terça-feira, 16 de janeiro de 2024

CRÔNICA: A ESCOLA DA VILA - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: A escola da vila

             Viriato Corrêa

        Para quem já tivesse visto o mundo, a vila do Coroatá devia ser feia, atrasada e pobre. Mas, para mim, que tinha vindo da pequeninice do povoado, foi um verdadeiro deslumbramento.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEghDYAgrrfZFy5rgc_kwLI_-63w_rJhR3gy1qvaNxhA4A3SkxcNb5bgh_lyDR-N6t3jjwnODKedIP2lJOfw2zduKuMZS6CHpoNznWR7bVaww4EnXunyobVhOEqr_hsNf9nVxe9E9OHmbwKo4FqUpdqJX_GSswRvhdnH5oOe15-_o1eIVpHV41APCMWeVMY/s320/ESCOLA%20ANTIGA.jpg


        As quatro ou cinco ruas, com a maioria de casas de telha; os três ou quatro sobradinhos; as casas comerciais sempre cheias de mercadorias e de gente; as missas aos domingos; a banda de música de dez figuras; as procissões de raro em raro, eram novidades que me deixaram maravilhado.

        A igreja acanhadinha e velha, onde os morcegos voejavam, tinha aos meus olhos um esplendor estonteante.

        A Casa da Câmara, acaçapada e pesadona, com o vasto salão onde, às vezes, se realizavam festas, parecia-me um palácio.

        O que mais me encantou foi a escola.

        Quando chegamos à vila, já haviam acabado as férias. Durante os quinze dias em que fiquei em casa curando-me das febres, eu via, da janela, as crianças passarem em grandes bandos, à hora em que terminavam as aulas. A vontade de ficar bom para misturar-me com aquela meninada alegre apressou a minha cura.

        A escola funcionava num velho casarão de vastas salas, que devia ter mais de meio século.

        Quando lá entrei, no primeiro dia, levado pela mão de meu pai, senti no peito o coração bater jubilosamente.

        Dona Janoca, a diretora, recebeu-me com o carinho com que se recebe um filho. Os meninos e as meninas, que me viram chegar, olharam-me risonhamente, como se já tivessem brincado comigo.

        Eu, que vinha do duro rigor da escola do povoado, de alunos tristes e de professor carrancudo, tive um imenso consolo na alma.

        A escola da vila era diferente da escolinha da povoação como o dia o é da noite.

        Dona Janoca tinha vindo da capital, onde aprendera a ensinar crianças.

        Era uma senhora de trinta e cinco anos, cheia de corpo, simpática, dessas simpatias que nos invadem o coração sem pedir licença.

        Havia nas suas maneiras suaves um quê de tanta ternura que nós, às vezes, a julgávamos nossa mãe.

        A sua voz era doce, dessas vozes que nunca se alteram e que mais doces se tornam quando fazem alguma censura.

        Mostrava, sem querer, um grande entusiasmo pela profissão de educadora: ensinava meninos porque isso constituía o prazer de sua vida.

        Se um aluno adoecia, ela, apesar dos afazeres, encontrava tempo para lhe levar uma fruta, um biscoito, um remédio.

        Vivia arranjando livros, papel e lápis nas casas comerciais para os meninos paupérrimos. Se um pai se recusava a mandar o filho à escola, corria a convencê-lo de que o pequeno nada seria na vida se não tivesse instrução.

        Quando chegou da capital para dirigir o grupo escolar da vila, o prédio em que as aulas funcionavam estava em ruínas e o mobiliário, de tão velho e maltratado, já não servia para nada.

        Era preciso dar àquilo um jeito de coisa decente. Mas não havia vintém.

        Ela trazia, como auxiliares, as suas irmãs Rosinha e Nenén, ambas moças.

        E as três deixaram o povo surpreendido: saíram de casa em casa a pedir auxílio para as obras, fizeram rifas, organizaram festas, leilões, bazares de sorte, tudo enfim que pudesse render dinheiro.

        E a vila, cochilona e desacostumada a novidades, viu, com pasmo, Dona Janoca e as irmãs, de broxa e pincel nas mãos, caiando e pintando paredes.

        E a velha casa, de mais de meio século, ressuscitou maravilhosamente, como os palácios surgem nos contos de fada.

        Os salões, amplos e claros, abriam-se de um lado e de outro do vasto corredor, com filas de carteiras escolares, vasos de plantas, aqui e ali, e jarras de flores sobre as mesas.

        As paredes, por si sós, faziam as delícias da pequenada. De alto a baixo uma infinidade de quadros, bandeiras, mapas, fotografias, figuras recortadas de revistas, retratos de grandes homens, coleções de insetos, vistas de cidades, cantos e cantinhos do Brasil e do mundo.

