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quinta-feira, 3 de julho de 2025

CONTO: A ENCOMENDA - RUY FABIANO - COM GABARITO

 Conto: A encomenda

           Ruy Fabiano

O telefonema me incumbia de missão desagradável: remeter ao Brasil as cinzas de alguém que nem sequer conheci. Juliana, minha grande amiga, a quem devo gentilezas impagáveis, e suas duas irmãs (que vi apenas umas poucas vezes) perderam a mãe, dona Gina, em Roma, há duas semanas.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhCQlFviwSwOTFPJENvVIP534VGodjXuYjmHc3PnA8UcdwQJAd21p3unBri0HaYu6O3DoGVorNKudqWPPtmsQ-JJc6D2u7QvZN4OD02OLFwAJX_jm1hSmebwkb2NFlsguct6h6HrZ4VoRm15ec3s9eAD15SSmnYnBmj6yT3xXosmRb7oPAEuZD9hYXjnAk/s320/81MJKs01yDL._UF894,1000_QL80_.jpg


        Por vontade da falecida, expressa em testamento – e providenciada por um velho tio napolitano, a seguir hospitalizado –, seu corpo foi cremado e as cinzas postas à disposição das filhas no crematório municipal, rua tal, n° tal. As filhas não teriam condições de pessoalmente recolher os despojos, pois tinham compromisso profissional no Brasil. Como eu estava morando na cidade, não custava nada providenciar e quebrar assim um imenso galho para a família. A procuração estava seguindo pelo correio, dando-me plenos poderes para representá-las.

        Jamais me esqueceriam.

        Tudo muito asséptico: as cinzas estariam depositadas num cofre lacrado, que caberia sem problemas naquelas embalagens vendidas na própria agência do correio. O custo era baixo e a segurança, total. Essas remessas, inclusive, já eram mais ou menos rotineiras, disse-me minha amiga. E me relatou histórias análogas que me pareceram improvisadas para me convencer. Não soube recusar.

        Era a segunda tarefa trabalhosa que me mandavam do Brasil no mesmo período. Antes de Juliana, ligara-me Dulce, mulher do meu editor, socialite desocupada, ciente de seu poder de influência, com um pedido perfeitamente supérfluo e dispensável: que lhe mandasse orégano italiano pelo correio.

        O orégano de Roma, disse-me ela, sobretudo um vendido na rua tal, n° tal, era incomparável, dava um sabor especial à pizza, e Olavinho, o editor, era tarado por pizza etc. Como contrariar um editor, sobretudo quando se está fora? Dele depende não apenas o emprego, mas a presteza no atendimento às emergências, a gentileza na concessão de algumas regalias (passagens extras para o Brasil ou para países próximos, adiantamentos salariais, free-lancers, etc.).

        Já havia providenciado o pedido de Dulce quando fui em busca das cinzas da velha, uma semana depois do telefonema de Juliana, devidamente munido da procuração. O saco de orégano estava dentro de uma caixa em cima da mesa da sala de jantar. Quando cheguei do crematório, onde me submeti a penosos ritos burocráticos, coloquei a embalagem fúnebre ao lado da comestível.

        Sentia-me exausto.

        Trazer as cinzas de alguém dentro de um táxi parecera-me um tanto bizarro. Mais ainda tê-las dentro de casa. Sempre me impressionei demasiado com o mistério da morte e jamais imaginei um dia tê-la a tiracolo, armazenada numa caixa. O táxi circulava pelas ruas movimentadas de Roma e eu ali, com um defunto esfarinhado ao colo. O dia chuvoso acentuava a atmosfera mórbida.

        Busquei ser o mais objetivo possível. Tentei pensar em coisas diferentes: a escalação da seleção brasileira, por exemplo; nossa crônica carência de goleiros e o indefectível drible a mais de nossos pontas. Pensei também no imposto de renda, na injustiça fiscal, no desconforto de declará-lo do exterior.

        Mas a lembrança da morte encaixotada sempre retornava.

        Fui dormir tentando driblar o assunto. Recorri a um sonífero. No dia seguinte me desincumbiria das duas tarefas ao mesmo tempo, na mesma agência dos correios, e nunca mais aceitaria encomendas em crematórios ou necrotérios. No meu testamento, se um dia fizer um, exigirei que minhas cinzas sejam liberadas ao vento no ato mesmo da cremação. Nada de remessas postais, virtuais ou seja lá como for.

        Fiz tudo direito, com o máximo cuidado para não confundir as encomendas. Lembro-me de que preenchi as etiquetas sem perder de vista o movimento nervoso que a funcionária do guichê fazia com as duas caixas, que tinham dimensão equivalente. Para diferenciá-las, marquei um "x" numa delas.

        Não sei o que aconteceu.

        Juliana me ligou do Rio esta manhã para dizer que tinha gostado muito do orégano, mas que continuava aguardando, ela e suas irmãs, as cinzas da mãe; que poderia despachá-las, se preferisse, pelo malote semanal da embaixada brasileira, pois tinham um parente no Itamaraty, no Rio, que poderia ser o destinatário. Disse mais: que não tinham notado inicialmente o conteúdo diverso da encomenda e que tinham mandado celebrar missa in memoriam na presença das supostas cinzas.

        Velaram o orégano, emocionaram-se diante dele, o que, posteriormente, foi encarado até com humor (felizmente). Mas continuavam à espera das cinzas, quando chegariam, que precisavam marcar a data do sepultamento simbólico, que ficariam guardadas no gavetório da catedral da cidade etc.

        Fui obrigado a mentir, a falsear a verdade – e me sinto muito mal com isso. Cheguei a me engasgar. O crematório, disse, havia feito novas exigências burocráticas e só amanhã a encomenda seguiria, que tudo enfim estava resolvido. O orégano foi uma gentileza, disse, pois lembrei-me de que ela gostava muito de pizza (perguntou-me como eu descobrira, já que nunca falara disso a ninguém).

        Estou agora pensando num modo de conseguir cinzas falsas e remetê-las ao Brasil. Não faço ideia de por onde começar. Terei que voltar ao crematório municipal. A pista tem que estar lá. Recuso-me a avaliar meu gesto. Ajo tendo em vista a relação custo-benefício. Não há individualidade em cinzas.

        Quanto à mulher do meu editor, aí sim, me encalacrei: não sei como farei para providenciar outra remessa como aquela. As cinzas de dona Gina foram degustadas com euforia pelo casal e um círculo íntimo de gastrônomos, que ficaram impressionados com o sabor picante, "a condimentação na intensidade exata", e agora querem saber que tempero é aquele, em que casa o comprei e se posso passar a enviá-lo periodicamente.

Ruy Fabiano.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 29-31.

Entendendo o conto:

01 – Qual era a "missão desagradável" que o narrador recebeu de Juliana?

      A "missão desagradável" que o narrador recebeu de Juliana era a de remeter ao Brasil as cinzas de sua mãe, Dona Gina, que havia falecido em Roma. O narrador se sentia desconfortável com a tarefa, especialmente por não ter conhecido a falecida.

