quarta-feira, 4 de junho de 2025

MÚSICA(ATIVIDADES): PALAVRA DE HONRA - TIÃO CARREIRO E PARDINHO - COM GABARITO

 Música (Atividades): Palavra de Honra

            Tião Carreiro e Pardinho

Todo homem tem seu preço
Todo santo tem seu dia
Mundo velho está mudado
De quando os avós vivia
Quando a palavra de um homem
Mais que dinheiro valia
Pra se firmar um negócio
Documentos não havia
Arrancava um fio da barba
E dava, por garantia

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzZ6DXuokyRYkzrhDntpK7i8wMib-CRc_IfZTxXa8OxR_d174x4lvhaHFuCdXgdznAKMm-UzsAbv6RYRXqDzdG6iqAc05dNrJQGn-F6jUTZ_2rRK-ilgniVuQVXqCX5Mn8V8ZGwzRXtqS6wuGDsy8oH4WOwAplWcu4YcFSyqelOs3Yc7QM-FWZpNMFHd0/s320/maxresdefault.jpg

Não usava documentos
Como nos tempos atuais
Para tratar com um homem
Costumava pensar mais
Porém se desse a palavra
Por nada voltava atrás
Honrava o que dizia
Mesmo com riscos fatais
Hoje a palavra de honra
Manter ou não, tanto faz

Hoje tudo tá mudado
Pra ninguém isto é segredo
A moral de certos homens
Está servindo de brinquedo
Quando fala volta atrás
Muda a verdade por medo
São simples montes de gelo
Que se passa por rochedo
Pra encontrar muitos deles
Não precisa, sair cedo

Quanto mais o tempo passa
Mais se perde a tradição
Filhos de homem direito
Perde o nome em tabelião
O bom conceito que herdaram
Se vai nos golpes que dão
Não importa a honra da casa
Querem ser mais do que são
Pra se andar nas alturas
Deixa a moral, lá no chão.

Composição: Pedro Tomaz D'Aquino / Tião Carreiro. 

Entendendo a música:

01 – Qual é a principal comparação que a música faz entre o passado e o presente?

      A música contrasta a valorização da palavra no passado com sua desvalorização no presente. Antigamente, a palavra de um homem era mais valiosa que dinheiro e garantia negócios, enquanto hoje, documentos são necessários e a palavra de honra é facilmente quebrada.

02 – Que gesto simbólico era usado antigamente para selar um acordo ou promessa?

      Para selar um acordo ou promessa, um homem arrancava um fio da barba e o dava como garantia.

03 – Segundo a letra, quais são as consequências da perda da "palavra de honra" na sociedade atual?

      A perda da "palavra de honra" leva à falta de moralidade em certos homens, que mudam a verdade por medo e agem de forma superficial. Além disso, filhos de "homens direitos" perdem o bom conceito e a honra que herdaram, buscando ascensão social sem se importar com a moral.

04 – A música sugere que a evolução do tempo trouxe mudanças positivas ou negativas em relação à moralidade? Justifique.

      A música sugere que a evolução do tempo trouxe mudanças negativas em relação à moralidade. Ela lamenta a perda da tradição e do valor da palavra, descrevendo a moral de certos homens como um "brinquedo" e criticando a busca por "andar nas alturas" deixando a moral "no chão".

05 – Quando a música diz "São simples montes de gelo / Que se passa por rochedo", o que ela quer transmitir sobre as pessoas?

      Essa metáfora quer transmitir que muitas pessoas atualmente são falsas e frágeis, parecendo fortes e confiáveis por fora ("rochedo"), mas por dentro são inconstantes e sem substância ("montes de gelo").

06 – Qual o significado da frase "Filhos de homem direito / Perde o nome em tabelião" dentro do contexto da música?

      Essa frase significa que, mesmo aqueles que vêm de famílias com boa reputação ("homem direito"), acabam por desonrar o nome da família ao se envolverem em golpes e atitudes desonestas, que podem resultar em registros negativos ou ações legais em tabelionatos.

07 – De que forma a música "Palavra de Honra" se relaciona com o conto "A palavra" de Santiago Villela Marques, apesar de serem de gêneros diferentes?

      Ambas as obras exploram o peso e a importância da "palavra", embora de maneiras distintas. Na música, a palavra é vista como algo que se perdeu em valor, lamentando a quebra de promessas. No conto, a "palavra" de Benito-Boa-Fé é inflexível e tem consequências definitivas, ressaltando como, em certos contextos, ela ainda pode ter um poder absoluto e irredutível, mesmo que suas interpretações sejam ambíguas ou cruéis. Ambos os textos, à sua maneira, mostram que a palavra, seja ela dada ou recebida, define destinos.

 

CONTO: A PAIXÃO SEGUNDO G.H. - FRAGMENTO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: A PAIXÃO SEGUNDO G. H. – Fragmento

            Clarice Lispector

        [...]

        Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo, então? Mas se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFyH4mvUwYH6lkbJX1_5BGFdI1zaV_VQ6Um2TIGwpVDPnwTiO-4Glq88J8oAr3cb05ZI-eI0KzzxRmIA1hTjHap2IVvx1js0C9i97Vr6E11oxZj1wy_gdslTNP5OQmjfH99zlESbyaAcxJMRN-bAB5vjrg3eaLPPA2o9sO2D5euorQtUp0Sar5dWYODbU/s320/91uh24xeIKL._UF894,1000_QL80_.jpg


        [...]

        Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade. Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo – traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem.

        [...].

São Paulo: ALLCA XX/Scipione Cultural, 199. p. 14-15.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p. 299.

Entendendo o conto:

01 – Qual o dilema inicial que a narradora expressa em relação à sua capacidade de se comunicar?

      O dilema inicial da narradora é a tensão entre o desejo de falar e a iminência do silêncio total. Ela sente que se não "forçar a palavra", a mudez a "engolfará para sempre em ondas", indicando que a linguagem é sua única tábua de salvação contra o vazio.

02 – Por que a narradora afirma que "viver não é relatável" e "viver não é vivível"?

      A narradora afirma isso porque entende que a experiência pura da vida transcende a capacidade da linguagem de capturá-la integralmente. Ela percebe que a vivência em si é tão profunda e multifacetada que não pode ser contida ou expressa de forma direta e completa pelas palavras.

03 – Qual a diferença que a narradora estabelece entre "criar" e "imaginar", e qual a importância de "criar" para ela?

      Para a narradora, "criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade". Isso significa que "criar" não é inventar algo que não existe, mas sim um processo de apreensão e compreensão da realidade em sua essência mais profunda, um modo de "traduzir o desconhecido" para que a experiência vivida possa ser de alguma forma acessada e comunicada.

04 – Que analogia a narradora usa para descrever o processo de tentar traduzir o indizível?

      A narradora usa a analogia de "traduzir sinais de telégrafo", mais especificamente, "traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais". Essa analogia ilustra a dificuldade extrema e a natureza quase impossível de sua tarefa de expressar o que vivenciou.

05 – Que tipo de linguagem a narradora prevê que usará para expressar o que lhe aconteceu e qual a característica peculiar dessa linguagem?

      A narradora prevê que usará uma "linguagem sonâmbula". A característica peculiar dessa linguagem é que, se ela estivesse "acordada", essa forma de expressão não seria considerada linguagem. Isso sugere uma comunicação que transcende a lógica e a racionalidade convencionais, emergindo de um estado de consciência alterado, necessário para alcançar a verdade de sua experiência.

 

ARTIGO DE OPINIÃO: O MENINO ESTÁ FORA DA PAISAGEM - FRAGMENTO - JABOR A. - COM GABARITO

 Artigo de opinião: O menino está fora da paisagem – Fragmento

        Jabor A.

        O menino parado no sinal de trânsito vem em minha direção e pede esmola. Eu preferiria que ele não viesse. A miséria nos lembra de que a desgraça existe, e a morte também. Como quero esquecer a morte, prefiro não olhar o menino. Mas não me contenho e fico observando os movimentos do menino na rua. Sua paisagem é a mesma que a nossa: a esquina, os meios-fios, os postes. Mas ele se move em outro mapa, outro diagrama. Seus pontos de referência são outros. 

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiPzLxropUpUFYerqhF-n3QEhjGwqnsHItU7JY5iCxLYYg4Or0Xy1RFuG8s0VB6OQe42TED_hKGcojV6oLmLmmKUA54AukmlTKQ2noaMCOy_QXZMA80ab2U50YXW_57T1QNIu2AdipDwA4rnaWvRekLphubrmIEx8ryGS2RaMjY1jFHyvyFPgZ37kPMhbo/s320/muros_por_derrubar.jpg


        Como não tem nada, pode ver tudo. Vive num grande playground, onde pode brincar com tudo, desde que “de fora”. O menino de rua só pode brincar no espaço “entre” as coisas. Ele está fora do carro, fora da loja, fora do restaurante. A cidade é uma grande vitrine de impossibilidades. [...]. Seu ponto de vista é o contrário do intelectual: ele não vê o conjunto nem tira conclusões histéricas – só detalhes interessam. O conceito de tempo para ele é diferente do nosso. Não há segunda-feira, colégio, happy hour. Os momentos não se somam, não armazenam memórias. Só coisas “importantes”: "Está na hora de o português da lanchonete despejar o lixo...” ou "Estão dormindo no meu caixote...”

        [...]

        Se não sentir fome ou dor, ele curte. Acha natural sair do útero da mãe e logo estar junto aos canos de descarga pedindo dinheiro. Ele se acha normal; nós é que ficamos anormais com a sua presença.

        [...].

Jabor A. O menino está fora da paisagem. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 abr. 2009. Caderno 2, p. D 10.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p. 292.

Entendendo o artigo:

01 – Qual a primeira reação do narrador ao ver o menino no sinal de trânsito e o que essa reação revela sobre o observador?

      A primeira reação do narrador é de desconforto e aversão, preferindo que o menino não viesse em sua direção. Essa reação revela o desejo de ignorar a miséria e, por extensão, a própria mortalidade e o lado desagradável da existência, buscando manter uma ilusão de normalidade e esquecimento da dor alheia.

02 – Como o autor descreve a "paisagem" do menino de rua em contraste com a nossa, e qual a diferença fundamental entre seus "mapas"?

