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sexta-feira, 18 de março de 2022

CRÔNICA: FESTA DE ANIVERSÁRIO - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 Crônica: Festa de aniversário

              Fernando Sabino

     Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa deste mundo:

        -- Engoli uma tampa de Coca-Cola. 

        Levantei as mãos para o céu: mais esta, agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos de idade. Convoquei imediatamente a família:

        -- Disse que engoliu uma tampa de Coca-Cola.

        A mãe, os tios, os avós, todos a cercavam, nervosos e inquietos.

        -- Abra a boca, minha filha. Agora não adianta: já engoliu. Deve ter arranhado. Mas engoliu como? Quem é que engole uma tampa de cerveja? De cerveja não: de Coca-Cola. Pode ter ficado na garganta -- urgia que déssemos uma providência, não ficássemos ali, feito idiotas. Tomei-a ao colo: -- Vem cá, minha filhinha, conta só para mim. Você engoliu coisa nenhuma, não é isso mesmo?

        -- Engoli sim, papai -- ela afirmava com decisão.

        Consultei o tio, baixinho:

        -- O que é que você acha?

        Ele foi buscar uma tampa de garrafa, separou a cortiça do metal:

        -- O que você engoliu: isto... ou isto?

        -- Cuidado que ela engole outra -- adverti.

        -- Isto -- e ela apontou com firmeza a parte de metal.

        Não tinha dúvida: Pronto-Socorro. Dispus-me a carregá-la, mas alguém sugeriu que era melhor que ela fosse andando: auxiliava a digestão.

        No hospital, o médico limitou-se a apalpar-lhe a barriguinha, cético:

        -- Dói aqui, minha filha?

        Quando falamos em radiografia, revelou-nos que o aparelho estava com defeito: só no Pronto-Socorro da cidade.

        Batemos para o Pronto-Socorro da cidade. Outro médico nos atendeu com solicitude.

        -- Vamos já ver isto.

        Tirada a chapa, ficamos aguardando ansiosos a revelação. Em pouco o médico regressava:

        -- Engoliu foi a garrafa.

        -- A garrafa?! -- exclamei. Mas era uma gracinha dele, cujo espírito passava ao largo da minha aflição: eu não estava para graças. Uma tampa de garrafa! Certamente precisaria operar -- não haveria de sair por si mesma.

        O médico pôs-se a rir de mim:

        -- Não engoliu coisa nenhuma. O senhor pode ir descansado.

        -- Engoli -- afirmou a menininha.

        Voltei-me para ela:

        -- Como é que você ainda insiste, minha filha?

        -- Que eu engoli, engoli.

        -- Pensa que engoliu -- emendei.

        -- Isso acontece -- sorriu o médico -- até com gente grande. Aqui já teve um guarda que pensou ter engolido o apito.

        -- Pois eu engoli mesmo -- comentou ela, intransigente.

        -- Você não pode ter engolido -- arrematei, já impaciente. -- Quer saber mais que o médico?

        -- Quero. Eu engoli, e depois desengoli -- esclareceu ela.

        Nada mais havendo a fazer, engoli em seco, despedi-me do médico e bati em retirada com toda a comitiva. 

Quadrante. Rio de Janiro, Editora do Autor, 1962.

Fonte: Português – Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 46-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o conteúdo desta crônica?

      É de conteúdo humorístico, de mal-entendido que aconteceu durante a festa de aniversário.

02 – Por que ela é considerada uma crônica?

      Porque transforma um assunto corriqueiro, como uma festa de aniversário, em matéria para uma crônica.

03 – Como em todo texto narrativo, tem alguém que conta a história. Quem é o narrador deste texto?

      É o pai de Leonora.

04 – Quem são as personagens do texto?

      Leonora, seu pai, familiares e os médicos do pronto-socorro.

05 – Qual o fato que se narra nesse texto?

      O desespero de um pai que pensa que a filha engoliu uma tampa de refrigerante.

 

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

CRÔNICA: O GATO SOU EU - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 Crônica: O gato sou eu

              Fernando Sabino

        – Aí então, eu sonhei que tinha acordado. Mas continuei dormindo.

        – Continuou dormindo?

