Crônica: O Drama da Gorjeta
Walcyr Carrasco
NUNCA SEI QUANTO dar de gorjeta. Nem se devo
dar. Às vezes, sinto me constrangido porque dei pouco. Na maioria das ocasiões
me revolto. Com manobristas de restaurante, por exemplo. Até algum tempo atrás,
ninguém cobrava pelo serviço. Quando eu entrava no carro ou saía, o manobrista
ficava segurando a porta. Se não colocasse uma cédula na sua mão, seria
obrigado a partir com a porta aberta, arrastando o sujeito pelo asfalto. Soltar
o carro sem gorjeta, ele não soltava! Agora os restaurantes resolveram cobrar pelo
estacionamento. Adianta? O manobrista continua de pé, com a porta escancarada,
aguardando. Vou pagar duas vezes? Podem me chamar de sovina, mas nunca! Entro e
parto com altivez, enquanto ele me atira dardos com os olhos!
Nunca me recusei a pagar o serviço em
restaurante. Dia desses estava com dois amigos no Esplanada Grill. Veio a
conta, calculamos a parte de cada um. O garçom insinuou:
— Os senhores bem que podem caprichar mais um
pouco no cheque.
Pago os 10% do serviço e ainda devo dar por
fora? Nem tinha sido atendido com tanta presteza assim! Meu amigo Ricardo ficou
em dúvida:
— Venho sempre aqui. E se quando voltar não for
bem tratado?
— Você chama o gerente e reclama! — aconselhei.
Partimos com uma sensação ruim! Também vi, no
supermercado Santa Luzia, uma senhora dando gorjeta ao açougueiro para comprar
um bom corte de carne. Quer dizer que eu, por nada oferecer, vou levar o pior?
Em hotel, sempre é uma saia-justa. O sujeito
carrega as malas, mostra o quarto, liga a televisão, explica o funcionamento do
ar-condicionado e sorri, como se estivesse diante do Tom Cruise. Vasculho os
bolsos. Raramente encontro alguma coisa. Em geral, o dinheiro miúdo ficou com o
motorista de táxi, que jamais tem troco! Abro a boca e digo:
— Ih... sinto muito, mas...
É como
se eu tivesse me transformado em uma aranha-caranguejeira. O
mocinho se afasta e sorri, arreganhando os
dentes como um serial killer:
— Não tem importância!
Oh, céus! Nada é mais terrível que a raiva
contida de quem não ganha gorjeta e acha que merece. O mesmo vale para quem
leva gorjeta pequena. Havia uma padaria nos Jardins onde sempre tomava café da
manhã. Certa vez um senhor comeu seu pão com manteiga e deu o troco ao rapaz do
balcão:
— Isso é para você tomar um café.
A resposta foi rápida:
— O senhor desculpe, mas para um café está
faltando.
Envergonhadíssimo, o homem completou o valor.
Eu, por mim, arrancava as moedas da mão do ingrato!
De flanelinhas, nem se fala. São capazes de
ataques de fúria, se dou pouco
dinheiro. O jeito é pedir desculpas:
— Olha, sinto muito, não vi que estava sem
dinheiro quando saí de casa, mas outro dia dou mais, prometo...
Só falta assinar uma promissória!
Seja dita a verdade. Há lugares onde as pessoas
são treinadas para agradecer. No mesmo Santa Luzia, no Santa Maria, nos
supermercados Pão de Açúcar que contam com esse serviço, os empacotadores são
capazes de receber um real com a expressão de quem ganhou um bilhete de
loteria. O Almanara não cobra serviço na conta e lembra que a pessoa será
sempre bem-vinda, dando ou não gorjeta. Basta oferecer um pouco a mais para
ouvir um sonoro "muito obrigado"! Mas são exceções.
Digo a verdade: isso não é coisa só de São
Paulo, não! Duas vezes, em restaurantes de Nova York, tive de correr atrás das
garçonetes para conseguir o troco. Simplesmente se faziam de desentendidas para
ver se eu, um turista selvagem, passaria pelo constrangimento de exigir o meu!
E irritante. A maioria das pessoas que conheço recebe seu salário e olha lá! Fazer o serviço com qualidade é obrigação. Não conheço nenhum professor que ganha gorjeta dos alunos se a aula é bem dada! Decidi: posso levar fama de pão duro. Mas gorjeta, comigo... só quando eu achar que merecem!
Entendendo o texto
01. Qual é
o tema central da crônica "O Drama da Gorjeta" de Walcyr Carrasco?
a)
A importância da generosidade.
b) Os desafios ao dar gorjeta.
c) A cultura de gratificações.
d) As experiências em restaurantes.
02.
Quem é o narrador na crônica?
a) Primeira pessoa.
b) Segunda pessoa.
c) Terceira pessoa.
d) Narrador onisciente.
03.
Onde ocorre a situação em que o narrador sente-se constrangido por dar pouco de
gorjeta?
a) Supermercado.
b) Hotel.
c) Restaurante.
d) Padaria.
04.
Qual é a marca de subjetividade presente na crônica?
a) Imparcialidade.
b) Objetividade.
c) Neutralidade.
d) Opinião
pessoal.
05
Em que lugar o narrador se sente constrangido ao dar gorjeta aos manobristas?
a) Restaurante.
b) Supermercado.
c) Hotel.
d) Padaria.
06.
Qual é a função social abordada na crônica?
a) Educação.
b) Saúde.
c) Consumismo.
d) Serviço e
gratificações.
07.
Qual é a reação do narrador diante da sugestão do garçom de que ele deveria dar
mais gorjeta no restaurante?
a) Ele concorda e dá uma gorjeta maior.
b) Ele ignora a sugestão.
c) Ele se
sente constrangido e parte com uma sensação ruim.
d) Ele chama o gerente e
reclama.
08.
Onde o narrador presencia uma senhora dando gorjeta ao açougueiro para comprar
um bom corte de carne?
a) Supermercado.
b) Hotel.
c) Restaurante.
d) Padaria.
09.
Qual é a reação do narrador ao não encontrar dinheiro nos bolsos para dar gorjeta
ao sujeito que carrega suas malas no hotel?
a)
Ele pede desculpas.
b) Ele dá uma explicação.
c) Ele se
transforma em uma aranha-caranguejeira.
d) Ele oferece uma gorjeta
mesmo assim.
10.
Em que lugares o narrador destaca que as pessoas são treinadas para agradecer,
mesmo sem gorjeta obrigatória?
b) Apenas no Santa Maria.
c) Apenas nos supermercados Pão de Açúcar.
d) No Santa Luzia, Santa Maria e Pão de Açúcar.