Crônica: Pequenas Virtudes
Walcyr Carrasco
Aceno desesperadamente para um táxi. É final de tarde. Estou próximo da avenida da Liberdade. Tenho os braços sobrecarregados com vários pacotes, contendo quimonos, doces de feijão, molho de soja, peixes secos e outros quitutes orientais. O carro estaciona. Atiro tudo no banco de trás e sento no da frente. Dou o endereço. O melhor caminho seria à esquerda. Ele entra à direita.
Suspiro. Decido não reclamar. Como discutir e
descer no trânsito caótico, com aquela tralha toda? Sinto raiva. Para minha
surpresa, ao entrar na avenida, o motorista se surpreende.
— Pensei que pudesse virar aqui. Eu me
confundi.
—: Tudo bem — respondo, mal-humorado.
Ele
desliga o taxímetro. Não entendo.
— Que aconteceu?
— Eu errei o caminho. O senhor só paga a partir
do lugar certo.
Protestei. Ele insistiu. A situação se
inverteu: eu brigando para pagar, ele dizendo que não. Rodou vários
quarteirões. Ligou exatamente onde estaria se tivesse entrado à esquerda e não
à direita. Quando desci, ainda me ajudou a carregar os pacotes.
Estou
surpreso até agora.
Conservo também uma sensação de bem-estar.
Verdade seja dita. Algo de bom anda acontecendo. Ainda ouço histórias sobre
pessoas que desembarcam na rodoviária e caem nas mãos de motoristas desonestos,
capazes de rodar horas a fio para depenar o passageiro. Mas a categoria dos
taxistas tem melhorado. Raramente pego um que queira inventar caminho. Lembro
até hoje de um táxi que tomei, na época das compras de Natal, há poucos anos.
Quando cheguei, o motorista queria bem mais do que o valor da corrida. Brigou
porque eu estava cheio de pacotes e me ameaçou quando me recusei a pagar o extra.
.Ultimamente, não tenho visto acontecer esse tipo de coisa. A honestidade
parece despontar em lugares inesperados. Recentemente, estava na fila do caixa
de uma grande locadora. À minha frente, um cliente mostrou dois filmes ao
atendente. Pediu a opinião. O rapaz foi sincero.
— Este aqui é muito ruim. E óbvio.
Seguiu-se uma pequena conversa. Ao final, o
cliente levou o vídeo. Era o gênero que desejava. Podem argumentar que a
locadora treina seus caixas. Mas em outra, muito menor, sempre me aconteceu o
mesmo. Clodô, misto de gerente, caixa e supervisor artístico, me advertia:
—
Muito chato. Este é melhor.
Nem sempre o meu gosto artístico coincidia. Clodô
tinha um fraco por filmes de ação. Muitas vezes acabei diante de metralhadoras
enfurecidas, agentes de espionagem rodopiando com carros, serial killers
esfaqueando donas-de-casa em cozinhas anti-sépticas. A intenção, porém, é o que
conta. Esses pequenos toques de honestidade tornam a vida melhor.
Restaurantes costumam me irritar com a questão
do troco. Basta pagar em dinheiro para que as moedas nunca cheguem à mesa.
Muitos desenvolvem um conjunto de pequenas mesquinharias para o cliente gastar
mais. Como cobrar caríssimo pelo converte enviar uns patês safados acompanhando
rodelas de pão. Dia desses fui com meu amigo publicitário João Paulo a um novo
restaurante asiático, na região dos Jardins. A dona é uma bonita ex-modelo.
Veio até a mesa e perguntou o que havíamos pedido. Arregalou os olhos:
-— É muita comida. Cada prato dá para dois.
Como dois gordos gulosos, insistimos. Comemos a ponto de ter dificuldade em
levantar da mesa.
Também já ouvi, numa loja de sapatos do
Shopping Eldorado, o conselho de uma humilde vendedora, que provavelmente vive
de comissão.
— Esse modelo não fica bem para o senhor.
Diminui o pé. Era verdade. Meus pés pequenos ficavam menores do que já são.
Naquele dia não comprei nada. Mas sempre que preciso de um sapato-, apareço. Vivo
me defendendo das desonestidades do cotidiano. Por isso dou tanta importância
às pequenas virtudes. Apesar da violência e dos tempos tão difíceis, o
paulistano está aprendendo a ser um cidadão melhor. Será que sou bobo?
Ando perdido em uma selva de palavras. Existem
termos destinados a dar a impressão de que algo não é exatamente o que é. Ou
para botar verniz sobre uma atividade banal. Já estão, sim, incorporados no
vocabulário. Servem para dar uma impressão enganosa. E também para ajudar as
pessoas a parecer inteligentes e chiques porque parecem difíceis. Resolvi
desvendar algumas dessas armadilhas verbais.
Seminovo — Já não se fala em carro usado, mas
em seminovo. Vendedores adoram. O termo sugere que o carro não é tão velho
assim, mesmo que se trate de uma Brasília sem motor. Ou que o câmbio saia na
mão do comprador logo depois da primeira curva. E pura técnica de vendas. Vou
guardá-lo para elogiar uma amiga que fez plástica. Talvez ela adore ouvir que
está "seminova". Mas talvez...
Sale — É a boa e velha liquidação. As lojas dos
shoppings devem achar liquidação muito chula. Anunciam em inglês. Sale quer
dizer que o estoque encalhou. A grife está liquidando, sim!