      O autor descreve a paisagem física do menino como a mesma nossa ("a esquina, os meios-fios, os postes"). No entanto, a diferença fundamental é que o menino se move em "outro mapa, outro diagrama", com "pontos de referência outros". Isso significa que, embora compartilhem o mesmo espaço físico, suas realidades, prioridades e formas de interação com esse ambiente são completamente distintas devido à sua condição de marginalidade e exclusão.

03 – De que forma o "ponto de vista" do menino de rua é caracterizado como o "contrário do intelectual"?

      O ponto de vista do menino de rua é caracterizado como o "contrário do intelectual" porque ele não vê o conjunto nem tira conclusões históricas, focando apenas em "detalhes" que lhe são importantes para a sobrevivência ("Está na hora de o português da lanchonete despejar o lixo..." ou "Estão dormindo no meu caixote..."). Isso contrasta com a visão abrangente e analítica típica do pensamento intelectual.

04 – Como o artigo descreve a percepção do tempo para o menino de rua?

      O artigo afirma que o conceito de tempo para o menino de rua é "diferente do nosso". Para ele, "Não há segunda-feira, colégio, happy hour. Os momentos não se somam, não armazenam memórias". Isso sugere que o tempo do menino é vivido em um presente contínuo e imediato, ditado pelas necessidades básicas e pelos eventos momentâneos de sua sobrevivência, sem a linearidade e o planejamento que caracterizam a vida organizada da sociedade.

05 – Qual a conclusão do autor sobre a percepção do menino de rua a respeito de sua própria condição?

      A conclusão do autor é que o menino de rua "se acha normal" em sua condição. Ele "acha natural sair do útero da mãe e logo estar junto aos canos de descarga pedindo dinheiro". A "anormalidade" e o desconforto, segundo Jabor, são sentidos por "nós" (a sociedade "normal") com a presença dele, e não o contrário.

 

ARTIGO DE OPINIÃO: MUROS INTERNALIZADOS - FRAGMENTO - SERPA, A. - COM GABARITO

 Artigo de opinião: Muros internalizados – Fragmento

           Serpa, A.

        Vinte anos se passaram desde a queda do Muro de Berlim. A cidade comemora com uma programação rica em atividades. Pode-se conferir, por exemplo, uma grande exposição de fotografias na Alexander Platz ou ver de perto a restauração da East Side Gallery, um pedaço de muro ainda existente que se transformou numa galeria de arte a céu aberto. [...] Em Berlim, [...] tenho ouvido a afirmação recorrente de que o muro persiste enquanto paisagem interiorizada pelos habitantes da cidade. [...] Onde buscar esse muro internalizado?

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgsTqsTfEsZhPJRn9dQOa3S-dcKwuH1PCYB9MoLbkkWIJNaDeA4PVzdfjIqLvOWl95YkUYayiqK7mGMZU8OZ3dprU3qfW3RAh2Xz2Aenq9p2_bwPtwbgurAfDScjOTn6ta98q856RthjFo4nenLqR7C2Y-X-5UbQOYXUlYZTh4ekQqYPUC_ju-xNQATdjI/s320/queda-muro-de-berlin1.jpg


        [...]

        Tudo isso faz pensar nas cidades brasileiras, onde os muros tomam conta da paisagem, seja segregando favelas e bairros populares, seja cercando os condomínios fechados dos bairros nobres. Berlim nos ensina que o muro é forma-conteúdo, é produto e também processo, reflete e condiciona o modo como uma sociedade lida com a diferença. O muro também produz a diferença e radicaliza a ocultação do “outro”, transforma diferença em segregação e desigualdade.

SERPA, A. Muros internalizados. A Tarde, Salvador, 1o ago. 2009. Caderno Opinião, p. A 3.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p. 292.

Entendendo o artigo:

01 – Qual o principal evento que o artigo menciona como ponto de partida para sua reflexão?

      O principal evento que o artigo menciona é a queda do Muro de Berlim, ocorrida vinte anos antes da escrita do texto. A cidade celebra essa data com diversas atividades.

02 – Mesmo após a queda física do Muro de Berlim, que tipo de "muro" a autora afirma que persiste na cidade?

      Mesmo após a queda física, a autora afirma que o muro persiste como uma "paisagem interiorizada pelos habitantes da cidade". Isso sugere que as divisões e mentalidades criadas pelo muro continuam existindo na psique e nas relações sociais das pessoas.

03 – Como a autora relaciona a situação de Berlim com a realidade das cidades brasileiras?

      A autora relaciona a situação de Berlim com as cidades brasileiras ao observar que muros físicos também "tomam conta da paisagem" no Brasil. Ela cita a segregação de favelas e bairros populares, bem como os condomínios fechados nos bairros nobres, como exemplos dessa muralha urbana.

04 – O que o artigo quer dizer com a afirmação de que "o muro é forma-conteúdo"?

      A afirmação de que "o muro é forma-conteúdo" significa que o muro não é apenas uma estrutura física (forma), mas também carrega um significado profundo e um impacto social (conteúdo). Ele é tanto um produto das desigualdades quanto um processo que reflete e condiciona a forma como uma sociedade lida com as diferenças.

05 – De que maneira, segundo a autora, o muro afeta a percepção do "outro" na sociedade?