02 – Que outra encomenda o narrador havia recebido do Brasil no mesmo período, e de quem?

      Antes do pedido de Juliana, o narrador havia recebido uma encomenda de Dulce, a esposa de seu editor. O pedido de Dulce era que ele lhe enviasse orégano italiano pelo correio, alegando que o orégano de Roma era incomparável e dava um sabor especial à pizza.

03 – Qual o conflito interno do narrador ao ter as cinzas de Dona Gina em sua casa e no táxi?

      O narrador sentia-se exausto e bizarro com a situação. Ele sempre se impressionou com o mistério da morte e jamais imaginou tê-la "a tiracolo, armazenada numa caixa" ou "um defunto esfarinhado ao colo" dentro de um táxi. A atmosfera mórbida, acentuada pelo dia chuvoso, intensificava seu desconforto.

04 – Que medidas o narrador tomou para tentar diferenciar as duas encomendas na agência dos correios?

      Para diferenciar as duas encomendas (as cinzas de Dona Gina e o orégano), o narrador preencheu as etiquetas com o máximo cuidado e marcou um "x" em uma das caixas. No entanto, ele não conseguiu acompanhar o movimento nervoso da funcionária do guichê, que lidava com as duas caixas de dimensão equivalente.

05 – Qual a confusão hilária que ocorreu com as encomendas após o envio?

      A confusão hilária foi que as cinzas de Dona Gina foram enviadas para a mulher do editor (Dulce) como orégano, e o orégano foi enviado para a família de Juliana como as cinzas da mãe.

06 – Como a família de Juliana reagiu ao receber a encomenda errada?

      A família de Juliana, inicialmente, não notou o conteúdo diverso e chegou a celebrar uma missa in memoriam na presença do suposto orégano. Embora posteriormente tenham encarado a situação com humor, continuavam à espera das cinzas para o sepultamento simbólico, forçando o narrador a mentir sobre novas exigências burocráticas do crematório.

07 – Qual a reação de Dulce e seu círculo de gastrônomos ao "tempero" que receberam?

      Dulce e seu círculo de gastrônomos degustaram as cinzas de Dona Gina com euforia, ficando "impressionados com o sabor picante, 'a condimentação na intensidade exata'". Eles passaram a querer saber a origem do tempero e se o narrador poderia enviá-lo periodicamente, complicando ainda mais a situação dele.

08 – O que o narrador decide sobre suas próprias cinzas após essa experiência?

      Após a experiência traumática, o narrador decide que, se um dia fizer um testamento, exigirá que suas cinzas sejam liberadas ao vento no ato mesmo da cremação, sem "remessas postais, virtuais ou seja lá como for". Isso reflete seu desejo de evitar o destino "encaixotado" que ele mesmo providenciou para Dona Gina.

09 – Por que o narrador se sente mal ao mentir para Juliana e qual sua estratégia para resolver a situação com as cinzas?

      O narrador se sente muito mal e chega a se engasgar ao mentir para Juliana sobre as novas exigências burocráticas do crematório. Para resolver a situação, ele começa a pensar em um modo de conseguir cinzas falsas e remetê-las ao Brasil, planejando retornar ao crematório municipal em busca de uma "pista".

10 – Qual o dilema final do narrador em relação às duas encomendas?

      O dilema final é que, enquanto ele tenta encontrar uma solução para as cinzas de Dona Gina (produzir cinzas falsas), ele se vê "encalacrado" com a mulher do editor (Dulce). Agora, Dulce e seus amigos querem saber onde ele comprou o "tempero" (as cinzas) e se ele pode enviá-lo periodicamente, criando uma nova e bizarra demanda para o narrador.

 

CRÔNICA: O PRAZER DA LEITURA - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 Crônica: O prazer da leitura

               Rubem Alves

        Este texto, eu o dedico aos professores e professoras que fazem o que de mais importante existe na educação: seduzir as crianças para o prazer que mora nos livros.

        Alfabetizar é ensinar a ler. A palavra alfabetizar vem de "alfabeto". "Alfabeto" é o conjunto das letras de uma língua, colocadas numa certa ordem. É a mesma coisa que "abecedário". A palavra "alfabeto" é formada com as duas primeiras letras do alfabeto grego: "alfa" e "beta". E "abecedário", com a junção das quatro primeiras letras do nosso alfabeto: "a", "b", "c" e "d". Assim sendo, pensei a possibilidade engraçada de que "abecederizar", palavra inexistente, pudesse ser sinônima de "alfabetizar"...

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEikZxyr649XDWhtr6f6-JuGa4x5GjQGGA-OnpIhaLmFC0wf1suujthqKssLVBlmACxjkfyqNbbUQjUtWO87oSY0XWXriTuAf-YDsAKYKMQSZHqbE67k5K3b46cd1hpI1ZA8wj9K7zJaLGF8TdONxSQBJtD3PZ74_7gFSJsOAIFl-yZ-aJ5kIVZzMNRzC9I/s320/como-alfabetizar-letrando.jpg


        "Alfabetizar", palavra aparentemente inocente, contém uma teoria de como se aprende a ler. Aprende-se a ler aprendendo-se as letras do alfabeto. Primeiro as letras. Depois, juntando-se as letras, as sílabas. Depois, juntando-se as sílabas, aparecem as palavras...

        E assim era. Lembro-me da criançada repetindo em coro, sob a regência da professora: "be-a-ba; be-e-be; be-i-bi; be-o-bo; be-u-bu"... Estou olhando para um cartão-postal, miniatura de um dos cartazes que antigamente se usavam como tema de redação: uma menina cacheada, deitada de bruços sobre um divã, queixo apoiado na mão, tendo à sua frente um livro aberto onde se vê "fa", "fe", "fi", "fo", "fu"... (Centro de Referência do Professor, Centro de Memória, Praça da Liberdade, Belo Horizonte, Minas Gerais).

        Se é assim que se ensina a ler, ensinando as letras, imagino que o ensino da música deveria se chamar "dorremizar": aprender o dó, o ré, o mi... Juntam-se as notas e a música aparece! Posso imaginar, então, uma aula de iniciação musical em que os alunos ficassem repetindo as notas, sob a regência da professora, na esperança de que, da repetição das notas, a música aparecesse...

        Todo mundo sabe que não é assim que se ensina música. A mãe pega o nenezinho e o embala, cantando uma canção de ninar. E o nenezinho entende a canção. O que o nenezinho ouve é a música e não cada nota, separadamente! E a evidência da sua compreensão está no fato de que ele se tranquiliza e dorme – mesmo nada sabendo sobre notas! Eu aprendi a gostar de música clássica muito antes de saber as notas: minha mãe as tocava ao piano e elas ficaram gravadas na minha cabeça. Somente depois, já fascinado pela música, fui aprender as notas – porque queria tocar piano. A aprendizagem da música começa como percepção de uma totalidade – e nunca com o conhecimento das partes.