        E tudo aquilo me encantava de tal maneira que eu, às vezes, deixava de brincar todo o tempo do recreio, para ficar revendo paisagem por paisagem, mapa por mapa, figurinha por figurinha.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – O que encantou o narrador ao chegar à vila de Coroatá?

      A escola da vila foi o que mais encantou o narrador.

02 – Como o narrador descreve a escola da vila em comparação com a escola do povoado de onde ele veio?

      O narrador descreve a escola da vila como muito diferente da escola do povoado, destacando a diferença entre a alegria e suavidade da escola da vila em comparação com o rigor e tristeza da escola do povoado.

03 – Quem era Dona Janoca e qual era a sua importância na escola?

      Dona Janoca era a diretora da escola da vila, uma senhora simpática de trinta e cinco anos, cheia de entusiasmo pela profissão de educadora. Ela desempenhava um papel fundamental na transformação da escola.

04 – Quais eram as características marcantes de Dona Janoca que conquistaram o narrador e os alunos?

      Dona Janoca era descrita como uma mulher simpática, cheia de ternura, com uma voz doce que nunca se alterava, e demonstrava grande entusiasmo pela profissão de educadora. Sua preocupação com os alunos ia além da sala de aula, incluindo gestos como levar frutas, biscoitos e remédios para alunos doentes.

05 – Como Dona Janoca e suas irmãs conseguiram melhorar as condições da escola, mesmo com recursos limitados?

      Dona Janoca e suas irmãs conseguiram melhorar as condições da escola através de atividades como rifas, festas, leilões, bazares de sorte, entre outras, para arrecadar dinheiro. Elas também realizaram obras físicas, caiando e pintando as paredes da escola.

06 – Como a velha casa da escola foi transformada pela iniciativa de Dona Janoca e suas irmãs?

      A velha casa da escola, que estava em ruínas, foi transformada através do esforço de Dona Janoca e suas irmãs. Elas realizaram trabalhos de caiar e pintar as paredes, organizaram eventos para arrecadar fundos e conseguiram revitalizar o prédio, tornando-o mais apropriado para o ambiente educacional.

07 – Quais elementos decoravam as salas da escola e como esses elementos afetavam o narrador?

      As salas da escola eram decoradas com uma variedade de elementos, como quadros, bandeiras, mapas, fotografias, figuras recortadas de revistas, retratos de grandes homens, coleções de insetos, vistas de cidades, cantos e cantinhos do Brasil e do mundo. Esses elementos encantavam o narrador, a ponto de ele deixar de brincar durante o recreio para apreciá-los.

 

CRÔNICA: TIA MARIQUINHAS - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Tia Mariquinhas

               Viriato Corrêa

        Criatura que vive bem clara na minha lembrança é a tia Mariquinhas, viúva de um parente afastado de minha mãe.

        Morava a um quarto de légua do povoado, na Pedra Branca, o mais lindo sítio que por ali havia.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgRSN4xUKdzA0lM15S57fiyTN441E0Gnomi22tC7oiHTdq9fJy8dC5CxL3T4weMAXWAuA2YAufCNPZ6KrS_AnbTr92n-rZWsQEaP03fmQoZYFwNAvb2ODlg2-pqm-0fdr27IkJVXl6EL79-3BtECiFV0ivplMDasOkhrReU60ZA_Y23Dt2cj66LkBMYkRk/s320/TIA.jpg


        A Pedra Branca tinha o condão de atrair as crianças.

        Era uma casa pequenina, caiadinha, muito limpa, num terreiro alvo, bem varrido, com laranjeiras plantadas em derredor.

        Em certas épocas, duzentos metros antes de avistar-se a casa, sentia-se no ar o cheiro finíssimo do laranjal em flor. No quintal — mangueiras imensas com sombras frescas e balanços tentadores amarrados nos galhos.

        Mas, a doidice da meninada era o riacho que ficava atrás da casa. Não vi, no mundo, cantinho mais suave e mais doce e que tanto bem me fizesse à alma. Eu ali ficava horas inteiras, saboreando, sem saber, a poesia simples daquele pedaço amável da natureza.

        Gravou-se-me na vista, para toda a vida, o quadro maravilhoso. O riacho, que vinha de longe, torcendo-se pelas profundezas da mata, ali se alargava preguiçosamente, como que para repousar as águas cansadas de rolar entre as pedras.