        – Continuei dormindo e sonhando. Sonhei que estava acordado na cama, e ao lado, sentado na cadeira, tinha um gato me olhando.

        – Que espécie de gato?

        – Não sei. Um gato. Não entendo de gatos. Acho que era um gato preto. Só sei que me olhava com aqueles olhos parados de gato.

        – A que você associa essa imagem?

        – Não era uma imagem: era um gato.

        – Estou dizendo a imagem do seu sonho: essa criação onírica simboliza uma profunda vivência interior. É uma projeção do seu subconsciente. A que você associa ela?

        – Associo a um gato.

        – Eu sei: aparentemente se trata de um gato. Mas na realidade o gato, no caso, é a representação de alguém. Alguém que lhe inspira um temor reverencial. Alguém que a seu ver está buscando desvendar o seu mais íntimo segredo. Quem pode ser essa alguém, me diga? Você deitado aí nesse divã como na cama em seu sonho, eu aqui nesta poltrona, o gato na cadeira… Evidentemente esse gato sou eu.

        – Essa não, doutor. A ser alguém, neste caso o gato sou eu.

        – Você está enganado. E o mais curioso é que, ao mesmo tempo, está certo, certíssimo, no sentido em que tudo o que se sonha não passa de uma projeção do eu.

        – Uma projeção do senhor?

        – Não: uma projeção do eu. O eu, no caso, é você.

        – Eu sou o senhor? Qual é, doutor? Está querendo me confundir a cabeça ainda mais? Eu sou eu, o senhor é o senhor, e estamos conversados.

        – Eu sei: eu sou eu, você é você. Nem eu iria pôr em dúvida uma coisa dessas, mais do que evidente. Não é isso que eu estou dizendo. Quando falo no eu, não estou falando em mim, por favor, entenda.

        – Em quem o senhor está falando?

        – Estou falando na individualidade do ser, que se projeta em símbolos oníricos. Dos quais o gato do seu sonho é um perfeito exemplo. E o papel que você atribui ao gato, de fiscalizá-lo o tempo todo, sem tirar os olhos de você, é o mesmo que atribui a mim. Por isso é que eu digo que o gato sou eu.

        – Absolutamente. O senhor vai me desculpar, doutor, mas o gato sou eu, e disto não abro mão.

        – Vamos analisar essa sua resistência em admitir que eu seja o gato.

        – Então vamos começar pela sua insistência em querer ser o gato. Afinal de contas, de quem é o sonho: meu ou seu?

        – Seu. Quanto a isto, não há a menor dúvida.

        – Pois então? Sendo assim, não há também a menor dúvida de que o gato sou eu, não é mesmo?

        – Aí é que você se engana. O gato é você, na sua opinião. E sua opinião é suspeita, porque formulada pelo consciente. Ao passo que, no subconsciente, o gato é uma representação do que significo para você. Portanto, insisto em dizer: o gato sou eu.

        – E eu insisto em dizer: não é.

        – Sou.

        – Não é. O senhor por favor saia do meu gato, que senão eu não volto mais aqui.

        – Observe como inconscientemente você está rejeitando minha interferência na sua vida através de uma chantagem…

        – Que é que há, doutor? Está me chamando de chantagista?

        – É um modo de dizer. Não vai nisso nenhuma ofensa. Quero me referir à sua recusa de que eu participe de sua vida, mesmo num sonho, na forma de um gato.

        – Pois se o gato sou eu! Daqui a pouco o senhor vai querer cobrar consulta até dentro do meu sonho.

        – Olhe aí, não estou dizendo? Olhe a sua reação: isso é a sua maneira de me agredir. Não posso cobrar consulta dentro do seu sonho enquanto eu assumir nele a forma de um gato.

        – Já disse que o gato sou eu!

        – Sou eu!

        – Ponha-se para fora do meu gato!

        – Ponha-se para fora daqui!

        – Sou eu!

        – Eu!

        – Eu! Eu!

        – Eu! Eu! Eu!

SABINO, Fernando. O gato sou eu. In: ________. Os melhores contos de Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 173-6.

Fonte: Língua Portuguesa – Programa mais MT – Ensino fundamental anos finais – 9° ano – Moderna – Thaís Ginícolo Cabral. p.142-8.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavra abaixo:

·        Onírico: que diz respeito a sonhos.