        Isso é verdadeiro também sobre aprender a ler. Tudo começa quando a criança fica fascinada com as coisas maravilhosas que moram dentro do livro. Não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a história. A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras: quando alguém lê e a criança escuta com prazer. "Erotizada" – sim, erotizada! – pelas delícias da leitura ouvida, a criança se volta para aqueles sinais misteriosos chamados letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los – porque eles são a chave que abre o mundo das delícias que moram no livro! Deseja autonomia: ser capaz de chegar ao prazer do texto sem precisar da mediação da pessoa que o está lendo.

        No primeiro momento as delícias do texto se encontram na fala do professor. Usando uma sugestão de Melanie Klein, o professor, no ato de ler para os seus alunos, é o "seio bom", o mediador que liga o aluno ao prazer do texto. Confesso nunca ter tido prazer algum em aulas de gramática ou de análise sintática. Não foi nelas que aprendi as delícias da literatura. Mas me lembro com alegria das aulas de leitura. As aulas de leitura ninguém faltava; ninguém falava. Queríamos ouvir a professora lendo. Antes de ler Monteiro Lobato, eu o ouvi. E o bom era que não havia provas sobre aquelas aulas. Era prazer puro. Existe uma incompatibilidade total entre a experiência prazerosa de leitura – experiência vagabunda! – e a experiência de ler a fim de responder questionários de interpretação e compreensão. Era sempre uma tristeza quando a professora fechava o livro...

        Vejo, assim, a cena original: a mãe ou o pai, livro aberto, lendo para o filho... Essa experiência é o aperitivo que ficará para sempre guardado na memória afetiva da criança. Na ausência da mãe ou do pai a criança olhará para o livro com desejo e inveja. Desejo, porque ela quer experimentar as delícias que estão contidas nas palavras. E inveja, porque ela gostaria de ter o saber do pai e da mãe: eles são aqueles que têm a chave que abre as portas daquele mundo maravilhoso! Roland Barthes faz uso de uma linda metáfora poética para descrever o que ele desejava fazer, como professor maternagem: continuar a fazer aquilo que a mãe faz. É isso mesmo: na escola, o professor deverá continuar o processo de leitura afetuosa. Ele lê: a criança ouve, extasiada! Seduzida, ela pedirá: "Por favor, me ensine! Eu quero poder entrar no livro por conta própria...".

        Toda aprendizagem começa com um pedido. Se não houver o pedido, a aprendizagem não acontecerá. Há aquele velho ditado: "E fácil levar a égua até o meio do ribeirão. O difícil é convencer a égua a beber". Traduzido pela Adélia Prado: "Não quero faca nem queijo. Quero é fome". Metáfora para o professor: cozinheiro, Babette que serve o aperitivo para que a criança tenha fome e deseje comer o texto...

        Onde se encontra o prazer do texto? Onde se encontra o seu poder de seduzir? Tive a resposta para essa questão acidentalmente, sem que a tivesse procurado. Ele me disse que havia lido um lindo poema de Fernando Pessoa, e citou a primeira frase. Fiquei feliz porque eu também amava aquele poema. Aí ele começou a lê-lo. Estremeci. O poema – aquele poema que eu amava – estava horrível na sua leitura. As palavras que ele lia eram as palavras certas. Mas alguma coisa estava errada! A música estava errada! Todo texto tem dois elementos: as palavras, com o seu significado. E a música... Percebi, então, que todo texto literário se assemelha à música. Uma sonata de Mozart, por exemplo. A sua "letra" está gravada no papel: as notas. Mas, como partitura, a sonata não existe como experiência estética. Está morta. É preciso que um intérprete dê vida às notas mortas. Martha Argerich, pianista suprema (sua interpretação do concerto n.° 3 de Rachmaninoff me convenceu da superioridade das mulheres...), as toca: seus dedos deslizam leves, rápidos, vigorosos, vagarosos, suaves, nenhum deslize, nenhum tropeção: estamos possuídos pela beleza. A mesma partitura, as mesmas notas, nas mãos de um pianeiro: o toque é duro, sem leveza, tropeções, hesitações, esbarros, erros: é o horror, o desejo que o fim chegue logo.

        Todo texto literário é uma partitura musical. As palavras são as notas. Se aquele que lê é um artista, se ele domina a técnica, se ele surfa sobre as palavras – a beleza acontece. O texto se apossa do corpo de quem ouve. Mas se aquele que lê não domina a técnica, se ele luta com as palavras, se ele não desliza sobre elas em "fortes" e "pianos" – a leitura não produz prazer: queremos que ela termine logo. Assim, quem ensina a ler, isto é, aquele que lê para que seus alunos tenham prazer no texto, tem de ser um artista. Só deveria ler aquele que está possuído pelo texto que lê. Por isso eu acho que deveria ser estabelecida em nossas escolas a prática de "concertos de leitura". Se há concertos de música erudita, jazz e MPB – por que não concertos de leitura? Ouvindo, os alunos aprenderão a difícil e deliciosa arte de ler. E acontece, então, com a leitura, o mesmo que acontece com a música: depois de provar o seu gosto é impossível parar. Se os jovens não gostam de ler, a culpa não é deles. Foram forçados a aprender tantas coisas sobre os textos – gramática, usos da partícula "se", dígrafos, encontros consonantais, análise sintática – que não houve tempo para serem iniciados na única coisa que importa: a beleza musical do texto literário: o aprendizado da anatomia do texto impede que se aprenda a erótica do texto. E esse aprendizado se inicia antes que as crianças saibam as letras. Sem que saibam as letras o seu corpo já é sensível à beleza que mora nos livros...

        APERITIVOS

        -- A menininha de nove anos me explicou como as crianças na sua escola aprendiam a ler: "Aqui na Escola da Ponte não aprendemos letras e sílabas. Só aprendemos totalidades...".

        -- "Analfabeto não é a pessoa que não sabe ler. É a pessoa que, sabendo ler, não gosta de ler." (Quem foi que disse isso? Acho que foi o Mário Quintana.)

        -- Os compositores colocam em suas partituras indicações para orientar o intérprete: lento, presto, adagio, alegretto, forte, piano, ralentando. Os escritores deveriam fazer o mesmo com os seus textos. Há textos que devem ser lidos lentamente, expressivamente, tristemente. Outros que exigem leveza, rapidez, riso. O leitor experiente não precisa dessas indicações. Mas elas poderiam ajudar os principiantes.

        -- "Mais valem dois marimbondos voando que um na mão" (Almanak do aluá).

        -- Graciliano Ramos relata que, quando menino, na escola, lhe ensinaram um ditado: "Fale pouco e bem e ter-te-ão por alguém". Ele repetia o ditado mas ficava com uma dúvida: "Quem será esse 'Tertião'?".

Rubem Alves.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 17-20.

Entendendo a crônica:

01 – A quem Rubem Alves dedica este texto e qual é a principal tarefa que ele lhes atribui?

