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sábado, 14 de agosto de 2021

CONTO(FRAGMENTO): PEIXE PARA EULÁLIA - MIA COUTO - COM GABARITO

 CONTO(Fragmento): Peixe para Eulália         


              Mia Couto

Foi, nunca mais desceu. Ainda esperaram que Sinhorito tombasse, desamparado, mais sua embarcação. Como nada sucedesse, um por um, os aldeões regressaram a suas casas. Ficou Eulália, só e sozinha. E ali na praça ela montou espera de um acontecimento. A mulher olhava o céu, fosse sol, fosse estrelas. Mas Sinhorito não descia. Nem ele nem a chuva que se propôs buscar. E ainda menos um qualquer peixe.

Vieram buscá-la. Vieram familiares, veio o chefe dos Correios. Puxaram-na, força contra a vontade.

Eulália contrariou os intentos. Apontava, desapontada, o vasto céu.

– Há de vir, há de voltar...

Mia Couto. Peixe para Eulália. Em: O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Entendendo o texto

1) A que palavra se referem os termos “um” destacados na segunda linha do fragmento?

Se referem à palavra “aldeões”.

2) Em relação a esses termos, que função exercem nesse contexto?

Eles expressam o modo como os aldeões regressaram a suas casas, indicando a ideia de “ordenação” (um após o outro).

3) De acordo com essa função, podemos afirmar que pertencem a qual classe de palavras?

À classe de palavras dos numerais.

4) É possível afirmar que o termo “um” destacado na terceira e na quinta linha têm o mesmo funcionamento do que os termos “um”, na segunda? Justifique sua resposta.

Não, pois os termos “um” na terceira e na quinta linha funcionam de modo distinto, indicando apenas uma imprecisão ou indeterminação em relação ao substantivo aos quais se referem (“acontecimento” e “peixe”), isto é, funcionam como artigos indefinidos. Os termos “um” destacados na segunda linha transmitem ideia de “ordenação”, ou seja, funcionam como numerais.

 

segunda-feira, 5 de abril de 2021

CONTO- CHUVA: A ABENSONHADA - MIA COUTO - COM GABARITO

 CONTO- CHUVA: A ABENSONHADA


     Mia Couto

   Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?

            Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez é que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste. Indumentária tão exibível e eu envergando mangas e gangas. Tristereza sacode em sua cabeça a minha teimosia: haverá razoável argumento para eu me apresentar assim tão descortinado, sem me sujeitar às devidas aparências? Ela não entende.

            Enquanto alisa os lençóis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora não tem dúvida: a chuva está a acontecer devido das rezas, cerimónias oferecidas aos antepassados. Em todo o Moçambique a guerra está parar. Sim, agora já as chuvas podem recomeçar. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os mortos, mesmo os mais veteranos, já se ressequiam lá nas profundezas. Tristereza vai escovando o casaco que eu nunca hei-de-usar e profere suas certezas: 
            – Nossa terra estava cheia do sangue. Hoje, está ser limpa, faz conta é essa roupa que lavei. Mas nem agora, desculpe o favor, nem agora o senhor dá vez a este seu fato? 
            – Mas, Tia Tristereza: não está chover de mais?

De mais? Não, a chuva não esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me explica: a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente filho. Para Tristereza a natureza tem seus serviços, decorridos em simples modos como os dela. As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares já encontrarão o chão molhado, conforme o gosto das sementes. A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos.

Mas dentro de mim persiste uma desconfiança: esta chuva, minha tia, não será prolongadamente demasiada? Não será que à calamidade de estio se seguirá a punição das cheias?

Tristereza olha a encharcada paisagem e me mostra outros entendimentos meteorológicos que minha sabedoria não pode tocar. Um pano sempre se reconhece pelo avesso, ela costuma me dizer. Deus fez os brancos e os pretos para, nas costas de uns e outros, poder decifrar o Homem. E apontando as nuvens gordas me confessa:

– Lá em cima, senhor, há peixes e caranguejos. Sim, bichos que sempre acompanham a água.

            E adianta: tais bichezas sempre caem durante as tempestades.

            – Não acredita, senhor? Mesmo em minha casa já caíram.

            – Sim, finjo acreditar. E quais tipos de peixes?