Não se envergonhe de pedir mais descontos. Pode
ser que não seja chique, mas aproveite.
Lofi — Quando o lofi surgiu, nos Estados
Unidos, era uma moradia instalada em antigos galpões industriais. Sempre enorme
e sem paredes divisórias. Vejo anúncios de lofts a torto e a direito. A maioria
corresponde a um antigo conjugado. Só não tem paredes, para lembrar seu similar
americano. E preciso ser compreensivo. Qualquer um prefere dizer que está
morando em um lofi a dizer em uma quitinete de luxo.
Cult — Não aguento mais ouvir falar que alguma
porcaria é cult. O cult é o brega que ganhou status. O negócio é o seguinte: um
bando de intelectuais adora assistir a filmes de terceira, programas de
televisão populares e afins. Mas um intelectual não pode revelar que gosta de
algo considerado brega. Então diz que é cult. Assim, se pode divertir com
bobagens, como qualquer ser humano normal, sem deixar de parecer inteligente.
Como conceito, próximo do cult está o trash. E o lixo elogiado. Trash é muito
usado para filmes de terror. Um candidato a intelectual jamais confessa que não
perde um episódio da série Sexta-Feira 13, por exemplo. Ergue o nariz e diz que
é trash. Depois, agarra um saquinho de pipoca, senta na primeira fila e grita a
cada vez que o Jason ergue o machado.
Workshop — E uma espécie de curso intensivo.
Existem os bons. Mas o termo se presta a muita empulhação. Pois, ao contrário
dos cursos, no workshop ninguém tem a obrigação de aprender alguma coisa
específica. Basta participar. Muitas vezes botam um sujeito famoso para dar
palestras durante dois dias seguidos. Há alunos que chegam a roncar na sala.
Depois fazem bonito dizendo que participaram de um workshop com fulano ou
beltrano. A palavra é imponente, não é?
Releitura — Ninguém, no meio artístico ou
gastronômico, consegue sobreviver sem usar essa palavra. Está em moda. Fala-se
em releitura de tudo: de músicas, de receitas, de livros. Em culinária,
releitura serve para falar de alguém que achou uma receita antiga e lhe deu um
toque pessoal. Críticos culinários e donos de restaurantes badalados adoram
falar em cardápios com releitura disso e daquilo. Ora, um cozinheiro não bota
seu tempero até na feijoada? Isso é releitura? Então minha avó fazia releitura
e não sabia, coitada. O caso fica mais complicado em outras áreas. Fazer uma
releitura de uma história não é disfarçar falta de ideia? Claro que existem
casos e casos. Mas que releitura serve para disfarçar cópia e plágio, serve.
Seria mais honesto dizer "adaptado de..." ou "inspirado
em...", como faziam antes.
Daria para escrever um livro inteiro a respeito. Fico arrepiado quando alguém vem com uma conversa abarrotada de termos como esses. Parece que vão me passar a perna. Ou a culpa é minha, e não sou capaz de entender a profundidade da conversa. Nessas horas, fico pensando: será que sou bobo? Ou tem gente esperta demais?
Entendendo o texto
01. O narrador acena desesperadamente para um táxi
porque:
a) Está perdido na
cidade.
b) Precisa
transportar vários pacotes.
c) Quer evitar o
trânsito caótico.
d) Está com pressa
para chegar em casa.
02. O motorista do táxi erra o caminho
porque:
a) Não conhece bem a cidade.
b) Se confunde com as direções.
c) Está distraído com a conversa.
d) Quer prolongar a corrida.
03. O motorista desliga o taxímetro porque:
a) Quer agradar o passageiro.
b) Está com problemas no carro.
c) Errou o caminho propositalmente.
d) Pretende cobrar mais no final.
04. Como o narrador se sente ao perceber a
honestidade do taxista?
a) Desapontado.
b) Surpreso e bem-humorado.
c) Desconfiado.
d) Indiferente.
05. Qual é a opinião do narrador sobre a
categoria dos taxistas atualmente?
a) Acredita que piorou nos últimos
anos.
b) Considera-os geralmente
desonestos.
c) Observa uma melhora na
honestidade.
d) Não tem uma opinião definida.
06. Por que o narrador dá importância às
"pequenas virtudes"?
a) Para
parecer inteligente.
b) Porque se defende das
desonestidades do cotidiano.
c)
Porque quer ser um cidadão melhor.
d) Porque tem medo de ser passado para
trás.
07. O narrador menciona uma experiência
negativa em:
a) Uma locadora de carros.
b) Um restaurante.
c) Uma loja de sapatos.
d) Uma loja de eletrônicos.
08. Qual é a crítica do narrador sobre a
questão do "troco" nos restaurantes?
a) O serviço é sempre excepcional.
b) O troco nunca é dado ao cliente.
c) Os clientes recebem sempre moedas
na mesa.
d) Os restaurantes cobram caro por
itens adicionais.
09. O narrador cita um conselho que recebeu
de uma vendedora em uma loja de sapatos. Qual foi esse conselho?
a) Não comprar um modelo específico
de sapato.
b) Comprar um sapato maior para
conforto.
c) Escolher um sapato mais caro.
d) Ignorar os modelos disponíveis.
10. Como o narrador se sente em relação aos
termos utilizados para dar uma impressão enganosa?
a) Desinteressado.
b) Confuso.
c) Desconfiado.
d) Preocupado com a manipulação.