      Rubem Alves dedica o texto aos professores e professoras. A principal tarefa que ele lhes atribui é seduzir as crianças para o prazer que mora nos livros, enfatizando que essa é a coisa mais importante na educação.

02 – Qual a crítica do autor à forma tradicional de ensinar a ler, baseada no significado da palavra "alfabetizar"?

      O autor critica a forma tradicional de ensinar a ler que foca primeiro nas letras, depois nas sílabas e, por fim, nas palavras, baseando-se na etimologia de "alfabetizar" (aprender o alfabeto). Ele a compara ironicamente ao ensino de música focado apenas nas notas, sem a experiência da melodia, sugerindo que essa abordagem não gera prazer nem compreensão real.

03 – Como Rubem Alves compara o aprendizado da leitura ao aprendizado da música?

      Ele compara o aprendizado da leitura ao da música, afirmando que ambos começam pela percepção de uma totalidade e não pelo conhecimento das partes. Assim como uma criança ouve e entende uma canção de ninar sem saber as notas, o prazer da leitura começa com a escuta fascinada da história, antes mesmo de conhecer as letras.

04 – O que o autor quer dizer com a expressão "Erotizada" pelas delícias da leitura ouvida?

      Com a expressão "Erotizada", o autor se refere à sensação de encantamento e atração intensa que a criança sente pelas histórias lidas em voz alta. Essa "erotização" é o desejo profundo de acessar o mundo de prazer que o livro oferece, levando a criança a querer decifrar as letras para ter autonomia na leitura.

05 – Qual o papel do professor como "seio bom" na visão do autor?

      O professor, no ato de ler para os alunos, atua como o "seio bom", uma metáfora de Melanie Klein. Isso significa que ele é o mediador inicial que conecta o aluno ao prazer do texto, nutrindo esse desejo pela leitura de forma afetiva e prazerosa, sem a imposição de avaliações.

06 – Qual a incompatibilidade que Rubem Alves aponta entre a leitura prazerosa e as práticas escolares comuns?

      O autor aponta uma incompatibilidade total entre a experiência prazerosa de leitura e a prática de ler para responder questionários de interpretação e compreensão. Para ele, a leitura para provas mata o prazer "vagabundo" (livre, descompromissado) da experiência literária.

07 – Segundo o autor, qual é o "aperitivo" essencial para despertar o desejo de ler nas crianças?

      O "aperitivo" essencial é a experiência original de um adulto (mãe, pai ou professor) lendo para a criança. Essa vivência afetiva e prazerosa de ouvir histórias cria um desejo e uma "fome" pela leitura, fazendo com que a criança queira, por si mesma, ter acesso a esse mundo.

08 – Como Rubem Alves explica a "música" presente em todo texto literário?

      Rubem Alves explica que todo texto literário tem dois elementos: as palavras (com seu significado) e a música. Ele compara o texto a uma partitura musical, onde as palavras são as notas. Para que o texto ganhe vida e produza prazer, é preciso que o leitor seja um "artista" que domine a técnica e "surfe" sobre as palavras, dando-lhes a melodia e a expressão adequadas.

09 – Qual a proposta do autor para ensinar a "difícil e deliciosa arte de ler"?

      O autor propõe o estabelecimento da prática de "concertos de leitura" nas escolas. Assim como há concertos de música, ele sugere que os alunos deveriam ouvir leituras artísticas e expressivas de textos literários. Através dessa audição prazerosa, os alunos seriam seduzidos e aprenderiam a "difícil e deliciosa arte de ler".

10 – Qual é a principal razão, segundo o autor, para que muitos jovens não gostem de ler?

      A principal razão, para Rubem Alves, é que os jovens foram forçados a aprender excessivamente sobre a "anatomia do texto" (gramática, análise sintática, etc.) em vez de serem iniciados na "beleza musical" ou na "erótica do texto". Essa abordagem excessivamente técnica impede o desenvolvimento do prazer pela leitura, que deveria começar antes mesmo do conhecimento das letras.

 

domingo, 8 de junho de 2025

CONTO: MACAUÃ - IVENS CUIABANO SCAFF - COM GABARITO

 Conto: MACAUÃ

           Ivens Cuiabano Scaff

        Ninguém se lembrava direito de quando foi que Bugrinho havia chegado ali no Estirão Bonito! Chegou quieto e continuou calado. Deve ter sido bem pequeno mesmo, pois mesmo agora ele devia ter uns doze, onze no máximo. Regulando por aí.

        Veio em alguma embarcação com certeza. Porque estrada por ali era coisa precária. De serventia, só mesmo na época da seca. Nas águas, era corixo juntando com corixo. Baía com baía, baía com rio e parecia que era igual no pantanal lá de baixo, emendado tudo, tudo uma água só. E quero ver automóvel passar. Nem jipe. Nem caminhão. Só carro de boi. E olhe lá.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg3tNJTZbU2uaehe3A2tYykBFupBvqHQ_Xmp7nSJ0mTkvTEB06T1z5LaltWyjDz6djL-KhlZJwoHwETopwrnkRByqxD2Wrqx7Q62y69065VMXFek_niZkA0YLzIKnPMOqYl1crFG2fohzwdYAYShNi2TxnPqXoKM-QCB-Rh4Fj9W9fQ95QYCEbJnINn2Lw/s320/RIO.jpg


        Disque ele veio bem lá de baixo. Da baía do Gahiva. Quase Bolívia. Disque. Diziam. Porque ele mesmo não dizia nada. Bugrinho era quieto como um peixe. Se ele não gostava do apelido, também não retrucava. Olhava as pessoas com aqueles olhos redondos, um pouco puxados como os dos índios. Aí abaixava a cabeça e logo desviava os olhos. Aliás tinha um sestro. Sempre um pouco antes de desviar os olhos, ele piscava o olho esquerdo. Só o esquerdo.

        Quem eram seus pais naturais, disso ninguém tinha conhecimento. Também ninguém se encarregou de substituí-los. Era cria da casa e pronto. Agregado. Pra todo serviço.

        De privilégio, só mesmo a escola. Isso mesmo. Tinha escola no Estirão Bonito. Uma corrutelinha de nada. Tapera de antiga usina, mas escola tinha. E vinha aluno de tudo quanto é morador em volta. De canoa, do rio acima e do rio abaixo. De carroça, de bicicleta e até a pé. Criança não faltava.

        Como alguém tinha decidido e ninguém contestado, já que todo mundo mandava em Bugrinho, ficou assim que ele também ia estudar.

        Bugrinho não faltava nunca. Mas também não falava. Nada. Se aprendia, isso era outro mistério.

        Ninguém lhe tomava lições e ficava tudo por isso mesmo.

        De resto, a vida continuava como sempre foi. No rio, tinha peixe de tudo quanto é tipo, peixe de escama e de couro. No pomar, tudo quanto é tipo de fruta, cada uma no seu tempo. No mato, tudo quanto é tipo de caça.

        Faziam farinha. Faziam rapadura. Doces de tudo que é tipo.

