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terça-feira, 16 de janeiro de 2024

CRÔNICA: NA ROÇA DO LOURENÇO - (FRAGMENTO)- VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Na roça do Lourenço – Fragmento

              Viriato Corrêa

        De quando em quando, inventávamos uns brinquedos e, como das nossas cabeças não saíam as histórias contadas por Vovó Candinha, nos brinquedos que inventávamos quase sempre figuravam reis, príncipes, princesas e pajens.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiA6ctM4vVmKmlfIWEUS2ysxDW38rkj_Tzm0rZ713XGWy1zNmvyNSYh8Fk3qvapx0hrubZTGnH5oVeKjiGZmcLyDm4zFxZBk6uz93yl7ND-vb5oIXdNWSTfEfunN8r1q2k50j06uAGIEcNqKG1HFD0IiHDnRBtHESPMx9I2TYzUysWGBfJ3gWBwMkpO41k/s320/REI.jpg


        Naquela noite, ao luar, eu fazia de rei. O Mundico batia à porta do meu palácio:

        — Ó de casa!

        — Ó de fora! respondia eu. Quem está aí?

        — Um príncipe.

        — Entre.

        Depois batia o Quincas. Eu perguntava.

        — Quem é?

        — Um lavrador que pede licença para falar a Vossa Majestade.

        — Espere aí embaixo.

        — Majestade, eu tenho pressa, insistia ele.

        — Espere, se quiser. Não vou deixar de atender a um príncipe para atender a um trabalhador de enxada.

        No momento em que eu pronunciava estas palavras, meu pai passava perto. Vi-o parar. Senti que me queria dizer alguma coisa, mas imediatamente se arrependeu, seguindo o seu caminho.

        No dia seguinte, às duas da tarde, papai me convidou.

        — Vamos à roça do Lourenço?

        Pulei de contente. Passeios daqueles enchiam-me sempre de alegria.

        Papai montou a cavalo, sentou-me na lua da sela e partimos.

        Era no tempo da colheita.

        No tempo da colheita, as roças dão à gente uma deliciosa impressão de fartura e de esplendor. A terra como que se transforma toda em frutos, frutos aos pares, às dezenas, aos milheiros, nos caules, nos galhos e nas ramas.

        A roça do Lourenço era imensa.

        No milharal cerrado tremulava ao vento a cabeleira loura das espigas. Abóboras e melancias fechavam os caminhos com as longas ramagens e os grandes frutos. O mandiocal agitava ao sopro da brisa as folhas espalmadas. O feijão subia enrascado nas hastes do milho. [...].

        Havia de tudo: aipim, algodão, cana, fumo, maxixeiros, gergelim, quiabeiros, batata-doce, cará. E tudo abundantemente, excessivamente, como se a terra estivesse mostrando que tinha muito e muito queria dar.

        Logo que transpusemos a roça, o Lourenço correu ao nosso encontro, levando-nos para a sombra de um cajazeiro.

        [...].

        Apoiado à enxada com que limpava o mato, o lavrador pôs-se a contar a meu pai as suas esperanças de boa colheita.

        Estava nu da cintura para cima e, com o busto todo molhado pelo suor, dava a impressão de que se derretia ao fogo daquele sol.

        Mosquitos zumbiam em nuvens. Eu me senti atordoado.

        Ele percebeu a minha inquietação e disse prestimosamente:

        — Isso é calor. Para refrescar não há como melancia. Vou abrir-lhe uma.

        Gritou pelo nome dos dois filhos para que trouxessem a fruta e, como ninguém respondesse, sumiu-se por entre a folhagem do milharal.

        — Não sei como esse homem trabalha com tanto sol, tanto calor e tanto mosquito! exclamei.

        Meu pai cravou-me os olhos amigos.

        — No entanto tu não prezas o trabalho desse homem.

        — Eu? bradei surpreendido.

        — Sim. Ontem à noite, quando brincavas de rei, disseste que não ias deixar de atender a um príncipe para atender a um trabalhador de enxada. Um trabalhador de enxada, meu filho, é maior do que um príncipe, quando o príncipe vive na ociosidade. O homem só vale quando trabalha e o trabalho, seja ele qual for — o de enxada ou qualquer outro — é digno e nobre desde que seja honesto.