            Negativo: tais peixes não podem receber nenhum nome. Seriam precisas sagradas palavras e essas não cabem em nossas humanas vozes. De novo, ela lonjeia seus olhos pela janela. Lá fora continua chovendo. O céu devolve o mar que nele se havia alojado em lentas migrações de azul. Mas parece que, desta feita, o céu entende invadir a inteira terra, juntar os rios, ombro a ombro. E volto a interrogar: não serão demasiadas águas, tombando em maligna bondade? A voz de Tristereza se repete em monotonia de chuva. E ela vai murmurrindo: o senhor, desculpe a minha boca, mas parece um bicho à procura da floresta. E acrescenta:

            – A chuva está limpar a areia. Os falecidos vão ficar satisfeitos. Agora, era bom respeito o senhor usar este fato. Para condizer com a festa de Moçambique ...

            Tristereza ainda me olha, em dúvida. Depois, resignada, pendura o casaco. A roupa parece suspirar. Minha teimosia ficou suspensa num cabide. Espreito a rua, riscos molhados de tristeza vão descendo pelos vidros. Por que motivo eu tanto procuro a evasão? E por que razão a velha tia se aceita interior, toda ela vestida de casa? Talvez por pertencer mais ao mundo, Tristereza não sinta, como eu, a atracção de sair. Ela acredita que acabou o tempo de sofrer, nossa terra se está lavando do passado. Eu tenho dúvidas, preciso olhar a rua. A janela: não é onde a casa sonha ser mundo?

            A velha acabou o serviço, se despede enquanto vai fechando as portas, com lentos vagares. Entrou uma tristeza na sua alma e eu sou o culpado. Reparo como as plantas despontam lá fora. O verde fala a língua de todas as cores. A Tia já dobrou as despedidas e está a sair quando eu a chamo:

            – Tristereza, tira o meu casaco.

Ela se ilumina de espanto. Enquanto despe o cabide, a chuva vai parando. Apenas uns restantes pingos vão tombando sobre o meu casaco. Tristereza me pede: não sacuda, essa aguinha dá sorte. E de braço dado, saímos os dois pisando charcos, em descuido de meninos que sabem do mundo a alegria de um infinito brinquedo.

(COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 7. ed. Lisboa: Caminho, 2003, p. 57-62)

http://mia-coutiando.blogspot.com/2011/10/chuva-abensonhada-estou-sentado-junto.html

Fonte: Livro - Tecendo Linguagens - Língua Portuguesa: 9º ano/Tania Amaral Oliveira, Lucy Aparecida Melo Araújo - 5.ed. - Barueri(SP): IBEP, 2018 - p.22-25.

POR DENTRO DO TEXTO

1.   Quem são as personagens do conto? Descreva-as.

   O narrador-personagem, provavelmente jovem, bastante pensativo e reflexivo, e tia Tristereza, que é idosa e mostra-se sábia e conhecedora das crenças do seu país.

2.   Em que lugar ocorre o diálogo entre essas personagens?

 Elas estão dentro de uma casa.

3.   Descreva o assunto sobre o qual as personagens conversam. Elas concordam sobre o assunto que está sendo tratado?

As personagens conversam sobre uma festa que ocorrerá em breve e sobre a chuva. Os dois não têm a mesma opinião: ela

acredita que a chuva é um recado dos espíritos e ele não. Ela quer que ele se vista bem para ir à festa de Moçambique, mas

ele não quer usar a roupa que ela lavou e preparou.

 4.Transcreva em seu caderno apenas a alternativa que melhor exprime a opinião da personagem Tristereza sobre a chuva.

a) A chuva era um castigo dos deuses, assim como o período de estio que o povo havia enfrentado.

 b) A chuva serviria para limpar o povo de qualquer pecado e excesso que houvesse cometido durante o período de guerra.

c) A chuva estava lavando a terra do triste passado de guerra.

 

5. Releia este trecho:

A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?

a)   A alegria que as personagens experimentam refere-se somente à chuva que cai após o período de seca?

Não. Na verdade, elas estão alegres porque a guerra está no fim.

b)   Comprove sua resposta ao item anterior com um trecho do terceiro parágrafo. Transcreva-o em  seu caderno.

“Em todo o Moçambique a guerra está parar”.

 6.  Releia este outro trecho:

A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos.

Em seu caderno, explique seu significado.