        E tinha as festas de santo. Cada lugar com o seu santo padroeiro e seu dia certo de festejar.

        Assim era a vida no Estirão Bonito. O rio passando. Os sarãs balançando com o vento. As canoas se roçando umas com as outras, amarradas no porto. Aquele pátio grande. Talvez o maior de todos, diziam as pessoas que eram viajadas e já tinham visto outros lugares. Isso diziam como diziam que Estirão Bonito se chamava assim porque era mais bonito que os outros.

        As crianças podiam fazer tudo. Nada era proibido. Nada era perigoso.

        Medo mesmo só de onça que às vezes uma bancava a atrevida vindo pegar um bezerro ali no curral, perto do engenho e das casas de moradia.

        Ah! Também tinham medo do Negrinho d’água e do Minhocão. Quem é que não sabia das duas crianças que sumiram um dia. Duas crianças, um menino e uma menina, iguaizinhos a Joãozinho e Maria, que sumiram e depois de dois dias de procura apareceram mortinhos, parecendo que estavam dormindo de mãozinhas dadas deitadinhos na beira d’água. Foi o Negrinho d’água, só podia. Do Minhocão então, tinha criança que não entrava em canoa nem junto com o pai e mãe, não importa se no lusco-fusco ou até no solão da tarde.

        Mas isso só os muito pequenos. Que eles iam crescendo e perdendo o medo e se espalhando. Não tinha grota, nem baía, nem corixo, nem sangradouro, nem mesmo bocaina, moradia de onça que aquelas crianças não zanzeassem por lá.

        Que o que tinha no Estirão Bonito era criança.

        Era uma alegria a vida no Estirão Bonito.

        Um dia, a professora veio trazer a notícia, uma novidade. Ia chegar uma lancha. Na verdade, duas lanchas. Uma que tinha motor, timão e comandante e a outra não tinha nada disso e era chamada “chata”. A chata era para as mercadorias e vinha colada ao lado da lancha, lancha mesmo, como pequi ou banana quando é fruta gêmea.

        Mas o que é que tem de novidade nisso é que acontece que faz é muito que uma lancha não subia o rio até ali. Antigamente era outra coisa. Tudo acontecia em Cáceres, Corumbá, rio abaixo afora, eles sabiam. Pra chegar em Cuiabá, tinham que passar ali, de subida, pelo Estirão Bonito. Mas aí as embarcações foram rareando, rareando. Dizem que agora tinham outros caminhos. Estrada de ferro. Estrada de chão. Até de asfalto cruzando Mato Grosso sertão afora.

        O fato é que aquela criançada do Estirão Bonito nunca tinha visto uma lancha. Se tinham visto, não se lembravam. Deviam ser muito pequenas na última vinda delas por lá.

        Por isso, a professora ia explicando como eram as embarcações. E lembrando do seu tempo de moça ia ficando emocionada. Cada nome de lancha que ela dizia lhe trazia uma lembrança.

        -- Ah! A lancha “Agashi” era linda. Vinha cortando água desde que apontava no fim do estirão. De longe, a gente via a espuma dela. Só a espuma, antes mesmo de ver a lancha.

        -- E a “Filosofina”? Tinha esse nome em homenagem à filha de um usineiro. Moça muito feia. Deus me livre. Não estou desfazendo, mas ela era muito feia. E como falava nome feio. Nem parecia moça bem criada, filha de gente de posses. Vôte!

        -- Cada lancha tinha sua tripulação. Seu prático. Ah! Vocês não sabem o que é prático? Prático é quem conhece os caminhos do rio. É uma profissão. Ele sabe onde é o canal, onde dá para a lancha passar e onde é baixo, que são as partes rasas.

        -- E a gente vai poder subir na lancha, professora? – já queriam saber as crianças.

        Antes que a professora pudesse responder, Bugrinho falou.

        -- Eu já subi numa, professora.

        Foi aquele espanto. Bugrinho nunca falava nada. Que dirá na sala de aula.

        As crianças ficaram num desassossego. Risinhos, cochichos, beicinhos.

        A professora pediu silêncio.

        -- Já subiu, Bugrinho? Conte pra gente.

        Bugrinho sentiu um calor subindo pelo seu pescoço e se espalhando pelo seu rosto. Sentia também todos os olhares pregados nele. Pra que tinha falado? Se pudesse, sumiria dali num segundo.

        -- Vamos Bugrinho. Conte. Como foi? – Insistiu a professora.

        Bugrinho bem que tentou, mas não conseguiu articular palavra.

        -- Viu nada, professora.

        -- Bugrinho! – a professora com os olhos doces aguardava.

        -- Foi... – por fim Bugrinho falou. E sua voz parecia bater do lado de dentro da sua cabeça, martelar o seu ouvido por dentro antes de com seguir achar o caminho pra fora.

        -- Foi quando eu ainda não morava aqui. Lá passavam muitas lanchas. De todo tamanho.

        -- Mentira, professora. Ele vive aqui desde pequeno. Como é que vai se lembrar?

        A professora levou o dedo aos lábios de novo pedindo silêncio.

        -- Muitos dias antes da lancha chegar, a gente ficava ouvindo o seu barulho...

        Na sala, o silêncio parecia um meio-dia.

        -- ... que é porque o rio faz muitas voltas...

        A professora sorria como quem está ouvindo uma canção de que gosta muito.

        -- ... ou então que, se for na boca da noite, a lancha entrou numa baía e não encontra saída.

        Bugrinho estremeceu como quem sente um arrepio ou quem é acordado de repente. Baixou a cabeça. Piscou o olho esquerdo e desviou os olhos.

        As crianças estavam espantadas com a ousadia de Bugrinho.

        A professora retomou a palavra.

        -- No porto de Cuiabá, tinha uma grande figueira na beira d’água. Debaixo dela, as pessoas ficavam abanando os lenços até as lanchas sumirem na curva do rio.

        Desse dia em diante, o assunto no Estirão Bonito era um só. Ninguém dava certeza. Cada um falava uma coisa. Vinha. Não vinha. Vinha sim.

        -- Se o rio baixar, ela não vem.

        -- Mas ela vem sim. Disque já passou do Poço Feio.

        -- Vir ela vem. Mas não vai parar aqui nem duas horas. Tem que descer rápido o rio senão fica encalhada.

        -- Mas o rio não está baixando. Vocês não estão vendo quanto pau está rodando. Cada cepa de árvore.

        -- Então, vamos ver a marca que eu deixei.

        E lá iam todos para a beira do rio. Todos? Não, cadê Bugrinho? Sumiu. Se bem que Bugrinho era assim mesmo. Não era sempre que estava com a gurizada. Também pra tudo quanto era serviço chamavam Bugrinho. Amanhecia tirando leite. Anoitecia recolhendo gado. Plantava cana. Ajudava na moagem. Remendava canoa furada. Bugrinho pra cá. Bugrinho pra lá. Faz rapadura. Mexe o doce. Cata ovo no quintal. Mesmo assim se dava um tempinho lá estava ele com a criançada. Quietinho. Retraído. Mas sempre lá.