        E depois de uma ligeira pausa:

        — Os lavradores como o Lourenço são humildes, mas nem por isso deixam de ser úteis. Não há nada mais insignificante do que um pingo d’água. Mas, um pingo d’água, mais outro pingo, mais outro, milhões, milhões e bilhões de pingos formam a chuva que molha a terra, que enche os rios, que rebenta as sementes e que produz as colheitas. Cada trabalhador de enxada que vês nas roças, cavando a terra, ao sol, ao calor, entre nuvens de mosquitos, é o pingo d’água da grandeza do nosso país. O bocadinho que um colhe aqui, o bocadinho que outro colhe acolá, outro bocadinho além e muitos e muitos bocadinhos formam a vida do Brasil, a abundância do Brasil, a riqueza do Brasil.

        O Lourenço chegava.

        Foi com um sorriso de agradecimento respeitoso que eu lhe recebi as talhadas frescas de melancia.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Quem são os personagens principais na brincadeira de faz de conta descrita no início da crônica?

      Os personagens principais são o narrador (quem conta a história) e seus amigos Mundico e Quincas.

02 – Qual é o motivo do passeio à roça do Lourenço no dia seguinte?

      O passeio à roça do Lourenço acontece no dia seguinte porque o pai do narrador o convida para visitar a plantação durante a colheita.

03 – Descreva a cena da roça do Lourenço durante a colheita.

      Durante a colheita, a roça do Lourenço se transforma em um cenário exuberante, com milharais, abóboras, melancias, mandiocal, feijão e uma variedade de cultivos dando a sensação de fartura e esplendor.

04 – Como o lavrador Lourenço recebe o pai e o narrador na roça?

      Lourenço corre ao encontro deles e os leva para a sombra de um cajazeiro, mostrando-se amigável e hospitaleiro.

05 – Como o narrador reage ao calor e aos mosquitos na roça do Lourenço?

      O narrador se sente atordoado devido ao calor e aos mosquitos, expressando seu desconforto. No entanto, Lourenço oferece uma solução ao sugerir melancia para refrescar.

06 – O que o pai do narrador ensina a ele durante o passeio na roça?

      O pai do narrador ensina a importância do trabalho, destacando que o trabalho honesto, seja ele de enxada ou qualquer outro, é digno e nobre. Ele compara os trabalhadores de enxada a pequenos pingos d'água que, juntos, contribuem para a grandeza e riqueza do país.

07 – Como termina a interação entre o narrador e Lourenço na roça?

      A interação termina com o narrador recebendo as talhadas frescas de melancia de Lourenço com um sorriso de agradecimento respeitoso, indicando uma mudança em sua percepção sobre o valor do trabalho do lavrador.

 

CRÔNICA: APRISIONANDO PASSARINHOS - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Aprisionando passarinhos

              Viriato Corrêa

        Foi Ninico da Totonha quem me ensinou a armar as primeiras arapucas.

        Não havia menino mais hábil para apanhar passarinhos. Vivia armando laços e alçapões por todas as árvores e por todas as moitas. Raro o dia em que não nos maravilhava com uma rola, um corrupião, uma graúna ou um xexéu, apanhados vivos nas armadilhas.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMjLBBnvq9SSxolNdfL-WegoFFWLqtSSiuW8VllZca1JDKaqp0Wh-03aeO2tLLV94mIPMAjWaUlSRiO-gi9_y8UXNTbLnxfoHZ4xmcfmQxDQP-IxuIpoVucZlvuPX-M9NcGjFrcIlq18_K2tpXN3FpEWBxQsXgToFwatBbZ9N6mjbgaTfjj9JowqpQfzU/s1600/ARAPUCA.jpg


        A primeira vez que apareci em casa com uma pombinha implume, tirada do ninho, minha mãe me ralhou:

        — Isso não se faz, meu filho, disse-me com a sua voz de veludo. Essa pombinha tem mãe, e a esta hora a pobre mãe está inquieta, à procura dela. Tu gostarias de me ver sofrer?

        — Não, não mamãe, respondi prontamente.

        — Pois a dor que eu sentiria se alguém te levasse para sempre de perto de mim, está sentindo a mãe desta pombinha. Os bichos também têm coração. Amam-se, querem-se bem como nós.

        Passaram-se os dias e eu me esqueci das palavras de mamãe. Um corrupião andava a cantar, todas as manhãs, na cerca da casa de moer cana. Armei o alçapão e apanhei-o. Minha mãe contrariou-se.