        As árvores — velhos ingazeiros e paineiras que deviam ter séculos de existência — estendiam sobre o leito a empanada dos galhos floridos. Aqui, acolá — toiças de açaizeiros. Quase que não se sentia o deslizar da corrente e as águas eram tão claras que se viam a areia alvíssima e os peixinhos nadando no fundo.

        No meio, como ilha surpreendente, surgia uma laje muito grande e muito branca. Era a pedra que dava nome ao sítio.

        À flor da correnteza, boiavam patos e marrecos mansos. Pássaros enchiam de música a ramada das árvores.

        Tia Mariquinhas era uma senhora de cabeça branca, magrinha, risonha, que ficava com ares de moça quando sorria, porque o riso lhe cavava duas covinhas no rosto.

        Nunca vi criatura mais alegre e que mais gostasse de presentear.

        Havia de tudo no sítio: araçás, goiabas, sapotis, jacas, tangerinas, jenipapos, atas, abius, umbus, cambucás, todo um mundo de gulodices que endoidecem as crianças.

        Quando eu lhe entrava em casa ela me enchia de frutas e não sabia em quantas se virasse para me ser agradável. Pegava-me pela mão, ia comigo pelos cantos e cantinhos do terreiro e do quintal, deixava-me subir às mangueiras e laçar periquitos.

        Mas, o que mais me tentava era o riacho. Além dos patos, dos marrecos, dos peixinhos, havia lá uma jangadinha como que feita de propósito para criaturas do meu tamanho. Tia Mariquinhas punha-me na jangada e ela própria a remava para a outra margem.

        Eu ficava horas esquecidas atirando pedacinhos de carne e migalhas de angu aos peixes que se agitavam no fundo das águas.

        O sítio de tia Mariquinhas foi o maior encanto da meninice das minhas calcinhas curtas. Sempre que eu apanhava a minha gente distraída, escapava correndo para aquele recanto de sombra e frutos, em que a vida parecia ser mais bela do que em outra parte qualquer.

        O que acontecia comigo, acontecia com os outros meninos. Quando numa casa se notava a ausência de um garotinho, podia-se imediatamente correr à Pedra Branca, que o garotinho lá estava esquecido de tudo, preso à tentação dos balanços, das frutas, dos periquitos e da jangadinha.

        Dava-se todos os dias, entre aquelas laranjeiras floridas, um espetáculo que conservo na cabeça como uma das lembranças mais gratas de minha infância.

        Tia Mariquinhas tinha paixão pelas galinhas, pelos patos, pelos pombos. E, logo que amanhecia, vinha ela própria para o terreiro distribuir às aves a ração de milho e farelo.

        Era uma cena impressionante.

        Primeiro havia um bater de sineta lá dentro, na casa. Ouvia-se imediatamente aqui fora um rumor de asas no chão, um rumor de asas nas árvores e nos ares.

        E quando a velha aparecia à porta, sobraçando um samburá de milho quebrado, de toda a parte surgiam multidões de galinhas, frangos, gaios, pintos, pombos, marrecos e paturis.

        — Pi-pi-pi-pi punha-se ela a gritar no meio do terreiro, atirando punhados de grãos à direita e à esquerda.

        O pedaço de céu que ficava por cima do terreiro cobria-se de asas agitadas. Centenas, milhares de aves desciam para disputar na areia os grãos de farelo e de milho. Agora, não eram só as aves domésticas; eram as do mato: toda uma onda incrível de rolas, juritis, perdizes, jaçanãs, saracuras, graúnas, periquitos, patativas, maracanãs e corrupiões.

        — Pi-pi-pi-pi...

        Atirando punhados à direita, punhados à esquerda, tia Mariquinhas desaparecia no meio daquela nuvem tremulante de asas. Tico-ticos e pipiras vinham-lhe roubar migalhas das mãos; cambaxirras, xexéus e pecoapas, sem a menor cerimônia, lhe pousavam nos ombros.

        Como se dava aquilo? Tia Mariquinhas explicava, sorrindo:

        — Um dia desceu uma pomba do mato. Atirei-lhe um punhado de milho. Ela comeu e foi dizer às companheiras. No outro dia veio outra. Deixei. Mais outra, mais outra, outras mais. Fui deixando. E, agora, tudo quanto é passarinho destas redondezas vem comer aqui em casa.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Como é descrito o cenário da casa de Tia Mariquinhas na crônica?

      A casa é descrita como pequena, caiadinha, muito limpa, com laranjeiras ao redor, em um terreiro alvo e bem varrido.

02 – O que tornava a Pedra Branca, onde Tia Mariquinhas morava, especial para as crianças?