        Mas, depois daquele dia na escola, ele até gostava quando puxavam ele pra lá e pra cá pra tudo quanto é tarefa. Chegava na aula em cima da hora e saía quase correndo quando a professora tocava a sineta. Se pudesse voltar atrás, nunca, teria falado qualquer coisa. Todo dia, ainda morria de vergonha. E se esquecia um pouco daquele dia sempre tinha um pegando no seu pé.

        -- Mentiroso!

        -- Você gosta de aparecer, Bugrinho!

        -- Deu pra inventar agora, é?

        -- Saliente!

        Bugrinho ficava mais quieto ainda. Abaixava a cabeça e um instante antes de desviar os olhos, piscava o olho esquerdo.

        -- Sestroso!

        Aí sumia. Nem as crianças nem os adultos sabiam dar conta dele.

        Sumia a pé ou andando a cavalo em pelo. Por onde? Quando voltava distraído, distraído, parecia que a pergunta não era com ele.

        Ele estava lá. Imóvel no galho mais alto. Olhando longe, sério. Parecia que não tinha nada a ver com as coisas aqui de baixo. Ficava parecendo uma estátua já que só de vez em quando mudava a posição do olhar.

        A vista alcançava todo o grande descampado quase sem nenhuma árvore. Só uma piúva solitária de longe em longe. Campo limpo mesmo. Nem capão tinha. Umas maçarocas de árvores acompanhando um corixo. E só. Lá no fim uma fieira horizontal de árvores bordando o horizonte de lado a lado. Devia de ser com certeza, é sim, a mata da beira do rio. Ou de alguma baía dele.

         Ele gostava mais do cerrado, mas, às vezes, também se aventurava na beira do rio. As suas árvores preferidas era as três figueiras enormes que existiam no pátio do Estirão Bonito. Uma lá no extremo rio acima. Outra no meio perto da casa grande e a terceira já junto da cerca rio abaixo. As figueiras eram mesmo o reino das japuíras com seus ninhos pendurados.

        Gostava também de cruzar o canavial e ir pousar naquelas grandes árvores com raízes à mostra que cresciam na beira lodosa e cheia de folhas mortas das baías.

        Andava por todos os cantos, porque era o rei de tudo.

        Bugrinho concordava que ele era o rei. Ele nunca tinha visto um rei de verdade. Sabia só das aulas de história que existiam reis. Reis de lugares distantes. Reis de histórias de fada. Reis do reino animal. Mas Bugrinho sabia. Claro que ele era rei. Tinha o porte de rei. Tinha o olhar altivo de rei. Movia a cabeça com decisão como um rei.

        E quando alçava voo com as suas asas estendidas. Ninguém se igualava a ele. Aliás, ninguém se igualava a eles. Pois eram as várias espécies os gaviões. Tinham os caramujeiros, que se fartavam, porque o que não faltava no Pantanal eram caramujos. O gavião pescador, acastanhado, também chamado de velho, por ter a cabeça branca. O criquiri, que, diziam, cortava os tendões das asas dos filhotes de tuiuiú ainda no ninho e ficava esperando que eles caíssem ao tentar o primeiro voo. Pequenos gaviões inteiramente pretos. Cracarás carijós, rajadinhos para quem não sabe o que é carijó. O gavião de fumaça ou caboclo, marrom com a ponta da asa preta.

        E aquele que Bugrinho mais admirava, o Macauã. Macauã comedor de cobra. Macauã era visto boa parte do ano. Do Macauã, contavam o seguinte. Se o Macauã viesse, assentasse e cantasse em uma árvore seca como aquelas em que os tuiuiús fazem ninhos, o ano seria de seca. Se, ao contrário, o Macauã cantasse em uma árvore bem verde, o ano seria de muita chuva.

        Eram todos reis das aves, pensava Bugrinho, e por todo lugar ele ia vê-los. Sabia onde encontra-los. Aliás, o que não era difícil. Por ali, eles eram muitos. Bugrinho não conhecia outros lugares mas não sabia porque tinha certeza de que ali era a terra dos gaviões.

        -- Onde você andava, Bugrinho? – a professora quer falar com todas as crianças.

        A professora já estava na classe. Criança por tudo quanto é lado.

        -- Já está tudo certo. A lancha chega amanhã às dez horas.

        As crianças já arfavam descompassadamente.

        -- E se vocês prometerem se comportar...

        -- Vamos poder subir na lancha? – as crianças não falavam mais, gritavam.

        -- Melhor!

        Um silêncio de ouvir mosca voando. Um segundo depis daquela gritaria incontrolável.

        -- O quê, professora?

        -- Fala logo.

        -- Vocês foram convidados para almoçar na lancha.

        Ninguém conseguiria controlar aquelas crianças agora. Nem a professora tentava acabar com aquela euforia. Gritos, assobios. Os olhos da professora estavam longe. Ela se lembrava de seu irmão. Hoje já avô, morando longe.

        Seu irmão tinha por muito tempo lidado com navegação. Praticamente tinha passado a sua juventude em cima de uma lancha. Subindo e descendo o rio, praticando o comércio. Trazia mercadorias, sal, trigo, cerveja em garrafas brancas louçadas. Comprava doces, rapaduras, melado. Recebia encomendas das moças. Trazia e levava notícias. Como era querido por todos, esse irmão.

        Pelas crianças, então, nem se fala. Naquele tempo, se lembrava a professora, a comida servida nas lanchas era de primeira, Ela não se esquecia nunca das uvas, das maçãs argentinas. Ah! Foi por isso mesmo que ela havia se lembrado. As maçãs argentinas eram um dos motivos pelos quais ele era tão querido pelas crianças.

        Quando a lancha vinha subindo o rio. Vindo de onde? De Cáceres, Corumbá? De Assunción no Paraguay? Quando a lancha vinha subindo, as crianças já rumavam para a beira do rio. Subiam nas canoas. Se não tinha canoa no porto da corruptela, se jogavam n água e seguiam nadando rumo às embarcações.

        Da proa da lancha que subia o rio, surgia o seu irmão, o comandante, lançando maçãs para a gurizada. Cheio de alegria, gritava a plenos pulmões com a sua voz levemente anasalada.

        -- Manzanas, Manzanas argentinas.

        A sua voz ecoava nos barrancos e o rio parecia uma piracema de tanta criança. Crianças nadando contra a corrente feito lontras brilhantes.

        -- Professora, professora.

        A professora repetia baixinho.

        -- Manzanas, manzanas argentinas.

        Chegou o dia. Chegou a hora. Como custou. Mas chegou. Todos os pensamentos daquele pequeno mundo estavam centrados na chegada das lanchas. As crianças, então, eram um cochicho só. Um grupinho aqui, outro ali, de repente, todas as brincadeiras haviam perdido a graça. A única graça era esperar. Iam, enfim, conhecer a grande maravilha.