      Segundo a autora, o muro afeta a percepção do "outro" ao "radicalizar a ocultação do 'outro'" e transformar a diferença em segregação e desigualdade. Ao erguer barreiras, sejam elas físicas ou mentais, o muro impede o contato e a compreensão entre diferentes grupos sociais, reforçando estigmas e distanciamentos.

 

CONTO: FELIZ DE QUEM TEM CEM PERNINHAS - FRAGMENTO - ÍNDIGO - COM GABARITO

 Conto: Feliz de quem tem cem perninhas – Fragmento

           Índigo

        Não eram nem sete horas da manhã e eu já estava escondida atrás de uma banca de jornal, tremendo de frio. Eu tremia de frio porque Mirela, minha segunda melhor amiga, mandou eu tirar a blusa de lã e escondê-la no fundo da mochila. Aquela blusa de lã ia estragar tudo. Depois ela mandou eu puxar a camiseta do uniforme para fora da calça. Puxei a camiseta para fora.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhTad8eWmn_PnK3aodFmR1b5tianFruyD7EZUyDgtsmcbqPi4XjM0m4x_JTJyIy2ZwWtQUg9AW68HWXTxF0tQL2nK4M2C93YvNATwTgkujR7PMi2Dhx6tYcbEnUocGxoWKz-Y8O8GbpY-teytAxMPzjtmWx8nQpWyjlXTXcSLKzSMLggKJ49FQdsC73W9k/s1600/centop%C3%A9ia.jpg


        — Cadê a Cíntia? — perguntou Mirela.

        Cíntia era minha melhor amiga. Éramos em três: Cíntia, Mirela e eu. Enquanto falava comigo, Mirela mexia no meu cabelo. Parte da franja eu punha atrás da orelha direita. Sempre foi assim. Mirela não queria mais que minha orelha servisse de anteparo para a franja e a puxou para frente.

        — Beeeeeem melhor... — disse. — Então, cadê a Cíntia? Quero ver suas meias.

        Eu não sabia de Cíntia. Ergui a calça. Meias brancas, lisas, normais.

        Eu sabia pouca coisa nesse dia. Sabia que toda lagarta, em algum ponto de sua vida, vai passar por uma metamorfose. Ela deixa de ter dezenas de perninhas, ganha duas asas coloridas e se transforma numa linda borboleta. Mas nessa manhã eu não queria ser linda e sair voando por aí. Eu trocaria duas lindas asas coloridas por dezenas de perninhas. É mais seguro. Nessa manhã fria eu deixava de ter controle sobre a minha forma. Como uma lagarta que chega ao ponto de metamorfose, eu sabia que era hora de me enfiar num casulo, me dissolver numa sopa de DNA e me reorganizar. Essa era minha situação. Com a única diferença que, no meu caso, não havia casulo onde eu pudesse me enfiar. Nesse primeiro dia de quinta série eu me sentia como uma sopa e o futuro era incerto.

        — Vamos esperar mais cinco minutos e daí entramos.

        O portão da escola já estava aberto e quando meu pai, minutos antes, me deixou ali, ele perguntou se não íamos entrar. Mirela respondeu por mim dizendo que sim, que já estávamos entrando. E meio que entramos. Mas assim que ele virou a esquina corremos para trás da banca de jornal, por causa da minha blusa de lã que ia estragar tudo.

        Em menos de cinco minutos eu estaria oficialmente no segundo ciclo e isto muda tudo na vida de uma pessoa. Eu teria muitas professoras, uma para cada matéria e nenhuma delas seria responsável pela nossa classe. Em menos de cinco minutos ninguém mais seria responsável por nós, pois em menos de cinco minutos seríamos responsáveis por nós mesmas. E nunca mais eu poderia acordar tarde e ligar a televisão. Agora, até o fim da minha vida, eu teria que acordar cedo, tomar banho, escovar os dentes e partir para minhas obrigações, com o céu ainda escuro. Era preciso tomar muito cuidado porque dentro de quatro minutos todas as pessoas na escola seriam mais velhas do que eu. As crianças estudavam à tarde. De manhã não havia criança na escola. As pessoas que estudavam de manhã eram livres. Elas viviam com seus pais, mas era diferente. Elas haviam adquirido independência de pensamento, tinham opiniões próprias e faziam abaixo-assinados. Mais três minutos e eu estaria no meio delas. E este seria apenas o primeiro de quatro anos de matérias dificílimas, com provas de cinco páginas, em que minha nota seria um número, não mais uma letra. E os números, ao contrário das letras, não têm fim.

        — Mais dois minutos — disse Mirela.

        Mais dois minutos e eu entraria para a escola onde estudei a vida inteira. O mesmo prédio, as mesmas classes, as mesmas carteiras. E isso era o mais apavorante de tudo. Talvez, ao passar por aquele portão, um aluno do colegial atirasse Mirela e eu dentro do tanque de areia. Talvez jogassem futebol com alunas do nosso tamanho. A gente, sendo a bola.

        — Pronto. Vamos — disse Mirela.

        […]

ÍNDIGO. Perdendo perninhas. São Paulo: Hedra, 2006. p. 9-12. (Fragmento).

Fonte: Língua Portuguesa: Singular & Plural. Laura de Figueiredo; Marisa Balthasar e Shirley Goulart – 6º ano – Moderna. 2ª edição, São Paulo, 2015. p. 19-20.

