
[...] por sua causa, a palavra romeno,
para mim, sempre teve um som doce.
Reflita: essa afirmativa é objetiva ou
subjetiva? Explique.
Espera-se que os alunos identifiquem a
subjetividade da afirmativa. Pergunte a eles, por exemplo, que palavras têm som
“doce” ou som “áspero”, ou seja, mostre que se trata de aspectos subjetivos.
3 – Releia:
Muitas vezes lhe pedi essa história, e
ela gostava de conta-la. Assim, os lobos foram os primeiros animais selvagens
que povoaram a minha fantasia. O terror que eles me infundiam era alimentado
pelos contos que ouvia das camponesas búlgaras. [...].
Em seu caderno, explique o trecho
destacado acima.
A origem do medo estava na narrativa
materna sobre os lobos, mas sua permanência (a “alimentação” do terror) se
devia aos contos que as camponesas búlgaras contavam ao garoto.
4 – Você deve ter observado
que mesmo a lembrança de coisas materiais está associada ao ato de contar e de
ouvir histórias, na mente de enunciador. Identifique o trecho em que se percebe
essa ideia.
“... eram os únicos móveis de que me
lembro daquela sala...”
5 – O narrador relata o
misto de pavor e prazer que era ouvir histórias de lobisomens e vampiros. Como
você interpreta esses sentimentos opostos?
Resposta pessoal do aluno. Ao sintetizar
as opiniões, lembre aos alunos que o ficção permite que se corram grandes
riscos sem arriscar nada. Por meio dela é possível viver situações perigosas e
assustadoras, sem entender perigo real.
6 – Releia:
[...] Todos os acontecimentos daqueles
primeiros anos se desenrolaram em ladino ou búlgaro. [...]
Em
seu caderno, explique essa frase do autor, uma vez que acontecimentos não “se
desenrolam” em uma língua ou em outra.
Resposta pessoal do aluno. Explique aos
alunos que o autor tem a consciência de que os acontecimentos ficaram gravados
em sua memória por meio da língua ladina ou búlgara.
7 – No texto há várias
passagens metalinguísticas. Por quê?
Porque o narrador conviveu com falantes
de diferentes línguas e ficou exposto a elas durante a infância, época de
aquisição e desenvolvimento da língua falada. Ele comenta esse fato e reflete
sobre o ato de escrever suas memórias.