        Mas uma coisa não estava certa. Eles não concordavam. Não conseguiam tirar da cabeça. E, de um modo que eles não conseguiam compreender, aquilo os magoava. No fundo, bem lá no fundo. Da alma, do coração. Onde também é a casa da mágoa. Estragava a alegria que a lancha vinha trazer.

        Como é que Bugrinho, aquele arigó, podia já ter visto, aliás não só ter visto, mas ter conhecido tão bem uma lancha? Como é, como funciona. Por dentro e por fora. Tão bem como eles conheciam um carro de boi ou uma moenda. Parecia que aquilo até tirava a graça da chegada da lancha.

        Só podia ser mentira. Gurizinho mentiroso. Querendo bancar o sabido. Merecia uma lição.

        -- Também acho.

        -- Pra aprender.

        -- Não judiem dele.

        -- Ninguém vai judiar.

        Foi assim. O travo no coração daquelas crianças foi se juntando, se juntando e aquele odiozinho que podia se apagar como um fósforo num terreiro bem limpinho, foi se alastrando, se encorpando, se juntando como se fosse fogo no canavial.

        -- Vai ser só um susto, um sustinho.

        -- Mas ele nunca vai esquecer.

        -- Vai ser até bom pra ele.

        -- Metido.

        -- Acha que é o bom.

        Bugrinho vinha voltando de um daqueles passeios solitários. Havia deixado a mata caminhando pelo sangradouro. Sangradouros, vocês sabem, são aquelas valas que levam água para a baía na cheia e devolvem a água na seca. Nessa época do ano, tinha um pouco de água e lama, mas não estava um rio como costuma ficar no alto da cheia e era mais limpo de andar do que por dentro da mata. Ainda tinha a vantagem de que, na hora que, o sangradouro saísse no pátio da usina, ele poderia caminhar sossegado, pois ninguém o veria da casa grande ou da escola já que ele não tinha muita altura.

        Veio vindo, se misturando com os feixes de cana no engenho. Passou por trás da moenda. Foi quando caíram em cima dele como um bando de urubus. Enfiaram em sua boca um pano sujo. Amarraram seus braços. Suas pernas. Não conseguia gritar. Não adiantava espernear. Sentia muitos braços segurando-o. Eram muitos. Conseguiram colocá-lo dentro de um saco e saíram correndo com ele.

        Bugrinho foi deixado num lugar quente e abafado. Esforça daqui, esforça dali, conseguiu se livrar das cordas e sair do saco. Mas de que adiantou. Estava preso. Conhecia aquele lugar. Era uma espécie de depósito abandonado nos fundos da sala de purgar. Trancado a cadeado por fora. Só uma pequena janela lá no alto, quatro vezes ou mais a altura de Bugrinho. Não havia escada. Apesar da penumbra, logo descobriu que não havia nada em pudesse subir.

        Tentou forçar a porta. Nada. Estava trancado. E bem trancado. Tudo tinha sido muito rápido, mas ele sabia quem tinha feito aquilo com ele. Vira alguns rostos de relance. Ouvira os cochichos. Que eram os seus colegas de escola ele sabia. Mas por quê? Nenhum era seu amigo de verdade. Pra falar a verdade, Bugrinho nem sabia direito o que era isso. Mas, se sabia que o desprezavam, não conseguia atinar de alguém que tivesse raiva dele a ponto de fazer aquilo.

        Devia ser uma brincadeira. Sentou-se encostado à parede mas como estava cansado com a caminhada e ali estava quentinho logo ferrou no sono.

        Acordou assustado, suado, com aquele barulho. Que era aquilo? O som se repetiu e ele já completamente desperto teve a certeza. Como que não iriam se lembrar. A lancha. O apito da lancha. Devia vir subindo o rio e apitando. Levantou-se correndo e tentou abrir a porta. A porta estava trancada. Ele tinha até esquecido.

        A lancha apitou de novo. Devia estar quase chegando.

        Bugrinho fez então o que nunca tinha feito na vida. Gritou. Gritou uma, duas vezes. Gritou uma porção. Gritou muitas e muitas vezes.

        Mas aquele depósito em que o trancaram era longe de tudo. A casa grande, a escola ficava do outro lado do engenho, mais perto do rio. Depois, não devia ter ninguém nas casas. Todo o povo do Estirão Bonito já devia estar plantado na beira do rio vendo a lancha chegar.

        Bugrinho continuou gritando, gritando. Mesmo rouco continuava gritando. Até que seu desespero se transformou num grande pranto.

        A lancha vinha subindo o rio pelo lado esquerdo, que deste lado que ficava o canal do rio. Por isso, sua visão ainda estava encoberta pelos sarãs. Mas as crianças nadavam até o meio do rio e de lá gritavam.

        -- Vem vindo. É linda!

        -- Enorme!

        -- Tem duas chatas!

        O povo todo do Estirão Bonito estava enfileirado na beira do rio, uns no sol quente, outros se abrigando na sombra das figueiras. Por fim, o comboio, a lancha e suas duas chatas, surgiu aos olhos de todos. O comandante acenava com uma das mãos e segurava com a outra o timão. As hélices submersas faziam uma espuma branquinha e a água rebojava e depois virava uma esteira de borbulhas que ia se desfazendo aos poucos já longe parecendo um véu de noiva.

        Após manobrar lentamente, por fim atracou.

        Os tripulantes e passageiros começaram a descer com cuidado pelas tábuas que faziam as vezes de prancha, unindo a embarcação à margem do rio.

        As crianças tiveram direito a tudo que haviam prometido. Puderam andar por todos os lugares. Descer à casa de máquinas e ver o motor poderoso e fedorento. Subir aos camarotes no segundo andar. Cuspir lá de cima e ver as piquiras se assanhando, pensando que era comida.

        A professora, muito bem vestida e emocionada, passado e presente passeando em seu coração, conversava com o comandante.

        Se almoçaram na lancha? Claro que almoçaram. Passou tudo tão rápido como um sonho, que terminou com as lanchas usando toda a largura do rio para fazer as manobras e sumir, bruma da manhã sobre o rio, rapidamente rio abaixo.

        Depois. Muito, muito depois que as lanchas sumiram lá na curva do rio, lá longe onde terminava o estirão. Depois que todos os adultos já tinham subido e só as crianças continuavam na beira do rio, Depois que as crianças já tinham enjoado de olhar aquele estirão que nunca mais ia ser o mesmo sem as lanchas.

        Depois foi que uma das crianças se lembrou.

        -- Bugrinho.

        -- O que é que tem Bugrinho?

        -- Quedê?

        -- Quedê o que?

        -- Bugrinho. Ele não estava aqui. Você não soltou?

        -- Eu? Você que ficou de soltar.

        -- Eu deixei a chave com você, lembra?

        -- Eu guardei a chave no lugar. Não ficou nada combinado.

        As crianças se entreolhavam assustadas. Era pra ser só uma brincadeira. Era prá soltá-lo no último minuto. E agora, coitado do Bugrinho. Coitado deles. Aquilo agora depois daqueles momentos de felicidade. O melhor dia de suas vidas.