De acordo com o trecho, a paz não depende da vontade dos políticos, mas é influenciada por outras razões. No conto, a paz é atribuída à chegada da chuva, ou seja, à ocorrência de um fenômeno da natureza.

 TEXTO E CONSTRUÇÃO

 1.   Em sua opinião, que característica mais se destaca no texto? Por quê?

Resposta pessoal. Professor, espera-se que os alunos citem o uso criativo da linguagem e a presença de muitas palavras diferentes das que estamos acostumados.

2.Releia o título e o primeiro parágrafo do conto:

 Chuva: a abensonhada

 Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?

 a)   As palavras destacadas podem ser localizadas no dicionário?

 Não.

b)   Observando o contexto, é possível definir o significado de “tintintinar”. Explique qual é ele.

     Barulho intermitente do chuvisco caindo, provavelmente batendo em alguma superfície metálica.

 c)   E quanto à palavra “indaguava”, por que também é possível defini-la? Explique.

É muito próxima de outra palavra que usamos: “indagava”, que significa “perguntava/ questionava”. Professor, incentive os alunos a perceberem que há uma junção entre o termo “indagar” com a palavra “aguar”, em uma provável tentativa de se referir à água da chuva.

 d)   As palavras “abensonhada” e “perfumegante” também são criações do autor. Observe-as e indique a partir de que outras palavras foram formadas.

Abensonhada – formada por meio da junção de duas palavras:

“abençoada” e “sonhada”.

Perfumegante – formada por meio da junção de duas palavras: “perfumada” e “fumegante”.

 e)   Agora, explique o significado de “abensonhada” e “perfumegante”, no contexto em que foram utilizadas.

Abensonhada – a chuva era abençoada e sonhada (desejada) porque o período de seca fora muito longo.

Perfumegante – a terra seca e quente da estiagem, ao ser molhada pela chuva, libera um vapor como o odor agradável de um perfume.

3. No texto de Mia Couto, há outras palavras formadas pela junção de termos existentes, como: “cantarosa”, “Tristereza” e “murmurrindo”. Explique como se deu a formação nesses exemplos.

Cantarosa – chuva que “canta” e que é “maravilhosa”, “gostosa” etc.

Tristereza – fusão de “triste” com “Tereza”, provavelmente definindo uma característica marcante da personagem.

Murmurrindo – rindo em murmúrio, rindo e falando

sábado, 19 de dezembro de 2020

CONTO: O EMBONDEIRO QUE SONHAVA PÁSSAROS - MIA COUTO - COM GABARITO

 Conto: O embondeiro que sonhava pássaros                    


Mia Couto

Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida. Talvez, por razão disso, ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássaros não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro. Todas manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas. Ele mesmo fabricava aquelas jaulas, de tão leve material que nem pareciam servir de prisão. Parecia eram gaiolas aladas, voláteis. Dentro delas, os pássaros esvoavam suas cores repentinas. À volta do vendedeiro, era uma nuvem de pios, tantos que faziam mexer as janelas: - Mãe, olha o homem dos passarinheiros! E os meninos inundavam as ruas. As alegrias se intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças. O homem puxava de uma muska e harmonicava sonâmbulas melodias. O mundo inteiro se fabulava. Por trás das cortinas, os colonos reprovavam aqueles abusos. Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos - aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que voltasse ao seu devido lugar. Contudo, os pássaros tão encantantes que são - insistiam os meninos. Os pais se agravavam: estava dito. Mas aquela ordem pouco seria desempenhada. [...] O homem então se decidia a sair, juntar as suas raivas com os demais colonos. No clube, eles todos se aclamavam: era preciso acabar com as visitas do passarinheiro. Que a medida não podia ser de morte matada, nem coisa que ofendesse a vista das senhoras e seus filhos. O remédio, enfim, se haveria de pensar. No dia seguinte, o vendedor repetiu a sua alegre invasão. Afinal, os colonos ainda que hesitaram: aquele negro trazia aves de belezas jamais vistas. Ninguém podia resistir às suas cores, seus chilreios. Nem aquilo parecia coisa deste verídico mundo. O vendedor se anonimava, em humilde desaparecimento de si: - Esses são pássaros muito excelentes, desses com as asas todas de fora. Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas? onde, se eles tinham já desbravado os mais extensos matos? O vendedor se segredava, respondendo um riso. Os senhores receavam as suas próprias suspeições - teria aquele negro direito a ingressar num mundo onde eles careciam de acesso? Mas logo se aprontavam a diminuir-lhe os méritos: o tipo dormia nas árvores, em plena passarada. Eles se igualam aos bichos silvestres, concluíam. Fosse por desdenho dos grandes ou por glória dos pequenos, a verdade é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi virando assunto no bairro do cimento. Sua presença foi enchendo durações, insuspeitos vazios. Conforme dele se comprava, as casas mais se repletavam de doces cantos. Aquela música se estranhava nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia àquela terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os residentes, estrangeirando-lhes? [...] O comerciante devia saber que seus passos descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com aquela desobediência, acusando o tempo. [...] As crianças emigravam de sua condição, desdobrando-se em outras felizes existências. E todos se familiavam, parentes aparentes. [...]