Entendendo o conto:

01 – Onde a narradora e Mirela estão escondidas no início do fragmento e por quê?

      A narradora e Mirela estão escondidas atrás de uma banca de jornal. Elas se esconderam porque Mirela mandou a narradora tirar a blusa de lã e a esconder na mochila, além de puxar a camiseta do uniforme para fora da calça, pois a blusa de lã "ia estragar tudo" e elas não queriam ser vistas entrando na escola daquele jeito pelo pai da narradora.

02 – Qual é a preocupação principal da narradora em relação à sua blusa de lã e o que isso revela sobre a dinâmica entre ela e Mirela?

      A blusa de lã é uma preocupação porque, segundo Mirela, ela "ia estragar tudo", indicando que ela não se encaixava na imagem ou no plano que Mirela tinha para elas. Isso revela que Mirela exerce uma influência forte e controladora sobre a narradora, que obedece às suas instruções, mesmo que isso a deixe tremendo de frio.

03 – Como a narradora descreve sua amizade com Cíntia e Mirela?

      A narradora afirma que eram em três: Cíntia, sua melhor amiga, e Mirela, sua segunda melhor amiga, e ela mesma. A dinâmica parece ser de que Mirela é a mais dominante entre as três, dando ordens e controlando a aparência da narradora.

04 – Que metáfora a narradora usa para descrever sua situação e o que ela significa?

      A narradora se compara a uma lagarta que está prestes a passar por uma metamorfose, transformando-se em uma borboleta. No entanto, ela preferiria ter "dezenas de perninhas" do que "duas lindas asas coloridas", pois julga que é "mais seguro". Essa metáfora expressa a sensação de perda de controle sobre sua própria forma e a incerteza do futuro, sentindo-se "uma sopa de DNA" sem um casulo para se proteger, simbolizando a transição para a quinta série e as mudanças que ela acarreta.

05 – Quais são as grandes mudanças que a narradora espera ao entrar no "segundo ciclo" na escola?

      Ao entrar no "segundo ciclo" (a quinta série), a narradora espera ter muitas professoras (uma para cada matéria), não ter mais uma única professora responsável pela turma, e ter que assumir mais responsabilidade por si mesma ("seríamos responsáveis por nós mesmas"). Ela também menciona a mudança de horários e a sensação de que as pessoas da manhã seriam mais velhas e independentes.

06 – Por que a narradora considera apavorante o fato de a escola ser a mesma em que estudou a vida inteira?

      A narradora considera apavorante o fato de o prédio, as classes e as carteiras serem os mesmos porque, apesar da familiaridade, ela sente que tudo ao seu redor vai mudar. Ela teme que, ao passar pelo portão, as dinâmicas sociais serão diferentes e mais perigosas, como ser jogada em um tanque de areia ou usada como bola de futebol por alunos mais velhos. A aparente estabilidade do ambiente contrasta com a radicalidade das mudanças internas e sociais que ela antecipa.

07 – O que a diferença entre "números" e "letras" em relação às notas escolares simboliza para a narradora?

      Para a narradora, a mudança de notas de "letras" para "números" simboliza uma transição para um sistema mais rígido e implacável. Ela afirma que os "números, ao contrário das letras, não têm fim", sugerindo que as cobranças e as dificuldades serão contínuas e crescentes, sem um ponto final claro. Isso reflete a pressão e a seriedade que ela associa à nova fase escolar.

 

 

ENTREVISTA: QUE MISTÉRIO TEM CLARICE? - RENATO CORDEIRO GOMES - COM GABARITO

 Entrevista: Que mistério tem Clarice? (Texto-montagem)

                   Renato Cordeiro Gomes

        Não gosto de dar entrevistas: as perguntas me constrangem, custo a responder, e, ainda por cima, sei que o entrevistador vai deformar fatalmente minhas palavras.

        Assim, para não correr esse risco e não haver constrangimento, não aconteceu nenhuma entrevista, apesar do bate-papo descontraído e, por fim, amigo, numa sala acolhedora, no Leme, onde moram Clarice e seus mistérios.

        Houve não-perguntas, mas há respostas (?). Revelação! Diante da máquina de escrever, ELA fala:

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjEcCzORaUpfkWM2OYNL0l7VsMYv9SveI9vTMkHFo4CuXG-ApdkRQQIRIvS4yUDqDCHzrwROba_zbUJpMc-HYyvEZ2GgYXjiCY6r3j3eu4ko_ja914U_SZC8tkp0x7MYjazA6U_5FnTM4J1reeaQjV6InqqkFX-v0_td4AV1rmbXexziIzfbKRUPESGoxc/s320/Ruins_of_Chechelnyk_synagogue.jpg


        Explicação de uma vez por todas

        Recebo de vez em quando carta perguntando-me se sou russa ou brasileira, e me rodeiam de mitos.

        Vou esclarecer de uma vez por todas: não há simplesmente mistério que justifique mitos, lamento muito. E a história é a seguinte: nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa aldeia chamada Tchetchelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante. Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais já estavam se encaminhando para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em Tchetchelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. Cheguei ao Brasil com apenas dois meses de idade.

        Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata.

        Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor. Comecei a escrever pequenos contos logo que me alfabetizaram, e escrevi-os em português, é claro. Criei-me em Recife, e acho que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é viver mais intensamente e de perto a verdadeira vida brasileira que lá, no interior, não recebe influência de costumes de outros países. Minhas crendices foram aprendidas em Pernambuco, as comidas que mais gosto são pernambucanas. E através de empregadas, aprendi o rico folclore de lá.

        Somente na puberdade vim para o Rio com minha família: era a cidade grande e cosmopolita que, no entanto, em breve se tornava para mim brasileira-carioca.

        Quanto a meus rr enrolados, estilo francês, quando falo, e que me dão um ar de estrangeira, trata-se apenas de um defeito de dicção: simplesmente não consigo falar de outro jeito. Defeito esse que meu amigo Dr. Pedro Bloch disse ser facílimo de corrigir e que ele faria isso para mim. Mas sou preguiçosa, sei de antemão que não faria os exercícios em casa. E além do mais meus rr não me fazem mal algum. Outro mistério, portanto, elucidado.

        O que não será jamais elucidado é o meu destino. Se minha família tivesse optado pelos Estados Unidos, eu teria sido escritora? Em inglês, naturalmente, se fosse. Teria casado provavelmente com um americano e teria filhos americanos. E minha vida seria inteiramente outra. Escreveria sobre o quê? O que é que amaria? Seria de que Partido? Que gênero de amigos teria? Mistério.

        A gente nasce para alguma coisa, da qual vamos tomando consciência à medida que cumprimos nossa existência, num ato de doação. Para que você nasceu, Clarice?

        As três experiências

        Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O "amar os outros" é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca.

        E nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que, foi esta que eu segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E, no entanto, cada vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.

        Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram gerados voluntariamente. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma descendência, e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um dia abrirão as asas para o voo necessário, e eu ficarei sozinha. É fatal, porque a gente não cria os filhos para a gente, nós criamos para eles mesmos. Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres.

        Sempre me restará amar. Escrever é alguma coisa extremamente forte, mas que pode me trair e me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o que é o meu lote neste mundo e que eu devo aprender também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.

        Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou de encontro ao que me espera.

        Sou uma pessoa muito ocupada: tomo conta do mundo. Lucidamente apenas falo de algumas das milhares de coisas e pessoas de quem eu tomo conta. Também não se trata de um emprego, pois dinheiro não ganho com isso. Fico apenas sabendo como é o mundo.

        Mas por que você toma conta do mundo, se isto lhe dá trabalho?

        É que nasci assim, incumbida. E sou responsável por tudo o que existe, inclusive pelas guerras e pelos crimes de lesa-corpo e lesa-alma. Sou inclusive responsável pelo Deus que está em constante cósmica evolução para melhor.

        O saber e o não-saber

        Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei e – por ser um campo virgem – está livre de preconceitos. Tudo o que não sei é a minha parte maior e melhor: é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que constitui a minha verdade. 

        O mistério da criação artística

        Quando comecei a escrever, que desejava atingir? Queria escrever alguma coisa que fosse tranquila e sem modas, alguma coisa como a lembrança de um alto monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente tocado no monumento. Sinceramente não sei o que simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei escrevendo coisas inteiramente diferentes.

        Dois modos

        Como se eu procurasse não aproveitar a vida imediata mas sim a mais profunda, o que me dá dois modos de ser: em vida, observo muito, sou ativa nas observações, tenho o senso do ridículo, do bom humor, da ironia, e tomo um partido. Escrevendo, tenho observações por assim dizer passivas, tão interiores que se escrevem ao mesmo tempo em que são sentidas, quase sem o que se chama de processo.

        E por isso que no escrever eu não escolho, não posso me multiplicar em mil, me sinto fatal a despeito de mim.

        A criação artística é um mistério que me escapa, felizmente.

        Aceitando o risco

        Minhas intuições se tornam mais claras ao esforço de transpô-las em palavras. É neste sentido, pois, que escrever me é uma necessidade. De um lado, porque escrever é um modo de não mentir o sentimento (a transfiguração involuntária da imaginação é apenas um modo de chegar); de outro lado, escrevo pela incapacidade de entender se não usar o processo de escrever. Escrever é compreender melhor. Se às vezes tomo sem querer um ar hermético, é que não só o principal é não mentir o sentimento como porque tenho incapacidade de transpô-lo de um modo claro sem que mentisse – e mentir o pensamento seria tirar a única alegria de escrever. Assim, tantas vezes tomo um ar involuntariamente hermético, o que acho bem chato nos outros. Depois da coisa escrita, poderia eu friamente torná-la menos hermética, mais explicativa? Mas é que respeito um certo tom peculiar ao mistério natural da criação não substituível (esse mistério) por clareza outra nenhuma. Também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo d'água, uma vez depositado no fundo o que quer que seja, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco. Aceitei risco bem maior, como todo o mundo que vive. E se aceito o risco não é por liberdade arbitrária ou inconsciência ou arrogância: a cada dia que acordo, por hábito até, aceito o risco. Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, escrever.

        Nem tudo o que escrevo resulta numa realização, resulta mais numa tentativa. O que também é um prazer. Pois nem tudo eu quero pegar. Às vezes quero apenas tocar. Depois o que toco às vezes floresce e os outros podem pegar com as duas mãos.

        Às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia.