        -- Agora...Oh! Meu Deus – gemeu uma das meninas, que vontade de chorar.

        -- Agora, agora... Caga na mão e joga fora – respondeu irritado um dos meninos mais velhos.

        Que maldade tinham feito, que coisa muito ruim, ninguém nunca tinha feito uma coisa tão ruim assim. Seus olhos se falavam assim, sem saber o que fazer.

        Até que um deles desabalou na carreira rumo ao depósito seguido por todas as crianças. Suando, correndo, ofegantes e silenciosas.

        Estacaram em frente ao depósito. Encostaram os ouvidos na porta. Nada. Nenhum ruído. O cadeado continuava fechado.

        -- Bugrinho! Bugrinho!

        Nada.

        -- Me dá a chave.

        Empurraram a porta que foi se abrindo com um guinchado. Lá dentro estava quase escuro. Não dava pra ver quase nada. Aí seus olhos foram se acostumando com a penumbra e eles foram distinguindo o saco, as cordas, o pano sujo que eles tinham enfiado na boca do Bugrinho.

        -- Quedê ele?

        O depósito não era grande e como estava abandonado não havia nenhum móvel atrás do qual Bugrinho pudesse se esconder. Nem nenhuma tralha...

        -- Bugrinho! – chamaram com a voz trêmula.

        Não havia nenhuma outra porta e aquela pela qual eles tinham entrado estava trancada quando eles chegaram.

        -- Meu Deus, quedê Bugrinho?

        As crianças suavam frio. O que estava acontecendo?

        -- Você soltou Bugrinho? Fala!

        Todas as crianças estavam arrepiadas.

        -- Não soltei. Juro!

        Os olhos já tinham se acostumado à penumbra. Eles vasculhavam com olhos atentos o salão vazio. Em seguida, elevaram os olhos para a janela lá no alto. Era impossível que Bugrinho, tão pequeno, sem ter onde subir, pudesse ter fugido por ali.

        Ei! Mas a janela não estava vazia. Um pássaro estava pousado nela.

        Um pequeno gavião. Talvez filhote. Imóvel! Olhando longe. Sério.

        Parecia que não tinha nada a ver com aquelas crianças lá em baixo. Talvez nem as tivesse visto. Parecia uma linda estatueta de madeira envernizada.

        As crianças também pareciam estátuas, pequenas estátuas morenas feitas do barro do barranco. O pequeno gavião olhou as crianças com aqueles olhos redondos, um pouco puxados como de um pequeno índio. Em seguida, abaixou a cabeça e, um momento antes de desviar os olhos, piscou o olho esquerdo.

        As crianças, de olhos arregalados e bocas entreabertas, entretanto permaneciam mudas.

        O gavião encolheu-se preparando para voar. Deu impulso e estendendo as asas alçou voo.

        Como um verdadeiro rei.

        Escutei esta história de um velhinho bem velhinho. Desconfio que ele era uma dessas crianças. Talvez não. Talvez fosse apenas um velho que gostava de inventar histórias. Às vezes, eu pedia que ele me contasse a história de Bugrinho, mas, às vezes, eu pedia pra ele contar a história de Macauã. Ou Macamã. O que é a mesma coisa.

SCAFF, I C. Macauã. IN: CARVALHO, J. M. K. de. LEITE, M. C. S., (Sel. e org.). Na margem esquerda do rio – contos de fim de século. São Paulo: Via Lettera, 2002. p. 71-83.

Entendendo o conto:

01 – Quem é Bugrinho e quais são suas principais características físicas e de comportamento no início do conto?

      Bugrinho é um menino, de uns onze a doze anos, que chegou ao Estirão Bonito muito pequeno. Ele é quieto e calado, com olhos redondos e um pouco puxados como os de índios, e tem o sestro de piscar o olho esquerdo antes de desviar o olhar.

02 – Qual a importância da escola no Estirão Bonito para Bugrinho e como ele se comporta nela?

      A escola é o único "privilégio" de Bugrinho. Apesar de nunca faltar, ele permanece calado e é um mistério se realmente aprende, pois ninguém lhe tomava lições.

03 – Quais lendas e medos assombram as crianças do Estirão Bonito?

      As crianças têm medo do Negrinho d’água e do Minhocão, associados ao sumiço e morte de duas crianças que foram encontradas na beira do rio.

04 – Qual é a grande novidade que a professora anuncia e por que ela causa tanta comoção nas crianças?

      A professora anuncia a chegada de duas lanchas, uma com motor e outra, a "chata", para mercadorias. Isso causa comoção porque há muito tempo uma lancha não subia o rio até ali, e a maioria das crianças nunca havia visto uma.

05 – Qual é a reação de Bugrinho ao anúncio da lancha e o que acontece quando ele tenta compartilhar sua experiência?

      Bugrinho surpreende a todos ao dizer que já subiu em uma lancha, causando espanto, risinhos e cochichos entre as crianças. No entanto, ao tentar contar sua experiência, ele se intimida e não consegue articular as palavras, sendo alvo de desconfiança e zombaria.

06 – Como a professora, em sua fala, relaciona a chegada das lanchas com suas próprias memórias e afetos?

      A professora se emociona ao falar das lanchas, lembrando de seu tempo de moça e de seu irmão, o comandante, que trazia mercadorias e, principalmente, maçãs argentinas, sendo muito querido pelas crianças da época.

07 – Qual o motivo que leva as crianças a armarem uma "brincadeira" cruel com Bugrinho?

      As crianças ficam magoadas e irritadas com a suposta mentira de Bugrinho sobre já ter visto uma lancha. Elas sentem que ele está "bancando o sabido" e que isso "tira a graça" da chegada da lancha para elas, decidindo que ele "merecia uma lição".

08 – Onde e como Bugrinho é capturado e trancado pelas outras crianças?

      Bugrinho é capturado no pátio da usina, ao passar por trás da moenda. As crianças o atacam, enfiam um pano sujo em sua boca, amarram-no e o colocam dentro de um saco, trancando-o em um depósito abandonado com uma janela alta e sem escada.

09 – O que Bugrinho faz ao ouvir o apito da lancha, já que está preso?

      Ao ouvir o apito da lancha, Bugrinho tenta forçar a porta e, ao perceber que está trancado e que a lancha está chegando, ele grita desesperadamente muitas e muitas vezes, até ficar rouco e chorar.

10 – Qual é a revelação final sobre Bugrinho e como ela se conecta ao título do conto?

      A revelação final é que Bugrinho não está mais no depósito. Em vez disso, as crianças veem um pequeno gavião pousado na janela alta, que as observa e pisca o olho esquerdo, exatamente como Bugrinho fazia. Isso sugere que Bugrinho se transformou em um gavião Macauã, uma das aves que ele tanto admirava e que era considerada "rei" entre os gaviões, conectando-se diretamente ao título "Macauã".