      A Pedra Branca tinha o condão de atrair as crianças devido ao cheiro finíssimo do laranjal em flor, mangueiras com sombras frescas, balanços tentadores, e um riacho suave e doce.

03 – Quais frutas e gulodices eram encontradas no sítio de Tia Mariquinhas?

      Havia araçás, goiabas, sapotis, jacas, tangerinas, jenipapos, atas, abius, umbus, entre outras gulodices.

04 – O que mais atraía o narrador na casa de Tia Mariquinhas, além das frutas e dos balanços?

      O riacho era o que mais atraía o narrador, especialmente a jangadinha na qual Tia Mariquinhas o colocava para remar.

05 – Como Tia Mariquinhas se relacionava com as aves em seu terreiro?

      Tia Mariquinhas tinha paixão pelas galinhas, patos, pombos, e distribuía ração de milho e farelo todas as manhãs, atraindo uma grande quantidade de aves domésticas e do mato.

06 – Descreva a cena impressionante que ocorria no terreiro quando Tia Mariquinhas alimentava as aves.

      Ao soar uma sineta, todas as aves, incluindo as do mato, se aglomeravam no terreiro para receber os grãos de milho e farelo que Tia Mariquinhas distribuía, cobrindo o céu de asas agitadas.

07 – Qual é a explicação dada por Tia Mariquinhas sobre a presença de tantas aves em seu terreiro?

      Tia Mariquinhas explica que um dia desceu uma pomba do mato, ela atirou um punhado de milho, a pomba comeu e foi contar às companheiras. Gradualmente, mais pássaros começaram a visitar e agora todos os passarinhos das redondezas vêm comer em sua casa.

 

CRÔNICA: PASSEM TODOS PARA O "BOLO"! VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Passem todos para o “bolo”!

              Viriato Corrêa            

        Em meados de fevereiro a frequência à escola começou a diminuir. E quando março entrou, com as suas imensas cargas d’água, não passavam de doze ou quinze os meninos que compareciam às aulas.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjMH_s8RwVQLYQ8tZkZOIOCgECQLcJ-WSZlpNEP2Isc5Kn9OQnMcHU7yr1CqLeg_A_M3eDQX4vng2OLyh0u_TPZc726KhAxC7xnMD6ua05uJkplwQbB-21Xk508Aaw_wW0UElFO8avdOg4zoURYqu2K37eb6-dPiOGM-LQZdtKfZsFGOpPfxvqaGVWvD0Q/s320/CHUVA.jpg


        O velho João Ricardo cada vez ficava mais mal-humorado. E, ao lançar os olhos para os bancos vazios, resmungava ameaçadoramente:

        — Que luxo é esse? Porque chove mais um pouquinho ninguém sai de casa! Eu acabo tomando medidas rigorosas.

        Depois, com dois ou três pigarros de asmático, se sentava, repetindo:

        — Escola é escola! Não é pilhéria, não é brincadeira!

        Não era por brincadeira que os alunos não iam às aulas, mas pelos obstáculos das enchentes naquela aguda quadra das chuvas.

        No Norte, a estação das águas, que o povo chama de inverno, apresenta aspectos que vão da alegria ao desespero.

        É em dezembro que começa a chover.

        Antes disso o que existe é o inferno do calor que arruína os homens e as coisas.

        Os campos estão secos; os morros, tristes; não há viço no arvoredo e as fontes têm um ar de pobreza e de velhice.

        Parece que a natureza está cansada de viver. A alegria desaparece de toda a parte. Há lugares em que não se encontra, sequer, uma folha verde.

        As primeiras chuvas caem quando novembro vai terminando. E imediatamente se produz o milagre da ressurreição. Em três semanas tudo fica verde e fica novo.

        É a primavera matuta.

        A terra, como que atingida pela varinha de condão de alguma fada, floresce maravilhosamente. Ê flor em tapete nos campos; flor em ramalhete nas árvores; flor em grinaldas nos cipós. Tem-se a impressão surpreendente de que as plantas que vão nascendo já nascem floridas.

        Mas as chuvas continuam a desabar.

        Em janeiro, não se vê a cara do sol. Em meados de fevereiro, os riachos e os rios começam a transbordar arruinadoramente.

        Todo aquele esplendor de natureza, que dava a ideia de milagre, desaparece em poucos dias.

        Em março os campos estão alagados. Basta que chova três dias seguidos para que ninguém possa atravessar os caminhos. É a inundação inquietadora que vem ameaçando com o seu cortejo de desgraças.

        Naquele ano, março entrou mais rigoroso que nos anteriores. Chovia semanas inteiras, de manhã à noite.