        — Cazuza, eu já te disse que isso não se faz! falou-me severamente.

        — Mas este não foi tirado do ninho, expliquei-lhe. Já é grande, não tem mãe.

        — Mas tinha liberdade e tu lhe roubaste a liberdade. Deus fez as aves para viverem livremente no espaço e tu queres encerrá-las nas grades de uma gaiola.

        — Mas eu lhe dou comida, água, tudo, acrescentei. Ela me pegou pelo braço.

        — Onde mamãe me vai levar? indaguei assustado.

        — Vou prender-te no quarto, uma semana, duas semanas, um mês.

        — Não, não! bradei.

        — Mas eu te dou água, comida, tudo. Por que não queres?

        — Porque é ruim, respondi. Assim não brinco, não corro, não vejo nada.

        — Ah! exclamou mamãe. Então a comida, a água, não bastam. É preciso a liberdade. Pois essa liberdade que tu não podes dispensar, é a liberdade que queres tirar ao corrupião. A prisão que te assusta é a prisão que queres dar ao pássaro.

        Fiquei silencioso. Eu não tinha mesmo nada para responder. Mamãe aproveitou o meu silêncio.

        — Solta o bichinho, ordenou-me com a voz macia. Soltei-o.

        O pássaro, que estava medroso e trêmulo nas minhas mãos, saiu radiantemente, janela afora, batendo as asas pelo infinito azul, em largos voos de alegria.

        Mas, dias depois, de novo me esqueci dos conselhos de minha mãe.

        O Ninico da Totonha era, na verdade, uma tentação. Contou-me, uma tarde, das arapucas que estava armando para os lados do igarapé. Em breve teria gaiolas cheias de juritis, sururinas, pecoapás e jaçanãs. Deu-me vontade de também armar arapucas.

        O Ninico foi comigo, no mato, escolher o lugar em que eu deveria armá-las.

        Era um cantinho quieto, ao fundo de um cerrado de cipós, debaixo do toldo de um grande pé de maracujá.

        Durante uma semana nada me caiu nas armadilhas.

        Mas, uma tarde, ao aproximar-me do toldo de maracujá, ouvi de longe um pio angustiado. E, ao entrar debaixo da coberta de folhas, senti um áspero rumor de asas por entre os cipós e distingui o vulto negro de uma ave fugindo.

        O coração bateu-me fortemente. Na maior das arapucas estava um filho de jacamim.

        Tive pressa em tirá-lo lá de dentro.

        Acocorei-me, suspendi levemente a arapuca e segurei a avezinha pelas pernas.

        Mas, nesse momento, senti inesperadamente, nas costas, uma verdadeira descarga de bicadas.

        Voltei-me espantado. Era um jacamim, maior que uma galinha, com certeza a ave que fugira quando cheguei.

        Deveria ser a mãe do jacaminzinho.

        Ao ver-me com o filho na mão, investiu contra mim, às bicadas, numa fúria que me desarmou.

        Percebi que me visava os olhos: um golpe alcançou-me em cheio o nariz.

        De cócoras, não me era possível lutar com a ave. Eu conhecia a coragem e a bravura dos jacamins. Tinha-os visto brigar com perus, gaios e até mesmo cães.

        Ergui-me. A ave não se intimidou. Arremessou-se contra mim mais violentamente, bicando-me os pés e as pernas.

        Só com a mão esquerda eu não me podia defender. Com a direita segurava o jacaminzinho pelas canelas.

        Fui recuando, recuando, a ver se conseguia encontrar a saída.

        Mas os meus pés embaraçaram-me num cipó. Caí.

        A ave atirou-se loucamente em cima de mim. Um berro horrível saiu-me da boca. Uma bicada me havia alcançado o olho esquerdo. O jacaminzinho escapou-me da mão.

        Cego, gritando de dor, o rosto molhado de sangue, pus-me a tatear por entre a folhagem sem encontrar o caminho para sair.

        De novo, tropecei num cipó. De novo, rolei no chão.

        E foi numa casa de maribondos que eu tive a desgraça de cair. Na cabeça, no rosto, em todo o corpo senti uma verdadeira chuva de ferroadas.

        Botei a boca no mundo, a berrar desesperadamente.