Os pais lhes queriam fechar o sonho, sua pequena e infinita alma. Surgiu o mando: a rua vos está proibida, vocês não saem mais. Correram-se as cortinas, as casas fecharam suas pálpebras.

 COUTO, Mia. Cada homem é uma raça: contos/ Mia Couto - 1ª ed. - São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.63 - 71. (Fragmento).

Entendendo o conto

1)   Qual a temática do conto?

O racismo, a rejeição aos negros, ou seja, a segregação racial.

2)   Onde ocorreram os fatos?

Todas manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas.

3)   Qual a história contada? Resuma os fatos que compõem a ação narrada.

Um vendedor de pássaros que circula em um bairro de brancos com suas aves exóticas muda todo o cotidiano daquele bairro do cimento, pois as casas se repletavam de doces cantos. Aquela música se estranhava nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia àquela terra.

4)   O enredo desse conto está centrado em que período da história mundial?

Está centrado no período da colonização em Moçambique.

5)   Se pudesse alterar alguma situação nesse conto, qual seria? Por quê?

Resposta pessoal.

6)   Sobre os elementos destacados do fragmento “Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida.”, leia as afirmativas.

 I. A expressão EM VERDADE pode ser substituída, sem alteração de sentido por COM EFEITO.

         II. ERA O SOL formam o predicado verbal da primeira oração.

        III. NEM, no contexto, é uma conjunção coordenativa. Está correto apenas o que se afirma em:

        a) I e III.

        b) III.

       c) I e II.

       d) I.

       e) II e III.

7) Do ponto de vista da norma culta, a única substituição pronominal realizada que feriu a regra de colocação foi:

 a) " Os brancos se inquietavam com aquela desobediência” = Os brancos inquietavam-se com aquela desobediência.

 b) " O remédio, enfim, se haveria de pensar." = O remédio, enfim, haver-se-ia de pensar.

c) " Eles se igualam aos bichos silvestres, concluíam” = Eles igualam-se aos bichos silvestres, concluíam.

d) "O mundo inteiro se fabulava." = O mundo inteiro fabulava-se.

e) "Chamavam-lhe o passarinho."= Lhe chamavam o passarinheiro.






segunda-feira, 13 de maio de 2019

CONTO: NAS ÁGUAS DO TEMPO - MIA COUTO - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Nas águas do tempo
        