·        Reverencial: que manifesta reverência, respeito profundo.

·        Subconsciente: que existe na mente, mas não está ao alcance imediato da consciência.

02 – Converse com a turma e o professor a respeito das hipóteses levantadas antes da leitura.

a)   A situação engraçada imaginada por você, com base no título, foi tratada na crônica?

Resposta pessoal do aluno.

b)   Que situação você imaginou? O que o levou a imaginar essa situação?

Resposta pessoal do aluno.

c)   O paciente e o psicanalista se entenderam na conversa?

Não.

d)   Você imaginava que eles iriam se entender?

Resposta pessoal do aluno.

03 – Embora essa seja uma crônica narrativa, ela não apresenta narrador.

a)   A ausência de intervenções do narrador compromete o entendimento da história narrada? Por quê?

Não. As informações sobre os personagens, suas reações e os demais elementos da estrutura narrativa da crônica são todos perceptíveis com base no diálogo entre os personagens.

b)   Essa característica de a ação ser inteiramente construída pelo diálogo entre os personagens aproxima a crônica “O gato sou eu” de outro gênero textual. Qual?

(  ) Conto.

(X) Texto dramático.

(   ) Poema.

Justifique a resposta que você assinalou.

Essa característica aproxima a crônica do texto dramático, no qual comumente não há narrador, pois a ação é toda construída pelos diálogos entre personagens.

04 – O paciente conta ao psicanalista algo que provoca uma tensão na conversa entre eles.

a)   Qual é o fato contado que provoca essa tensão?

O fato de o paciente ter sonhado com um gato é o que provoca a tensão na conversa entre ele e o psicanalista.

b)   Quanto a estrutura narrativa, como pode ser classificada essa tensão?

(   ) Apresentação.

(X) Conflito.

(   ) Clímax.

(   ) Desfecho.

Explique sua resposta.

Do ponto de vista narrativo, isso e um conflito, pois ambos, psicanalista e paciente, acreditam ser o gato, o conflito se dá pois um procura dissuadir o outro dessa ideia.

05 – A palavra , na frase a seguir, costuma ser classificada como um advérbio de lugar.

        – Aí então, eu sonhei que tinha acordado.”

SABINO, Fernando. O gato sou eu. In: ________. Os melhores contos de Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 173.

a)   Considerando o contexto, é possível afirmar que essa palavra faz referência a um lugar? O que ela expressa?

Não faz referência a um lugar; expressa uma continuidade, complemento a algo que já fora dito.

b)   Com base nesse sentido, é possível afirmar que essa frase de abertura coincide com o início da conversa?

Não.

c)   A brevidade é uma das marcas do gênero crônica. Levante hipótese que justifique o uso dessa palavra na abertura do texto.

Uma hipótese possível é que, ao começar a crônica por essa palavra, o autor enfoca, logo na abertura, o conflito da narrativa, o que contribui para a brevidade característica da crônica.

06 – Releia o trecho a seguir e escreva no final de cada parágrafo quem é o personagem que está falando, se paciente ou psicanalista.

        “– [...] Acho que era um gato preto. Só sei que me olhava com aqueles olhos parados de gato. Paciente.

        – A que você associa essa imagem? Psicanalista.

        – Não era uma imagem: era um gato. Paciente.

        – Estou dizendo a imagem do seu sonho: essa criação onírica simboliza uma profunda vivência interior. É uma projeção do seu subconsciente. A que você associa ela? Psicanalista.

        – Associo a um gato.” Paciente.

SABINO, Fernando. O gato sou eu. In: ________. Os melhores contos de Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 173.

a)   Na fala do psicanalista, o sentido da palavra imagem é literal ou figurado? Explique.

Para o psicanalista, o sentido de imagem é figurado, pois, para ele o gato “simboliza” algo, no caso, “uma profunda vivência interior”, portanto imagem tem um sentido de representação simbólica.

b)   E na fala do paciente? Explique.

Para o paciente, o sentido de imagem é literal, pois para ele o gato não pode ser uma representação, reprodução visual, daí afirmar: “Não era uma imagem: era um gato”.