        O Lourenço Sapateiro, que na ocasião passava na estrada, foi quem me levou para casa.

        O meu estado era miserável. A bicada do jacamim ferira-me o canto do olho esquerdo. Faltou um nada para me furar o globo ocular.

        Os maribondos transformaram-me numa cadeia de montanhas — calombos de alto a baixo do corpo. Os lábios, ferroados, cresceram, incharam, dando-me ao rosto o aspecto estranho de um bicho.

        Durante duas semanas fiquei no quarto gemendo.

        — Foste castigado, disse minha mãe, ao ver-me entrar gritando de dor. Foste castigado por duas faltas. Uma, a maldade de querer tolher a liberdade alheia; outra, a desobediência aos meus conselhos. Deus não gosta dos meninos maus e desobedientes.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual foi a primeira lição sobre armar armadilhas que o narrador recebeu?

      Foi Ninico da Totonha quem ensinou o narrador a armar as primeiras arapucas.

02 – Por que a mãe do narrador repreendeu-o quando ele trouxe uma pombinha implume pela primeira vez?

      Porque a mãe explicou que os animais também têm sentimentos, amor e que roubar a liberdade deles não é correto.

03 – Qual foi a reação da mãe do narrador quando ele capturou um corrupião, alegando que não foi tirado do ninho?

      A mãe contrariou-se e explicou que mesmo que não tenha sido tirado do ninho, o pássaro tinha liberdade, e prendê-lo era errado.

04 – Como o narrador reagiu ao ser ameaçado de ser preso no quarto pela mãe?

      O narrador bradou e protestou, mas acabou soltando o pássaro ao comando da mãe.

05 – O que aconteceu quando o narrador decidiu armar arapucas após ser influenciado por Ninico da Totonha?

      O narrador acabou capturando um filhote de jacamim, e a mãe da ave o atacou furiosamente, causando-lhe sérios ferimentos.

06 – Como a mãe do narrador interpretou o acontecido com o jacamim e o ferimento do narrador?

      A mãe interpretou como um castigo divino, relacionando os ferimentos do narrador à maldade de querer tolher a liberdade alheia e à desobediência aos seus conselhos.

07 – Por que a mãe do narrador afirmou que ele foi castigado por duas faltas?

      A mãe disse que o narrador foi castigado por querer tolher a liberdade dos passarinhos e por desobedecer aos conselhos maternos.

 

 

CRÔNICA: CANTADORES DE VIOLA - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Cantadores de viola

              Viriato Corrêa

        No povoado, a festa mais bonita do Natal era no sítio do João Raimundo, o lavrador que fazia anualmente a maior colheita de algodão.

        Festa de papouco. Brincava-se, cantava-se e dançava-se dois dias e duas noites.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjkUC26nEV9FEnJrORa2Pr_-YsfKdNxcyOLD1QC2OdiSBN6O1lW_Ji9Dh5DTYbTJaaknaE-XcLdTnzw2Po5xe2heT9W19EdTSyQl0OI0ZIEhYzQQwP9owzeiWQ1yg6eddSYpO3UwDXm1E7wo0ZXMa7zggcsgkWwkMDY_wLAF-94J2bBwACIi0tSvUg_dhw/s1600/FESTA.jpg


        Nos lugarejos da roça, o Natal é a grande quadra dos "sambas". Em toda palhoça uma festa. Violas, sanfonas e cavaquinhos enchem de música todos os terreiros.

        O "samba" do João Raimundo começava ao amanhecer de 24 de dezembro. Mal o sol ia apontando no céu quando as ronqueiras estrondeavam nos ares.

        Quando a manhã nascia, o terreiro estava todo plantado de arírís, enfeitado de arcos de píndoba e bandeirolas de papel. No centro, um grande mastro com a figura do menino Deus pregada na bandeira que tremulava no alto.

        Junto à casa — a latada coberta de murta e palmas verdes. Era debaixo da latada que se dançava.

        A festa do João Raimundo tinha fama por aquelas redondezas.

        Convidavam-se os melhores tocadores de viola. Apareciam dois ou quatro cantadores para o "desafio". As mais queridas dançadeiras de chorado não deixavam de vir dançar. Havia comida para se botar fora.

        Os convidados iam chegando pela manhã. E, logo que entrava o primeiro tocador de sanfona ou de viola, começavam as danças.