     Mia Couto

      Meu avô, nesses dias, me levava rio abaixo, enfilado em seu pequeno concho. Ele remava, devagaroso, somente raspando o remo na correnteza. O barquito cabecinhava, onda cá, onda lá, parecendo ir mais sozinho que um tronco desabandonado.
        — Mas vocês vão aonde?
        Era a aflição de minha mãe. O velho sorria. Os dentes, nele, eram um artigo indefinido. Vovô era dos que se calam por saber e conversam mesmo sem nada falarem.
        — Voltamos antes de um agorinha, respondia.
        Nem eu sabia o que ele perseguia. Peixe não era. Porque a rede ficava amolecendo o assento. Garantido era que, chegada a incerta hora, o dia já crepusculando, ele me segurava a mão e me puxava para a margem. A maneira como me apertava era a de um cego desbengalado. No entanto, era ele quem me conduzia, um passo à frente de mim. Eu me admirava da sua magreza direita, todo ele musculíneo. O avô era um homem em flagrante infância, sempre arrebatado pela novidade de viver.
        Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mão em concha. E eu lhe imitava. — Sempre em favor da água, nunca esqueça! Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem. Depois viajávamos até ao grande lago onde nosso pequeno rio desaguava. Aquele era o lugar das interditas criaturas. Tudo o que ali se exibia, afinal, se inventava de existir. Pois, naquele lugar se perdia a fronteira entre água e terra. Naquelas inquietas calmarias, sobre as águas nenufarfalhudas, nós éramos os únicos que preponderávamos. Nosso barquito ficava ali, quieto, sonecando no suave embalo. O avô, calado, espiava as longínquas margens. Tudo em volta mergulhava em cacimbações, sombras feitas da própria luz, fosse ali a manhã eternamente ensonada. Ficávamos assim, como em reza, tão quietos que parecíamos perfeitos.
        De repente, meu avô se erguia no concho. Com o balanço quase o barco nos deitava fora. O velho, excitado, acenava. Tirava seu pano vermelho e agitava-o com decisão. A quem acenava ele? Talvez era a ninguém. Nunca, nem por instante, vislumbrei por ali alma deste ou de outro mundo. Mas o avô acenava seu pano.
        — Você não vê lá, na margem? Por trás do cacimbo?
        Eu não via. Mas ele insistia, desabotoando os nervos.
        — Não é lá. É láááá. Não vê o pano branco, a dançar-se?
        Para mim havia era a completa neblina e os receáveis aléns, onde o horizonte se perde. Meu velho, depois, perdia a miragem e se recolhia, encolhido no seu silêncio. E regressávamos, viajando sem companhia de palavra.
        Em casa, minha mãe nos recebia com azedura. E muito me proibia, nos próximos futuros. Não queria que fôssemos para o lago, temia as ameaças que ali moravam. Primeiro, se zangava com o avô, desconfiando dos seus não propósitos. Mas depois, já amolecida pela nossa chegada, ela ensaiava a brincadeira: — Ao menos vissem o namwetxo moha! Ainda ganhávamos vantagem de uma boa sorte... O namwetxo moha era o fantasma que surgia à noite, feito só de metades: um olho, uma perna, um braço. Nós éramos miúdos e saíamos, aventurosos, procurando o moha. Mas nunca nos foi visto tal monstro. Meu avô nos apoucava. Dizia ele que, ainda em juventude, se tinha entrevisto com o tal semifulano. Invenção dele, avisava minha mãe. Mas a nós, miudagens, nem nos passava desejo de duvidar.
        Certa vez, no lago proibido, eu e vovô aguardávamos o habitual surgimento dos ditos panos. Estávamos na margem onde os verdes se encaniçam, aflautinados. Dizem: o primeiro homem nasceu de uma dessas canas. O primeiro homem? Para mim não podia haver homem mais antigo que meu avô. Acontece que, dessa vez, me apeteceu espreitar os pântanos. Queria subir à margem, colocar pé em terra não firme.
        — Nunca! Nunca faça isso!
        O ar dele era de maiores gravidades. Eu jamais assistira a um semblante tão bravio em meu velho. Desculpei-me: que estava descendo do barco mas era só um pedacito de tempo. Mas ele ripostou:
        — Neste lugar, não há pedacitos. Todo o tempo, a partir daqui, são eternidades.
        Eu tinha um pé meio-fora do barco, procurando o fundo lodoso da margem. Decidi me equilibrar, busquei chão para assentar o pé. Sucedeu-me então que não encontrei nenhum fundo, minha perna descia engolida pelo abismo. O velho acorreu-me e me puxou. Mas a força que me sugava era maior que o nosso esforço. Com a agitação, o barco virou e fomos dar com as costas posteriores na água. Ficámos assim, lutando dentro do lago, agarrados às abas da canoa.
        De repente, meu avô retirou o seu pano do barco e começou a agitá-lo sobre a cabeça.
        — Cumprimenta também, você!
        Olhei a margem e não vi ninguém. Mas obedeci ao avô, acenando sem convicções. Então, deu-se o espantável: subitamente, deixámos de ser puxados para o fundo. O remoinho que nos abismava se desfez em imediata calmaria. Voltámos ao barco e respirámos os alívios gerais. Em silêncio, dividimos o trabalho do regresso. Ao amarrar o barco, o velho me pediu: — Não conte nada o que se passou. Nem a ninguém, ouviu?
        Nessa noite, ele me explicou suas escondidas razões. Meus ouvidos se arregalavam para lhe decifrar a voz rouca. Nem tudo entendi. No mais ou menos, ele falou assim:
        --- Nós temos olhos que se abrem para dentro, esses que usamos para ver os sonhos. O que acontece, meu filho, é que quase todos estão cegos, deixaram de ver esses outros que nos visitam. Os outros? Sim, esses que nos acenam da outra margem. E assim lhes causamos uma total tristeza. Eu levo-lhe lá nos pântanos para que você aprenda a ver. Não posso ser o último a ser visitado pelos panos.
        — Me entende?
        Menti que sim. Na tarde seguinte, o avô me levou uma vez mais ao lago. Chegados à beira do poente ele ficou a espreitar. Mas o tempo passou em desabitual demora. O avô se inquietava, erguido na proa do barco, palma da mão apurando as vistas. Do outro lado, havia menos que ninguém. Desta vez, também o avô não via mais que a enevoada solidão dos pântanos. De súbito, ele interrompeu o nada:
        — Fique aqui!
        E saltou para a margem, me roubando o peito no susto. O avô pisava os interditos territórios? Sim, frente ao meu espanto, ele seguia em passo sabido. A canoa ficou balançando, em desequilibrismo com meu peso ímpar. Presenciei o velho a alonjar-se com a discrição de uma nuvem. Até que, entre a neblina, ele se declinou em sonho, na margem da miragem. Fiquei ali, com muito espanto, tremendo de um frio arrepioso. Me recordo de ver uma garça de enorme brancura atravessar o céu. Parecia uma seta trespassando os flancos da tarde, fazendo sangrar todo o firmamento. Foi então que deparei na margem, do outro lado do mundo, o pano branco.
        Pela primeira vez, eu coincidia com meu avô na visão do pano. Enquanto ainda me duvidava foi surgindo, mesmo ao lado da aparição, o aceno do pano vermelho do meu avô. Fiquei indeciso, barafundido. Então, lentamente, tirei a camisa e agitei-a nos ares. E vi: o vermelho do pano dele se branqueando, em desmaio de cor. Meus olhos se neblinaram até que se poentaram as visões.
        Enquanto remava um demorado regresso, me vinham à lembrança as velhas palavras de meu velho avô: a água e o tempo são irmãos gémeos, nascidos do mesmo ventre. E eu acabava de descobrir em mim um rio que não haveria nunca de morrer. A esse rio volto agora a conduzir meu filho, lhe ensinando a vislumbrar os brancos panos da outra margem.