07 – Leia o trecho a seguir e as afirmações sobre ele. Depois marque a alternativa correta.

        “– Eu sei: aparentemente se trata de um gato. Mas na realidade o gato, no caso, é a representação de alguém. Alguém que lhe inspira um temor reverencial. Alguém que a seu ver está buscando desvendar o seu mais íntimo segredo. Quem pode ser essa alguém, me diga? Você deitado aí nesse divã como na cama em seu sonho, eu aqui nesta poltrona, o gato na cadeira… Evidentemente esse gato sou eu.”

SABINO, Fernando. O gato sou eu. In: ________. Os melhores contos de Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 173.

I – O psicanalista acredita despertar temor no paciente.

II – Para o psicanalista, o gato simboliza alguém desconhecido pelo paciente.

III – A palavra que sintetiza o conteúdo da fala do psicanalista é “representação”.

a)   Todas as informações estão corretas.

b)   Somente I e III estão corretas.

c)   Somente I e II estão corretas.

d)   Somente III é correta.

08 – Releia este trecho e, antes de responder às questões, identifique a quem pertence cada turno de fala.

        “– Você está enganado. E o mais curioso é que, ao mesmo tempo, está certo, certíssimo, no sentido em que tudo o que se sonha não passa de uma projeção do eu. Psicanalista.

        – Uma projeção do senhor? Paciente.

        – Não: uma projeção do eu. O eu, no caso, é você. Psicanalista.

        – Eu sou o senhor? Qual é, doutor? Está querendo me confundir a cabeça ainda mais? Eu sou eu, o senhor é o senhor, e estamos conversados.” Paciente.

SABINO, Fernando. O gato sou eu. In: ________. Os melhores contos de Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 174.

a)   A que classe de palavras pertence a palavra eu na frase do psicanalista “O que se sonha não passa de uma projeção do eu”?

A palavra eu é um substantivo.

b)   E na frase do paciente “Eu sou eu”, a que classe gramatical a palavra eu pertence?

A palavra eu, nessa frase, é um pronome.

c)   Explique o efeito de humor produzido nesse trecho com base nas diferenças de classe gramatical da palavra eu.

O paciente em sua fala, demonstra compreender que o psicanalista se refere à individualidade do ser, ao “eu” como pronome pessoal (1ª pessoa do singular), um ser que se diferencia de outro, enquanto o psicanalista se refere à subjetividade do indivíduo, ao “eu” como substantivo.

d)   Explique som suas palavras o que o psicanalista quis dizer ao paciente com: “O eu, no caso, é você.”

Resposta pessoal do aluno.

09 – Cabe ao psicanalista analisar as falas do paciente. Em um momento da crônica, porém, é o paciente que passa a analisar o psicanalista.

a)   Transcreva a fala do paciente que marca essa mudança de atitude.

“– Então vamos começar pela sua insistência em querer ser o gato. Afinal de contas, de quem é o sonho: meu ou seu?”

b)   Ao analisar o psicanalista, o paciente busca convencê-lo de quê?

Busca convencê-lo de que ele é o gato, e não o psicanalista.

c)   Que argumento ele usa para isso?

O argumento de que, como o sonho no qual aparece o gato é dele (do paciente), o gato é ele e não o psicanalista.

d)   O psicanalista concorda com esse argumento? Explique.

Não, ele acredita que o argumento do paciente é suspeito porque foi produzido pela consciência, o que contrasta com a imagem do gato que, segundo o psicanalista, é produto do inconsciente.

10 – Releia o trecho:

        “-- Ponha-se para fora do meu gato!

         -- Ponha-se para fora daqui!”

SABINO, Fernando. O gato sou eu. In: ________. Os melhores contos de Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record, 1986, p. 175.          

a)   A primeira fala apresenta um trocadilho. Qual pode ser?

Em vez de o paciente dizer “Ponha-se para fora do meu quarto!”, ele diz “Ponha-se para fora do meu gato!”.

b)   Explique o uso desse trocadilho no contexto da crônica.

O psicanalista e o paciente reivindicam ser o gato. Ao dizer “Ponha-se para fora do meu gato!”, o paciente expressa o desejo de o psicanalista desistir da ideia de ser o gato.