        Nós, as crianças, íamos para a sombra das jaqueiras brincar o dia inteiro.

        À noite é que a festa crescia e ficava bonita. Nada menos de seis, oito violas, três ou quatro cavaquinhos, rabecas, flautas e pandeiros.

        Na latada e na varanda, dançava um mundo de gente. No terreiro, lavado de luar, estrondeavam de quando em quando as ronqueiras.

        Devia ser meia-noite e eu já cochilava no regaço de minha mãe, quando o Manduca me veio prevenir que o "desafio" não tardaria a começar.

        Corri à latada. Dançava-se vivamente.

        Para a gente matuta, não há nada mais importante numa festa do que o "desafio" entre dois famosos cantadores de viola. Suspendem-se as danças para que todo mundo os ouça em silêncio.

        Os cantadores que se iam medir aquela noite, eram o José Firmino e o Pedro Jeju, os mais festejados daquela beirada de rio. Ninguém queria perder uma palavra da luta que eles iam travar em versos.

        O João Raimundo bateu palmas no meio da latada impondo silêncio:

        — Minha gente, vamos ouvir estes dois "turunas".

        Zoou no ar um quente repinicado de primas e bordões de violas. Os dois cantadores sentaram-se frente a frente.

        Versos de cá, versos de lá, a cruzarem-se. Um improvisava uma quadra ou uma sextilha ou uma oitava e o outro imediatamente respondia com uma oitava ou uma quadra ou uma sextilha.

        No começo, cada um deles disse, em versos, quem era, como nascera, de onde tinha vindo. Cinco minutos depois, começaram a gabar-se de feitos maravilhosos.

        O Pedro Jeju, dedilhando assanhadamente as cordas da viola, soltou a primeira gabolice:

— José Firmino acredite,

                                  Não gosto de me gabar,

Mas quando pego a viola,

Quando começo a cantar,

  Saem da cova os defuntos,

                                  Os peixes saem do mar,

Os anjos descem do céu,

                                   E tudo vem me escutar.

        O José Firmino quase não deixou que o companheiro acabasse o último verso, e cantou de viola estendida no peito:

— Eu não tenho inveja disso,

                               Sou valente, valentão,

                               Canguçu é meu cavalo,

                               Cascavel meu cinturão,

                               Eu engulo brasa viva,

                               Pego corisco com a mão,

                               Um empurrão do meu dedo

                               Bota dez morros no chão.

        O Pedro Jeju respondeu:

— Você pode ser valente,

                                  Habilidoso não é.

                                  Eu calço chinelo em cobra,

                                  Boto guizo em jacaré,

                                  Asso manteiga no espeto,

                                  Faço o tempo andar à ré,

                                  Carrego água em peneira,

                                  Dou beijos em busca-pé.

        O povo aplaudia com palmas e gritos. José Firmino olhou o cantador de alto a baixo e improvisou:

— Isso tudo não é nada,

                                   Não me pode amedrontar:

                                   Paro o vento quando quero,

                                   Já fiz o sol esfriar,

                                   Bebo chumbo derretido,

                                   Sem o chumbo me queimar,

                                   Seguro as onças no mato,

                                    Para meu filho mamar.

        O outro acelerou os dedos nas cordas da viola e respondeu:

              — Se eu for contar minhas artes

                                   Não acabo nunca mais;

                                   Para apagar os incêndios

                                   Uso breu e aguarrás,

                                   Eu ponho luneta em pulga,

                                   E gravata em Satanás,

                                   Eu faço gelo com brasa,

                                   Coisa que você não faz,

                                   Faço o carro andar na frente,

                                   Faço o boi andar atrás.

        E ergueu-se. José Firmino ergueu-se também. Eram ambos fortes no desafio. Não haveria vencido nem vencedor. Não valia a pena teimar.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o cenário principal da festa de Natal descrita na crônica?

      A festa de Natal acontece no sítio do lavrador João Raimundo, onde ocorre a maior colheita de algodão.

02 – Como se caracteriza a festa de Natal no povoado descrito na crônica?

      A festa é animada, com brincadeiras, danças e música, principalmente com a presença de violas, sanfonas e cavaquinhos.

03 – Quem eram os cantadores famosos convidados para o "desafio" na festa?

      José Firmino e Pedro Jeju eram os cantadores famosos convidados para o desafio na festa.