     In: Tania Macêdo e Rita Chaves. Literaturas de língua portuguesa: marcos e marcas – Moçambique. São Paulo: Arte & Ciência, 2007. p. 136-40.

Entendendo o conto:

01 – Mia Couto é um escritor inventivo, que recria a linguagem, obtendo sentidos inusitados.
a)   Identifique no texto alguns neologismos, ou seja, palavras inventadas pelo autor.
Entre outras possibilidades: devagaroso, desabandonado, musculíneo, aflautinados, desabitual, desequilibrismo, arrepioso, barafundido.

b)   Você teve dificuldade para compreender o sentido desses neologismos? Por que você acha que isso acontece?
Resposta pessoal do aluno.

02 – O avô frequentemente navega com o menino próximo às margens do rio.
a)   O que ele pretende com isso?
Pretende ensinar o neto a ver os panos.

b)   Como o avô explica ao neto sua capacidade de ver “os panos”?
Explica que as pessoas em geral perderam a capacidade de olhar para dentro, como nos sonhos, e ver seres de uma outra dimensão, não material.

03 – As ações das personagens, somadas ao uso de expressões como “receáveis aléns”, “olhos que se abrem para dentro”, “solidão dos pântanos” e “interditos territórios”, entre outras, criam certa atmosfera no conto. Como é essa atmosfera?
      É uma atmosfera mágica, misteriosa, sobrenatural.

04 – Já quase no final do conto, o avô desce do barco e pisa “os interditos territórios”. Nesse momento, o neto consegue ver os panos na margem, inclusive o pano vermelho de seu avô, eu começa a mudar de cor.
a)   Interprete a mudança de cor do pano do avô.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Ela representa a morte do avô.

b)   O avô conseguiu atingir seu objetivo? Por quê?
De acordo com a resposta sugerida para a questão anterior, sim, pois o neto começa a ver os panos e, assim, a se comunicar com os “outros” da margem.