        Literatura e justiça

        Minha tolerância em relação a mim, como pessoa que escreve, é perdoar eu não saber como me expressar de um modo "literário" (isto é, transformando na veemência da arte) da "coisa social". Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir "arte", senti a beleza profunda da luta. O problema de justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico que não consigo me surpreender com ele - e, sem me surpreender, não consigo escrever. E também porque para mim escrever é procurar. O sentimento de justiça nunca foi procura em mim, nunca chegou a ser descoberto, e o que me espanta é que ele não seja igualmente óbvio em todos. Na verdade sinto-me engajada. Tudo o que escrevo está ligado, pelo menos dentro de mim, à realidade em que vivemos.

        Autocrítica

        Esta autocrítica tem que ser complacente, porque se fosse aguda demais isso talvez me fizesse nunca mais escrever. Mas eu queria escrever, algum dia talvez. Embora sentindo que, se voltasse a escrever, seria de um modo diferente do meu antigo: diferente em quê? Não me interessa. Minha autocrítica a certas coisas que escrevo, não importa no caso se boas ou más, – falta a elas chegar àquele ponto em que a dor se mistura à profunda alegria, e a alegria chega a ser dolorosa – pois esse ponto é o aguilhão da vida.

        E quantas vezes conseguimos o encontro máximo de um ser com outro ser, quando com espanto dizemos: "Ah!". Às vezes esse encontro consigo próprio se consegue através do encontro de um ser com outro ser.

        Não, eu não teria vergonha de dizer tão claramente o que eu quereria para o futuro: quereria o máximo, e o máximo deve ser atingido e dito com a matemática perfeição da música ouvida e transposta para o profundo arrebatamento que sentimos. Não transposta, pois é a mesma coisa. Deve, eu sei que deve haver um modo em mim de chegar a isso.

        Às vezes sinto que esse modo eu o conseguiria através simplesmente de meu modo de ver mais evoluído. Uma vez sendo, no entanto, que se fosse conseguido seria através da misericórdia. Não da misericórdia transformada em gentileza da alma. Mas da profunda misericórdia transformada em ação, mesmo que seja a ação das palavras. E assim como "Deus escreve direito por linhas tortas", através de nossos erros correria o grande amor que seria a misericórdia.

        Aproximação gradativa

        Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa.

        Mistério

        Sou tão misteriosa que não me entendo. Não, positivamente não me entendo. Bem, mas o fato é que, mesmo não me entendendo, vou lentamente me encaminhando – e também para o quê, não sei. De um modo geral, para mais amor por tudo... Sinto que me encaminho para o mais humano.

        Os mistérios: estes. De Clarice.

Seleta de Clarice Lispector, 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 291-294.

Entendendo a entrevista:

01 – Por que Clarice não gosta de dar entrevistas?

      Clarice não gosta de dar entrevistas porque as perguntas a constrangem, ela tem dificuldade em responder e acredita que o entrevistador fatalmente deformará suas palavras.

02 – Qual a verdadeira nacionalidade de Clarice e como ela se sente em relação a isso?

      Clarice nasceu na Ucrânia, mas chegou ao Brasil com apenas dois meses de idade. Ela se considera brasileira naturalizada e fez da língua portuguesa sua vida interior, usando-a para seu pensamento mais íntimo e para escrever.

03 – De onde Clarice absorveu grande parte de sua identidade cultural brasileira?

      Clarice se criou em Recife, e acredita que viver no Nordeste ou Norte do Brasil é vivenciar a verdadeira vida brasileira. Ela aprendeu suas crendices e gostos culinários em Pernambuco e, através de empregadas, absorveu o rico folclore local.

04 – Como Clarice explica seus "rr enrolados" que a fazem soar como estrangeira?

      Ela explica que é apenas um defeito de dicção e que não consegue falar de outro jeito. Ela também menciona que um amigo, Dr. Pedro Bloch, disse que seria fácil de corrigir, mas ela é preguiçosa para fazer os exercícios.

05 – Quais são as três experiências para as quais Clarice afirma ter nascido?

      Clarice afirma ter nascido para amar os outros, para escrever e para criar seus filhos.

06 – De que forma Clarice descreve a criação artística e o processo de escrita?

      Clarice vê a criação artística como um mistério que lhe escapa. Ela descreve a escrita como uma necessidade para não mentir o sentimento e para compreender melhor as coisas, além de ser uma fonte de "inesperadas surpresas" onde ela se torna consciente de coisas que antes não sabia que sabia.

07 – Qual é o sentimento de Clarice em relação à justiça social e como isso se relaciona com sua escrita?

      Para Clarice, o problema da justiça é um sentimento "óbvio e básico" que a "engaja". Embora não consiga escrever sobre isso de forma "literária" (transformando-o em veemência artística), ela afirma que tudo o que escreve está ligado à realidade em que vivemos.