        Os caminhos estavam debaixo d’água.

        A escola, dia a dia, tornava-se deserta.

        A maioria dos alunos era dos arredores, alguns de dois, três, até quatro quilômetros distantes. Se saíssem de casa, com os caminhos inundados, corriam até perigo de vida.

        Só nós, ali da povoação, podíamos comparecer às aulas e, assim mesmo, molhadinhos e com as chinelas ou os sapatos encharcados.

        O professor tornava-se cada vez mais áspero, mais azedo, mais ameaçador. E dizia repentinamente, no meio da sala quase deserta:

        — Eu não me canso de prevenir. Escola é coisa séria. Eu acabo tomando medidas rigorosas.

        Um dia, a chuva começou a cair de madrugada. Chuva brutal, dessas que paralisam o trabalho e impedem a gente de sair de casa.

        Quase ninguém pôde ir à escola. Éramos seis meninos apenas.

        O Adão, que chegou por último, entrou assustado, descalço, as chinelas metidas nos dedos. O Doca troçou:

        — Xi! O Adão está com uma cara! O outro sentou-se.

        — A minha cara, a minha cara! Cara traz o professor, que não tarda aí. Passei por ele.

        Minutos depois, o velho João Ricardo entrava debaixo de um grande guarda-chuva. Não se sentou como de costume. Em pé, junto à grande mesa, lançou os olhos pela sala, contando:

        — Um, dois, três, quatro, cinco, seis. Só seis? Então porque chove, ninguém vem à escola?

        E empunhando a palmatória:

        — Passem todos para o "bolo"!

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Por que a frequência à escola começou a diminuir em meados de fevereiro?

      A frequência à escola diminuiu devido aos obstáculos das enchentes durante a quadra das chuvas.

02 – Como o velho João Ricardo reagia diante da baixa presença dos alunos?

      O velho João Ricardo ficava mal-humorado e resmungava ameaçadoramente. Ele ameaçava tomar medidas rigorosas e enfatizava a seriedade da escola.

03 – O que caracteriza a estação das águas, também conhecida como inverno, no Norte?

      A estação das águas, que o povo chama de inverno, no Norte apresenta aspectos que vão da alegria ao desespero, começando em dezembro com chuvas intensas.

04 – Como a natureza reage ao início das chuvas em novembro na região descrita na crônica?

      A natureza reage com um milagre da ressurreição, transformando-se em poucas semanas, com campos verdes, árvores florescendo e um novo vigor.

05 – Como é descrito o período de janeiro na região afetada pelas chuvas?

      Em janeiro, não se vê a cara do sol, indicando um período chuvoso persistente.

06 – Quais eram os desafios enfrentados pelos alunos que moravam nos arredores durante as chuvas em março?

      Os caminhos estavam alagados, tornando perigoso para os alunos que moravam a alguns quilômetros de distância comparecerem às aulas.

07 – O que aconteceu quando a chuva foi particularmente intensa, deixando apenas seis alunos na escola?

      Diante da baixa presença, o velho João Ricardo, empunhando a palmatória, ordenou: "Passem todos para o 'bolo'!", indicando uma ação disciplinar a ser tomada.

 

CRÔNICA: NA ROÇA DO LOURENÇO - (FRAGMENTO)- VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Na roça do Lourenço – Fragmento

              Viriato Corrêa

        De quando em quando, inventávamos uns brinquedos e, como das nossas cabeças não saíam as histórias contadas por Vovó Candinha, nos brinquedos que inventávamos quase sempre figuravam reis, príncipes, princesas e pajens.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiA6ctM4vVmKmlfIWEUS2ysxDW38rkj_Tzm0rZ713XGWy1zNmvyNSYh8Fk3qvapx0hrubZTGnH5oVeKjiGZmcLyDm4zFxZBk6uz93yl7ND-vb5oIXdNWSTfEfunN8r1q2k50j06uAGIEcNqKG1HFD0IiHDnRBtHESPMx9I2TYzUysWGBfJ3gWBwMkpO41k/s320/REI.jpg


        Naquela noite, ao luar, eu fazia de rei. O Mundico batia à porta do meu palácio:

        — Ó de casa!

        — Ó de fora! respondia eu. Quem está aí?

        — Um príncipe.

        — Entre.

        Depois batia o Quincas. Eu perguntava.

        — Quem é?

        — Um lavrador que pede licença para falar a Vossa Majestade.

        — Espere aí embaixo.

        — Majestade, eu tenho pressa, insistia ele.

        — Espere, se quiser. Não vou deixar de atender a um príncipe para atender a um trabalhador de enxada.