04 – O que caracteriza a importância do "desafio" entre os cantadores na festa?

      O "desafio" entre os cantadores é considerado muito importante, a ponto de suspenderem as danças para que todos possam ouvi-los em silêncio.

05 – Quais são algumas das habilidades mencionadas pelos cantadores durante o "desafio"?

      Os cantadores mencionam habilidades como parar o vento, fazer o sol esfriar, beber chumbo derretido, entre outras.

06 – Como o povo reage ao "desafio" entre José Firmino e Pedro Jeju?

      O povo aplaude com palmas e gritos durante o "desafio" entre José Firmino e Pedro Jeju.

07 – Qual é o desfecho do "desafio" entre José Firmino e Pedro Jeju?

      Não houve vencedor no "desafio". Ambos os cantadores mostraram-se fortes, e a crônica sugere que não valia a pena insistir na busca de um vencedor.

 

 

CRÔNICA: O PATA-CHOCA - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: O Pata-choca

              Viriato Corrêa

        O Hilário bradou em pleno silêncio do exercício de escrita: — Professor, o Pata- choca está comendo terra! João Ricardo pousou nas pernas o jornal que estava lendo, ergueu os óculos para a testa e chamou: — Evaristo, venha cá!

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiBd5_sPAz5fOPRb91tSd__ay2Xq8OK7bQY2a0AhdXP59YEe7Zqm_0JeeSVwZnyNP7FYwVBHGU655EumsyniJYbSjwo4cSzrSSipZJxXw6ZDio2T5WNDPNRhpfDtvJlEf_NvAQijy7xSWavKJfITp-NZD62MJwxT1K-yKTc-Ujhl3dq32B0-9p02lIOpGI/s1600/PATA.jpg


        Vagaroso, mole, pesadão, o Pata-choca arrastou-se até a grande mesa próxima à parede.

        — Abre essa boca!

        Ele não fez um movimento. O professor segurou a régua.

        — Abre essa boca, estou mandando. O pequeno obedeceu. Era verdade: a língua, as gengivas, os dentes estavam cheios de terra.

        Os "bolos" começaram a ressoar. De repente, João Ricardo parou, atirando à palmatória para cima da mesa.

        — Não lhe dou mais, disse. É a décima ou vigésima vez que o castigo porque come terra. Se eu for castigá-lo como merece, rebento-lhe as mãos. O melhor é entregar você a seu pai.

        E para o Caetano, que se sentava no banco atrás do meu:

        — Dê um pulo, ali, à casa do Chico Lopes e peça que ele venha aqui.

        O Pata-choca era o aluno mais atrasado da escola. Havia bastante tempo que lá estava e não conhecia, sequer, as letras do alfabeto.

        Talvez já tivesse dez anos, mas, pela inteligência, não parecia ter mais de cinco.

        O povoado inteiro o considerava o modelo do menino que não dá para nada.

        — Se não abrires os olhos, diziam as mães aos filhos que não sabiam as lições, se não abrires os olhos, tu acabas como o Pata-choca.

        Era um pequeno amarelo, feio, desmazelado, carne balofa, olhos mortos, barriga muito grande e pernas muito finas. Vivia silencioso, boca aberta, cochilando nos bancos, com um eterno ar de cansaço, como se a vida lhe fosse um grande sacrifício.

        Começou a comer terra quando ainda engatinhava.

        O pai (ele não tinha mãe) dava-lhe surras tremendas, de lhe deixar o corpo moído e de levá-lo à cama.

        Mas nada o corrigia. Ao apanhar distraídas as pessoas de casa, atirava-se aos torrões de terra, comendo-os gulosamente.

        Vivia machucado de pancadas, doentinho, o ar de fadiga, o ar estúpido, malquerido da gente grande e desprezado pelas próprias crianças.

        Não havia nada que o acordasse daquela moleza. Se ralhavam com ele, parecia que o ralho lhe entrava por um ouvido e lhe saía pelo outro. Se lhe davam bordoada, chorava um instante, enquanto as pancadas doíam, mas voltava imediatamente à expressão de indiferença e de embrutecimento.

        Ao ver o pai entrar na sala, não se mexeu. Estava encostado à parede e encostado ficou, como se lhe não interessasse nada daquilo.

        O Chico Lopes veio até à mesa do professor, pálido, chapéu na mão, ar constrangido.