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

CRÔNICA: PSICOPATA AO VOLANTE - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 CRÔNICA: PSICOPATA AO VOLANTE

                    Fernando Sabino

David Neves passava de carro às onze horas de certa noite de sábado por uma rua de Botafogo, quando um guarda o fez parar:

— Seus documentos, por favor.

 Os documentos estavam em ordem, mas o carro não estava: tinha um dos faróis queimado.

— Vou ter de multar– advertiu o guarda.

— Está bem– respondeu David, conformado.

— Está bem? O senhor acha que está bem?

 O guarda resolveu fazer uma vistoria mais caprichada, e deu logo com várias outras irregularidades:

— Eu sabia! Limpador de para-brisa quebrado, folga na direção, freio desregulado. Deve haver mais coisa, mas para mim já chega. Ou o senhor acha pouco?

— Não, para mim também já chega.

— Vou ter de recolher o carro, não pode trafegar nessas condições.

— Está bem– concordou David.

— Não sei se o senhor me entendeu: eu disse que vou

ter de recolher o carro.

— Entendi sim: o senhor disse que vai ter de recolher o carro. E eu disse que está bem.

— O senhor fica aí só dizendo está bem.

— Que é que o senhor queria que eu dissesse? Respeito sua autoridade.

— Pois então vamos.

— Está bem.

Ficaram parados, olhando um para o outro. O guarda, perplexo: será que ele não está entendendo? Qual é a sua, amizade? E David, impassível: pode desistir, velhinho, que de mim tu não vê a cor do burro de um tostão. E ali ficariam o resto da noite a se olhar, em silêncio, a autoridade e o cidadão flagrado em delito, se o guarda enfim não se decidisse:

— O senhor quer que eu mande vir o reboque ou prefere levar o carro para o depósito o senhor mesmo?

— O senhor é que manda.

— Se quiser, pode levar o carro o senhor mesmo.

 Sem se abalar, David pôs o motor em movimento:

— Onde é o depósito?

 O guarda contornou rapidamente o carro pela frente, indo sentar-se na boleia:

— Onde é o depósito…O senhor pensou que ia sozinho? Tinha graça!

 Lá foram os dois por Botafogo afora, a caminho do depósito.

— O senhor não pode imaginar o aborrecimento que ainda vai ter por causa disso — o guarda dizia.

— Pois é — David concordava: — Eu imagino.

 O guarda o olhava, cada vez mais intrigado:

— Já pensou na aporrinhação que vai ter? A pé, logo numa noite de sábado. Vai ver que tinha aí o seu programinha para esta noite…E amanhã é Domingo, só vai poder pensar em liberar o carro a partir de Segunda-feira. Isto é, depois de pagar as multas todas…

 — É isso aí– e David o olhou, penalizado: — Estou pensando também no senhor, se aborrecendo por minha causa, perdendo tempo comigo numa noite de Sábado, vai ver que até estava de folga hoje…

 — Pois então? — reanimado, o guarda farejou um entendimento: — Se o senhor quisesse, a gente podia dar um jeito…O senhor sabe, com boa vontade, tudo se arranja.

— É isso aí, tudo se arranja. Onde fica mesmo o depósito?

 O guarda não disse mais nada, a olhá-lo, fascinado. De repente ordenou, já à altura do Mourisco:

— Pare o carro! Eu salto aqui.

 David parou o carro e o guarda saltou, batendo a porta, que por pouco não se despregou das dobradiças. Antes de se afastar, porém, debruçou-se na janela e gritou:

— O senhor é um psicopata! 

(Fernando Sabino. A falta que ela me faz. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 94)

Entendendo o texto

01. Qual seria a função social ou intenção da crônica lida?
  (A) informar.                                  (C) relatar memórias.
  (B) entreter/divertir.                       (D) trazer uma reflexão.

02. No trecho “— Se o senhor quisesse, a gente podia dar um jeito…O senhor sabe, com boa vontade, tudo se arranja.” A expressão “boa vontade” significa
    (A) propina.                                                   (C) recompensa.
    (B) dinheiro.   
                                               (D) desacato.