        No momento em que eu pronunciava estas palavras, meu pai passava perto. Vi-o parar. Senti que me queria dizer alguma coisa, mas imediatamente se arrependeu, seguindo o seu caminho.

        No dia seguinte, às duas da tarde, papai me convidou.

        — Vamos à roça do Lourenço?

        Pulei de contente. Passeios daqueles enchiam-me sempre de alegria.

        Papai montou a cavalo, sentou-me na lua da sela e partimos.

        Era no tempo da colheita.

        No tempo da colheita, as roças dão à gente uma deliciosa impressão de fartura e de esplendor. A terra como que se transforma toda em frutos, frutos aos pares, às dezenas, aos milheiros, nos caules, nos galhos e nas ramas.

        A roça do Lourenço era imensa.

        No milharal cerrado tremulava ao vento a cabeleira loura das espigas. Abóboras e melancias fechavam os caminhos com as longas ramagens e os grandes frutos. O mandiocal agitava ao sopro da brisa as folhas espalmadas. O feijão subia enrascado nas hastes do milho. [...].

        Havia de tudo: aipim, algodão, cana, fumo, maxixeiros, gergelim, quiabeiros, batata-doce, cará. E tudo abundantemente, excessivamente, como se a terra estivesse mostrando que tinha muito e muito queria dar.

        Logo que transpusemos a roça, o Lourenço correu ao nosso encontro, levando-nos para a sombra de um cajazeiro.

        [...].

        Apoiado à enxada com que limpava o mato, o lavrador pôs-se a contar a meu pai as suas esperanças de boa colheita.

        Estava nu da cintura para cima e, com o busto todo molhado pelo suor, dava a impressão de que se derretia ao fogo daquele sol.

        Mosquitos zumbiam em nuvens. Eu me senti atordoado.

        Ele percebeu a minha inquietação e disse prestimosamente:

        — Isso é calor. Para refrescar não há como melancia. Vou abrir-lhe uma.

        Gritou pelo nome dos dois filhos para que trouxessem a fruta e, como ninguém respondesse, sumiu-se por entre a folhagem do milharal.

        — Não sei como esse homem trabalha com tanto sol, tanto calor e tanto mosquito! exclamei.

        Meu pai cravou-me os olhos amigos.

        — No entanto tu não prezas o trabalho desse homem.

        — Eu? bradei surpreendido.

        — Sim. Ontem à noite, quando brincavas de rei, disseste que não ias deixar de atender a um príncipe para atender a um trabalhador de enxada. Um trabalhador de enxada, meu filho, é maior do que um príncipe, quando o príncipe vive na ociosidade. O homem só vale quando trabalha e o trabalho, seja ele qual for — o de enxada ou qualquer outro — é digno e nobre desde que seja honesto.

        E depois de uma ligeira pausa:

        — Os lavradores como o Lourenço são humildes, mas nem por isso deixam de ser úteis. Não há nada mais insignificante do que um pingo d’água. Mas, um pingo d’água, mais outro pingo, mais outro, milhões, milhões e bilhões de pingos formam a chuva que molha a terra, que enche os rios, que rebenta as sementes e que produz as colheitas. Cada trabalhador de enxada que vês nas roças, cavando a terra, ao sol, ao calor, entre nuvens de mosquitos, é o pingo d’água da grandeza do nosso país. O bocadinho que um colhe aqui, o bocadinho que outro colhe acolá, outro bocadinho além e muitos e muitos bocadinhos formam a vida do Brasil, a abundância do Brasil, a riqueza do Brasil.

        O Lourenço chegava.

        Foi com um sorriso de agradecimento respeitoso que eu lhe recebi as talhadas frescas de melancia.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Quem são os personagens principais na brincadeira de faz de conta descrita no início da crônica?

      Os personagens principais são o narrador (quem conta a história) e seus amigos Mundico e Quincas.

02 – Qual é o motivo do passeio à roça do Lourenço no dia seguinte?

      O passeio à roça do Lourenço acontece no dia seguinte porque o pai do narrador o convida para visitar a plantação durante a colheita.

03 – Descreva a cena da roça do Lourenço durante a colheita.

      Durante a colheita, a roça do Lourenço se transforma em um cenário exuberante, com milharais, abóboras, melancias, mandiocal, feijão e uma variedade de cultivos dando a sensação de fartura e esplendor.

04 – Como o lavrador Lourenço recebe o pai e o narrador na roça?

      Lourenço corre ao encontro deles e os leva para a sombra de um cajazeiro, mostrando-se amigável e hospitaleiro.

05 – Como o narrador reage ao calor e aos mosquitos na roça do Lourenço?