 

CONTO: A CARTOMANTE - AFONSO HENRIQUE DE LIMA BARRETO - COM GABARITO

 Conto: A Cartomante

           Afonso Henrique de Lima Barreto

        Não havia dúvida que naqueles atrasos e atrapalhações de sua vida, alguma influência misteriosa preponderava. Era ele tentar qualquer cousa, logo tudo mudava. Esteve quase para arranjar-se na Saúde Pública; mas, assim que obteve um bom "pistolão", toda a política mudou. Se jogava no bicho, era sempre o grupo seguinte ou o anterior que dava. Tudo parecia mostrar-lhe que ele não devia ir para adiante. Se não fossem as costuras da mulher, não sabia bem como poderia ter vivido até ali. Há cinco anos que não recebia vintém de seu trabalho. Uma nota de dois mil-réis, se alcançava ter na algibeira por vezes, era obtida com auxílio de não sabia quantas humilhações, apelando para a generosidade dos amigos.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiO4omWW-Q1yoW0H44rpEkkueAzSRKXPHqNd3kPWbVCketBf82gOHudNZdwXI_gm1Gj6KmzF3V634geCZPFqvwKfy47TtP3UHWYKK28UyFK3x9McwcZNocy2OgVCKTqKHeF95pqtHMssa4A_v2bpioRJpsvBfluCtu5sCP346X8dc3WBKga1HCInzKs2Sg/s320/08d037_c7941a7f007b4558b113d52525c124de~mv2.jpeg


        Queria fugir, fugir para bem longe, onde a sua miséria atual não tivesse o realce da prosperidade passada; mas, como fugir? Onde havia de buscar dinheiro que o transportasse, a ele, a mulher e aos filhos? Viver assim era terrível! Preso à sua vergonha como a uma calceta, sem que nenhum código e juiz tivessem condenado, que martírio!

        A certeza, porém, de que todas as suas infelicidades vinham de uma influência misteriosa, deu-lhe mais alento. Se era "coisa feita", havia de haver por força quem a desfizesse. Acordou mais alegre e se não falou à mulher alegremente era porque ela já havia saído. Pobre de sua mulher! Avelhantada precocemente, trabalhando que nem uma moura, doente, entretanto a sua fragilidade transformava-se em energia para manter o casal.

        Ela saía, virava a cidade, trazia costuras, recebia dinheiro, e aquele angustioso lar ia se arrastando, graças aos esforços da esposa.

        Bem! As cousas iam mudar! Ele iria a uma cartomante e havia de descobrir o que e quem atrasavam a sua vida.

        Saiu, foi à venda e consultou o jornal. Havia muitos videntes, espíritas, teósofos anunciados; mas simpatizou com uma cartomante, cujo anúncio dizia assim: “Madame Dadá, sonâmbula, extralúcida, deita as cartas e desfaz toda espécie de feitiçaria, principalmente a africana. Rua etc.".

        Não quis procurar outra; era aquela, pois já adquirira a convicção de que aquela sua vida vinha sendo trabalhada pela mandinga de algum preto mina, a soldo do seu cunhado Castrioto, que jamais vira com bons olhos o seu casamento com a irmã.

        Arranjou, com o primeiro conhecido que encontrou, o dinheiro necessário, e correu depressa para a casa de Madame Dadá.

        O mistério ia desfazer-se e o malefício ser cortado. A abastança voltaria à casa; compraria um terno para o Zezé, umas botinas para Alice, a filha mais moça; e aquela cruciante vida de cinco anos havia de lhe ficar na memória como passageiro pesadelo.

        Pelo caminho tudo lhe sorria. Era o sol muito claro e doce, um sol de junho; eram as fisionomias risonhas dos transeuntes; e o mundo, que até ali lhe aparecia mau e turvo, repentinamente lhe surgia claro e doce.

        Entrou, esperou um pouco, com o coração a lhe saltar do peito.

        O consulente saiu e ele foi afinal à presença da pitonisa.

        Era sua mulher.

In: Minidicionário Luft (Edição especial). São Paulo: Scipione, 1990. p. 43-45.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 290.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal dificuldade que o protagonista enfrenta no início do conto?

      O protagonista está vivendo em uma situação de miséria e "atrapalhações" em sua vida, não conseguindo se arranjar financeiramente há cinco anos e dependendo das costuras da mulher para sobreviver.

02 – Que explicação o protagonista encontra para suas desgraças?

      Ele acredita que todas as suas infelicidades vêm de uma "influência misteriosa" ou "coisa feita", uma espécie de mandinga.

03 – Qual a atitude da esposa do protagonista diante da situação difícil?

      A esposa, apesar de "avelhantada precocemente" e doente, demonstra grande energia e força, trabalhando incansavelmente ("que nem uma moura") para manter o casal e o lar.

04 – O que o protagonista decide fazer para mudar sua sorte?

      Ele decide procurar uma cartomante para descobrir o que e quem estão atrasando sua vida e desfazer o malefício.

05 – Por que o protagonista escolhe Madame Dadá especificamente?

      Ele simpatiza com o anúncio de Madame Dadá por acreditar que sua vida está sendo afetada pela "mandinga de algum preto mina", e o anúncio da cartomante prometia desfazer "principalmente a africana". Ele também suspeita que seu cunhado, Castrioto, esteja por trás da feitiçaria.

06 – Como o protagonista se sente ao ir em direção à casa da cartomante?

      O protagonista se sente esperançoso e alegre. O mundo, antes turvo, lhe surge "claro e doce", e ele acredita que o mistério será desfeito e a abastança voltará.

07 – Qual a revelação surpreendente ao final do trecho?

      A revelação final é que a pessoa que estava consultando a cartomante antes do protagonista era sua própria mulher.