 03. Associe conforme o seguinte código

      (A) Apresentação do conflito.                          
      (B) Desenvolvimento do conflito.
      (C) Clímax.
      (D) Desfecho do texto.
    (D) O momento em que o policial sai do carro e xinga o motorista de psicopata.                                           
    (B) As ameaças sucessivas de multar e prender o carro.
    (C) É o momento em que o policial propõe explicitamente  “um
            entendimento”.
    (A) O trecho em que o motorista é parado pelo policial.

04. Marque o vocábulo no qual apresenta ironia.

      (A) “Psicopata ao volante.”
      (B) “... O senhor acha que está bem?”
      (C) “O guarda resolveu fazer uma vistoria mais caprichada,...”
      (D) “Pare o carro! Eu salto aqui.”

 05. O objetivo do texto é

       (A) mostrar a inversão de valores, entre o policial e o motorista.
       (B) mostrar a imprudência no trânsito.
       (C) mostrar o movimento de propina por infratores no trânsito.
       (D) mostrar a vistoria de documentos feito no trânsito.

06. De modo concluído, o tema do texto é

      (A) ética e cidadania.
      (B) propina e suborno.
      (C) autoridade e cidadão flagrado em delito.
      (D) desacato e infração.

 07. Marque o vocábulo em que há registro de informalidade.

       (A) “... quando um guarda o fez parar: ...”
       (B) “... Se o senhor quisesse, a gente podia dar um jeito…”
       (C) “David parou o carro e o guarda saltou, ...”
       (D) “O guarda o olhava, cada vez mais intrigado: ...”

 08. No trecho “Os documentos estavam em ordem, mas o carro não estava: ...”, de quem é esta fala?

       (A) do motorista.                                (C) do narrador.
       (B) do policial.                                    (D) de outro personagem.

09. O texto apresenta com maior ênfase, um dos recursos de sinalização, muito utilizado em uma conversa

       (A) a reticência.                                  (C) as aspas.
       (B) os dois pontos.                             (D) o travessão.

10. No trecho do texto a seguir “... E David, impassível: pode desistir, velhinho, que de mim tu não vê a cor do burro de um tostão.” A palavra IMPASSÍVEL pode ser trocada sem perda de sentido por

     (A) tranquilo.                               (C) aborrecido.
     (B) perturbado.                           (D) indiferente.

 

 

 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

CONTO: UMA AVENTURA NA SELVA (FRAGMENTO) - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 Conto: Uma aventura na selva (Fragmento)


     Fernando Sabino

        [...]

        Enquanto os demais escoteiros cumpriam cada um sua missão armando o acampamento, a patrulha do Lobo, chefiada pelo Toninho, foi encarregada de catar galhos secos na mata, que servissem de lenha para cozinhar e para o Fogo do Conselho, depois do jantar. Fui com os oito escoteiros, pois ficara mais ou menos agregado a eles, adotado por aquela patrulha como uma espécie de mascote.

        Usando suas machadinhas e facões, os escoteiros se espalharam entre as árvores, cortando galhos aqui e ali. Também eu levava, com orgulho, dependurada ao cinto, a minha faca de campanha. Mas não precisei de usá-la, pois, de acordo com as instruções do comandante da patrulha, minha missão se limitava a recolher do chão todo graveto que encontrasse.

        Distraído com a tarefa, não reparei que me distanciava dos outros, embrenhando-me cada vez mais no meio do mato. Quando percebi que já não mais os via, nem mesmo ouvia suas vozes, procurei regressar, mas não sabia por onde, tantas eram as voltas que havia dado. O mato era denso ao redor, impedindo que eu visse qualquer coisa à distância de uns poucos metros. Mesmo a luz do dia mal chegava onde eu tinha ido parar, impedida pela copa das árvores que se fechavam como um telhado sobre minha cabeça. E o pior é que já começava a anoitecer.

        Procurei prestar atenção, aguçando os ouvidos, para ver se escutava alguma coisa. Realmente deu para captar, ao longe, uns farrapos de conversas e risadas cada vez mais fracas, à medida que se afastavam, eu não conseguia distinguir em que direção. Gritei, gritei, mas não deviam ter me ouvido, pois fiquei esperando um tempão e ninguém apareceu. Senti vontade de chorar, mas resisti: um escoteiro não chora.