      O narrador se sente atordoado devido ao calor e aos mosquitos, expressando seu desconforto. No entanto, Lourenço oferece uma solução ao sugerir melancia para refrescar.

06 – O que o pai do narrador ensina a ele durante o passeio na roça?

      O pai do narrador ensina a importância do trabalho, destacando que o trabalho honesto, seja ele de enxada ou qualquer outro, é digno e nobre. Ele compara os trabalhadores de enxada a pequenos pingos d'água que, juntos, contribuem para a grandeza e riqueza do país.

07 – Como termina a interação entre o narrador e Lourenço na roça?

      A interação termina com o narrador recebendo as talhadas frescas de melancia de Lourenço com um sorriso de agradecimento respeitoso, indicando uma mudança em sua percepção sobre o valor do trabalho do lavrador.

 

CRÔNICA: APRISIONANDO PASSARINHOS - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Aprisionando passarinhos

              Viriato Corrêa

        Foi Ninico da Totonha quem me ensinou a armar as primeiras arapucas.

        Não havia menino mais hábil para apanhar passarinhos. Vivia armando laços e alçapões por todas as árvores e por todas as moitas. Raro o dia em que não nos maravilhava com uma rola, um corrupião, uma graúna ou um xexéu, apanhados vivos nas armadilhas.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgMjLBBnvq9SSxolNdfL-WegoFFWLqtSSiuW8VllZca1JDKaqp0Wh-03aeO2tLLV94mIPMAjWaUlSRiO-gi9_y8UXNTbLnxfoHZ4xmcfmQxDQP-IxuIpoVucZlvuPX-M9NcGjFrcIlq18_K2tpXN3FpEWBxQsXgToFwatBbZ9N6mjbgaTfjj9JowqpQfzU/s1600/ARAPUCA.jpg


        A primeira vez que apareci em casa com uma pombinha implume, tirada do ninho, minha mãe me ralhou:

        — Isso não se faz, meu filho, disse-me com a sua voz de veludo. Essa pombinha tem mãe, e a esta hora a pobre mãe está inquieta, à procura dela. Tu gostarias de me ver sofrer?

        — Não, não mamãe, respondi prontamente.

        — Pois a dor que eu sentiria se alguém te levasse para sempre de perto de mim, está sentindo a mãe desta pombinha. Os bichos também têm coração. Amam-se, querem-se bem como nós.

        Passaram-se os dias e eu me esqueci das palavras de mamãe. Um corrupião andava a cantar, todas as manhãs, na cerca da casa de moer cana. Armei o alçapão e apanhei-o. Minha mãe contrariou-se.

        — Cazuza, eu já te disse que isso não se faz! falou-me severamente.

        — Mas este não foi tirado do ninho, expliquei-lhe. Já é grande, não tem mãe.

        — Mas tinha liberdade e tu lhe roubaste a liberdade. Deus fez as aves para viverem livremente no espaço e tu queres encerrá-las nas grades de uma gaiola.

        — Mas eu lhe dou comida, água, tudo, acrescentei. Ela me pegou pelo braço.

        — Onde mamãe me vai levar? indaguei assustado.

        — Vou prender-te no quarto, uma semana, duas semanas, um mês.

        — Não, não! bradei.

        — Mas eu te dou água, comida, tudo. Por que não queres?

        — Porque é ruim, respondi. Assim não brinco, não corro, não vejo nada.

        — Ah! exclamou mamãe. Então a comida, a água, não bastam. É preciso a liberdade. Pois essa liberdade que tu não podes dispensar, é a liberdade que queres tirar ao corrupião. A prisão que te assusta é a prisão que queres dar ao pássaro.

        Fiquei silencioso. Eu não tinha mesmo nada para responder. Mamãe aproveitou o meu silêncio.

        — Solta o bichinho, ordenou-me com a voz macia. Soltei-o.

        O pássaro, que estava medroso e trêmulo nas minhas mãos, saiu radiantemente, janela afora, batendo as asas pelo infinito azul, em largos voos de alegria.

        Mas, dias depois, de novo me esqueci dos conselhos de minha mãe.

        O Ninico da Totonha era, na verdade, uma tentação. Contou-me, uma tarde, das arapucas que estava armando para os lados do igarapé. Em breve teria gaiolas cheias de juritis, sururinas, pecoapás e jaçanãs. Deu-me vontade de também armar arapucas.

        O Ninico foi comigo, no mato, escolher o lugar em que eu deveria armá-las.

        Era um cantinho quieto, ao fundo de um cerrado de cipós, debaixo do toldo de um grande pé de maracujá.