        — Já sei, disse depois de encarar o filho, foi ele que fez alguma. É a minha vergonha, professor, este menino é a minha vergonha!

        — É mesmo! afirmou João Ricardo. Não é mais possível aturá-lo. Leve-o, leve-o de uma vez. O senhor é pai, pode fazer o que quiser. Eu é que não posso mais fazer nada. São três anos. Durante três anos castiguei-o, dei-lhe bordoada, fiz tudo que estava nas minhas forças e nada, absolutamente nada consegui. Leve-o, leve-o, que eu perdi completamente a paciência!

        O Chico Lopes machucou nervosamente o chapéu nos dedos e rebateu energicamente:

        — Não, professor! O senhor vai ficar com ele! O senhor vai dar-lhe ensino! Por que não? Porque tem medo de esbofeteá-lo demais? Não tenha medo nenhum! Dê-lhe a bordoada que quiser! Está autorizado por mim.

        E com a voz tocada de emoção:

        — Eu, como pai, lhe peço: fique, fique com o menino! O que eu não quero é que, amanhã, ele seja um animal como eu!

        O mestre-escola abrandou. Cedeu.

        — Está bem! Está bem! Vou tentar, vou fazer o possível. No dia seguinte o Pata-choca entrou na escola cheio de machucões nos braços e no rosto. Havia apanhado brutalmente em casa.

        João Ricardo preveniu-lhe:

        — Hoje, ou você dá a lição certinha ou eu lhe ponho a orelha de burro".

        À tarde, o pequeno deu a lição pior do que nos outros dias. O professor terminou as aulas mais cedo que de costume.

        — Podem ir embora, disse-nos. Quero que vejam o "burro" passar.

        Eu estava em casa, mudando a roupa, quando ouvi uma gritaria na rua. Corri ao peitoril da varanda.

        O Pata-choca vinha caminhando pesadamente. No lugar das orelhas trazia duas grandes, duas enormes orelhas de asno talhadas em papelão. Atrás, um bando de garotos, vaiando-o:

        — Olhe o burro! Olhe o burro!

        Achei uma infinita graça em tudo aquilo e tive a tentação de ir para o meio dos que gritavam, gritar também.

        Passei a perna por cima do peitoril para pular na rua. Minha mãe segurou-me fortemente pelo braço, dizendo-me com energia:

        — Não faças isso! Não vês que ele é um infeliz?

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o comportamento peculiar do Pata-choca que chama a atenção do Hilário durante o exercício de escrita?

      O Pata-choca está comendo terra.

02 – Como o professor João Ricardo reage ao saber que o Pata-choca está comendo terra?

      João Ricardo chama o Pata-choca e exige que ele abra a boca para verificar que sua língua, gengivas e dentes estão cheios de terra.

03 – Como o Pata-choca é descrito fisicamente e emocionalmente pelos habitantes do povoado?

      O Pata-choca é descrito como pequeno, amarelo, feio, desmazelado, com carne balofa, olhos mortos, barriga grande e pernas finas. Ele vive silencioso, com um ar de cansaço constante, como se a vida fosse um grande sacrifício.

04 – Por que o Pata-choca é considerado o modelo do menino que "não dá para nada" pelo povoado?

      O Pata-choca é considerado incapaz e inútil devido ao seu atraso escolar, falta de inteligência aparente e ao hábito de comer terra.

05 – Qual é a reação do professor João Ricardo ao comportamento repetitivo do Pata-choca de comer terra?

      João Ricardo expressa frustração e decide não castigar mais o Pata-choca, afirmando que o melhor é entregá-lo ao seu pai.

06 – Como o pai do Pata-choca, Chico Lopes, reage ao ser chamado à escola pelo professor?

      Chico Lopes pede desculpas pelo comportamento do filho e sugere que o professor continue educando o Pata-choca, mesmo que isso envolva castigos físicos, para evitar que ele se torne um "animal" como o pai.

07 – Como a crônica termina e qual é a reação do narrador ao ver o Pata-choca com orelhas de burro?

      O professor João Ricardo concorda em ficar com o Pata-choca, que entra na escola no dia seguinte com machucados. Ao final, o Pata-choca é visto com grandes orelhas de burro de papelão, e o narrador sente a tentação de rir, mas sua mãe o impede, lembrando-o de que o Pata-choca é um infeliz.