        Dava para perceber em que lado o sol se afundava no horizonte, pois seus últimos raios conseguiam varar a parede de árvores, deixando no ar uma cortina de luz. Eu sabia me orientar pelo sol. Bastava virar à esquerda para o poente, e tinha à minha frente o norte, às costas o sul e â direita o leste. Mas de que adiantava? Eu não sabia se o nosso acampamento estava na direção do norte, do sul, do leste ou do oeste. Distraído em olhar o chão à procura de gravetos, eu não havia prestado atenção a nada, e muito menos por onde ia. O que era imperdoável num escoteiro, que deve estar sempre alerta.

        Agora eu descobria que estava completamente perdido, e em breve seria noite. Sabia que tinha ido parar bem longe do acampamento. Devia ter me afastado dos outros uma longa distância, andando sem rumo pela floresta. Era inútil tentar voltar. Eu ia acabar me perdendo de vez, e quando viessem à minha procura, jamais me achariam.

        [...].

      Fernando Sabino. O menino no espelho. Rio de Janeiro: Record, 1986.

                       Fonte: Português – Palavra Aberta – 5ª série – Isabel Cabral – Atual Editora – São Paulo, 1995. p. 02-05.

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fpatrulha-lobo23rn.blogspot.com%2F2011%2F01%2Fpatrulha-lobo.html&psig=AOvVaw3jiQYVFp__HoTEBAj0W5FS&ust=1608335567636000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCJiw2ZKb1u0CFQAAAAAdAAAAABAP

Entendendo o conto:

01 – Vamos observar os elementos dessa narrativa.

a)   Quais são as personagens dessa história?

O menino e o grupo de escoteiros.

b)   O narrador é uma personagem?

Sim.

c)   Onde acontece a história?

No meio da mata.

d)   Quando acontece a história?

Quando os escoteiros cumpriam suas missões.

02 – Vamos relembrar o que acontece nessa história:

a)   Em primeiro lugar, vamos dividi-la em quatro partes, destacando os fatos principais. Os primeiros fatos já foram destacados. Observe:

1 – Em um acampamento de escoteiros, um grupo de meninos é encarregado de recolher galhos secos na mata.

2 – Um dos meninos, considerado como mascote, distrai-se recolhendo gravetos e distancia-se dos demais.

Escreva o que aconteceu de importante nas outras duas partes.

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: 3 – O menino percebe que está sozinho e grita pelos companheiros. 4 – Quase noite, completamente só, permanece quieto, esperando que o busquem no meio do mato.

b)   Agora, reconte a história em forma de desenho. Em seu caderno, faça quatro quadrinhos e desenhe em cada um deles uma parte importante da história. Dê um título para cada quadrinho.

Resposta pessoal do aluno.

03 – Você deve ter notado que quem conta essa história é a personagem menino. Em um momento do texto, o menino diz o seguinte: “Também eu levava, com orgulho, dependurada ao cinto, a minha faca de campanha”.

a)   Para que os escoteiros usavam facas, machadinhas e facões?

Para cortar os galhos secos das árvores.

b)   Por que o menino tinha orgulho de carregar uma faca?

Possuir uma faca significava já ser um escoteiro, ser grande.

c)   Ele usou a faca? Por quê?

Não. O comandante da patrulha deu-lhe como missão apenas recolher os gravetos que já estavam no chão. Tudo indica que era pequeno para usar uma faca.

04 – “Eu sabia me orientar pelo sol. Bastava virar à esquerda para o poente, e tinha à minha frente o norte, às costas o sul e à direita o leste.”. Você também sabe se orientar pelo sol? Descubra onde estão norte, sul, leste e oeste em sua classe.

      Resposta pessoal do aluno.

05 – Podemos afirmar que o menino teve medo? Procure no texto e escreva em seu caderno um trecho que comprove a sua resposta.

      Provavelmente, sim. “Senti vontade de chorar.”

06 – Como você se sentiria se estivesse no lugar do menino? O que você faria?

      Resposta pessoal do aluno.

07 – O que você acha que aconteceu ao menino, durante a noite, sozinho, perdido na mata? Imagine que você é o escoteiro perdido e escreva um final para a história.

      Resposta pessoal do aluno.