        Durante uma semana nada me caiu nas armadilhas.

        Mas, uma tarde, ao aproximar-me do toldo de maracujá, ouvi de longe um pio angustiado. E, ao entrar debaixo da coberta de folhas, senti um áspero rumor de asas por entre os cipós e distingui o vulto negro de uma ave fugindo.

        O coração bateu-me fortemente. Na maior das arapucas estava um filho de jacamim.

        Tive pressa em tirá-lo lá de dentro.

        Acocorei-me, suspendi levemente a arapuca e segurei a avezinha pelas pernas.

        Mas, nesse momento, senti inesperadamente, nas costas, uma verdadeira descarga de bicadas.

        Voltei-me espantado. Era um jacamim, maior que uma galinha, com certeza a ave que fugira quando cheguei.

        Deveria ser a mãe do jacaminzinho.

        Ao ver-me com o filho na mão, investiu contra mim, às bicadas, numa fúria que me desarmou.

        Percebi que me visava os olhos: um golpe alcançou-me em cheio o nariz.

        De cócoras, não me era possível lutar com a ave. Eu conhecia a coragem e a bravura dos jacamins. Tinha-os visto brigar com perus, gaios e até mesmo cães.

        Ergui-me. A ave não se intimidou. Arremessou-se contra mim mais violentamente, bicando-me os pés e as pernas.

        Só com a mão esquerda eu não me podia defender. Com a direita segurava o jacaminzinho pelas canelas.

        Fui recuando, recuando, a ver se conseguia encontrar a saída.

        Mas os meus pés embaraçaram-me num cipó. Caí.

        A ave atirou-se loucamente em cima de mim. Um berro horrível saiu-me da boca. Uma bicada me havia alcançado o olho esquerdo. O jacaminzinho escapou-me da mão.

        Cego, gritando de dor, o rosto molhado de sangue, pus-me a tatear por entre a folhagem sem encontrar o caminho para sair.

        De novo, tropecei num cipó. De novo, rolei no chão.

        E foi numa casa de maribondos que eu tive a desgraça de cair. Na cabeça, no rosto, em todo o corpo senti uma verdadeira chuva de ferroadas.

        Botei a boca no mundo, a berrar desesperadamente.

        O Lourenço Sapateiro, que na ocasião passava na estrada, foi quem me levou para casa.

        O meu estado era miserável. A bicada do jacamim ferira-me o canto do olho esquerdo. Faltou um nada para me furar o globo ocular.

        Os maribondos transformaram-me numa cadeia de montanhas — calombos de alto a baixo do corpo. Os lábios, ferroados, cresceram, incharam, dando-me ao rosto o aspecto estranho de um bicho.

        Durante duas semanas fiquei no quarto gemendo.

        — Foste castigado, disse minha mãe, ao ver-me entrar gritando de dor. Foste castigado por duas faltas. Uma, a maldade de querer tolher a liberdade alheia; outra, a desobediência aos meus conselhos. Deus não gosta dos meninos maus e desobedientes.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual foi a primeira lição sobre armar armadilhas que o narrador recebeu?

      Foi Ninico da Totonha quem ensinou o narrador a armar as primeiras arapucas.

02 – Por que a mãe do narrador repreendeu-o quando ele trouxe uma pombinha implume pela primeira vez?

      Porque a mãe explicou que os animais também têm sentimentos, amor e que roubar a liberdade deles não é correto.

03 – Qual foi a reação da mãe do narrador quando ele capturou um corrupião, alegando que não foi tirado do ninho?

      A mãe contrariou-se e explicou que mesmo que não tenha sido tirado do ninho, o pássaro tinha liberdade, e prendê-lo era errado.

04 – Como o narrador reagiu ao ser ameaçado de ser preso no quarto pela mãe?

      O narrador bradou e protestou, mas acabou soltando o pássaro ao comando da mãe.

05 – O que aconteceu quando o narrador decidiu armar arapucas após ser influenciado por Ninico da Totonha?

      O narrador acabou capturando um filhote de jacamim, e a mãe da ave o atacou furiosamente, causando-lhe sérios ferimentos.

06 – Como a mãe do narrador interpretou o acontecido com o jacamim e o ferimento do narrador?

      A mãe interpretou como um castigo divino, relacionando os ferimentos do narrador à maldade de querer tolher a liberdade alheia e à desobediência aos seus conselhos.

07 – Por que a mãe do narrador afirmou que ele foi castigado por duas faltas?

      A mãe disse que o narrador foi castigado por querer tolher a liberdade dos passarinhos e por desobedecer aos conselhos maternos.