05 – O conto tem por título “Nas águas do tempo”. Segundo o avô, “a água e o tempo são irmãos gêmeos, nascidos do mesmo ventre”.
a)   Considerando o desfecho do conto, dê uma interpretação coerente à fase do avô.
As águas de um rio correm sempre, como o tempo. Não sentimos a mudança do rio, pois parece que ele está sempre igual; contudo, suas águas nunca são as mesmas. Assim também ocorre conosco em relação ao tempo, que passa ininterruptamente.

b)   O que representa o rio que o narrador, no último parágrafo do texto, diz ter dentro de si?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Talvez o conhecimento adquirido com o avô sobre os mistérios da vida e do tempo.

c)   Que relação existe entre a metáfora do rio e o ensinamento que o narrador transmite a seu filho?
Assim como as águas do rio estão sempre se renovando, o ensinamento que o narrador transmite ao filho também representa a renovação, o passar das gerações.

06 – Você diria que o texto apresenta um fundo filosófico? Por quê?
      Sim, pois ele promove uma reflexão sobre questões metafísicas, como vida e morte, passagem do tempo, razão de existir, vida depois da morte, etc.


quinta-feira, 18 de outubro de 2018

FÁBULA PARA SÉRIES INICIAIS: O MACACO E O PEIXE - MIA COUTO - COM GABARITO

Fábula: O Macaco e o Peixe    

                          Mia Couto


        Um macaco passeava-se à beira de um rio, quando viu um peixe dentro de água. Como não conhecia aquele animal, pensou que estava a afogar-se. Conseguiu apanhá-lo e ficou muito contente quando o viu aos pulos, preso nos seus dedos, achando que aqueles saltos eram sinais de uma grande alegria por ter sido salvo. Pouco depois, quando o peixe parou de se mexer e o macaco percebeu que estava morto, comentou:
        --- Que pena eu não ter chegado mais cedo!

        MORAL: Cuidado ao tentar ajudar os outros, às vezes você pode atrapalhar.

Entendendo a fábula:

01 – Responda de acordo com o texto:
a) Qual é o título do texto?
      O macaco e o peixe.

b) Quem é o autor?
      Mia Couto.

c) Quantos parágrafos possuem o texto?
      Possui 02 parágrafos.     

d) Qual é a moral da história?
      Cuidado ao tentar ajudar os outros, às vezes você pode atrapalhar.

e) Quantos travessões apresentam no texto?
      01 travessão.

f) Onde o macaco passeava?
      A beira de um rio.

g) O que ele viu?
      Viu um peixe.

h) O macaco conhecia aquele animal? Então o que pensou?
      Não. Pensou que estava afogando.

i) Então o que o macaco fez ao ver que o peixe estava se afogando?
      Ele conseguiu pegar o peixe.

j) O que aconteceu quando o peixe parou de se mexer?
      O macaco percebeu que ele estava morto.

k) O que o macaco falou? Use o travessão.
      --- Que pena eu não ter chegado mais cedo!

02 – Marque X no quadradinho correto.
a) Este texto é:
(  ) um texto jornalístico  (  ) um anúncio  (X) uma fábula
b) A história trata especialmente da:
(  ) esperteza.  (  ) maldade   (  ) gula.      (X) ignorância

03 – Invente dois nomes próprios, um para o macaco e outro para o peixe. Use letra maiúscula, não esqueça.
      Resposta pessoal do aluno.

04 – Numere a segunda coluna de acordo com antônimo das palavras corretamente.
(A) curto                                             (E)alegre            
(B) rápido                                           (F) vivo
(C) nunca                                           (G) igual
(D) amar                                            (H) imperfeito
(E) triste                                             (A) comprido
(F) morto                                            (B) lento
(G) diferente                                       (C) sempre
(H) perfeito         
                                                           (D) odiar
05 – Passe as frases para o plural.
a) O teu livro é novo e colorido.
      Os teus livros são novos e coloridos.

b) Aquele sapato não é grande.
      Aqueles sapatos não são grandes.

c) O cabelo da mulher é comprido.
      Os cabelos das mulheres são compridos.

d) O pião do colega rodopia muito bem!
      Os piões dos colegas rodopiam muito bem!

e) O papel azul rasgou-se.
      Os papeis azuis rasgaram-se.