quarta-feira, 3 de agosto de 2022

CRÔNICA: Ô COPACABANA - (FRAGMENTO) - JOÃO ANTÔNIO - COM GABARITO

 Crônica: Ô Copacabana! – Fragmento     

               João Antônio

   [...] Das praças do nosso bairro, poucas e mirradas, uma é um capítulo nordestino, com variações para o norte, inda mais naquele trecho em que há uma touceira de palmeiras ao lado dos bancos laterais.

        Ali, ninguém sabe quem foi quem. E, menos ainda, quem foi Serzedelo Correia. Senador da República Velha, cientista, vendedor de terrenos, líder de alguma revolução democrática que tenha salvado o País de alguma ideologia esquisita? Um velho morador, dos poucos que têm trinta anos de bairro, garantiu que não foi nenhum homem famoso, importante ou “sério”. Também não soube dizer quem era e o que fazia, quando vivo, Serzedelo Correia. Hoje, o nome virou estátua, um busto lá no meio da praça.

        Ainda não tivemos tempo, cá no bairro, para termos nomes famosos e, como num verso de Mário de Andrade, na Praça Serzedelo Correia envelhecemos sem saber de nada. E, desconfiando que tenha sido hábil especulador imobiliário desses que correm a perna até na sombra, já que as maiores estrelas cariocas, festejadas em cartazes, placas e luminosos de preço pelos pontos principais da cidade são os nomes desses senhores poderosos.

        Poucos a chamam Serzedelo, que o carioca abrevia os nomes para os desmoralizar ou humanizar. Necessário não esquecer que vivemos numa cidade em que chope é garoto, jirimum é abóbora, camarada é cara, ônibus refrigerado é frescão. A Serzedelo passou a Praça dos Paraíbas. Ou Praça dos Paus de Arara, devido aos pingentes urbanos nordestinos, que tangidos pela fome e falta de condições de vida, juntam-se aos sábados e domingos no pequeno pedaço de território democrático dentro de Copa.

        Cada milímetro tem história. Cada horário, seu povo particular. Seu chão é talvez o mais vivido e sofrido de Copacabana. Recebe de tudo, rejeita nada, espécie de capital cultural do bairro, inda mais aos domingos, quando abriga crianças, babás, velhos senhores aposentados quentando sol, empregadinhas domésticas e seus namorados que batalham na construção civil, bíblias, lambe-lambes, engraxates, Exército da Salvação, consertadores de persianas e de cadeiras de palhinha, sorveteiro, vendedores de amendoim e de algodão de açúcar e gentes variadas, numa misturação de cores, cheiros, nacionalidades. A noite, invariavelmente é um circo que junta homem que engole fogo, gilete ou metais, mulher-que-sobe-em-escada, cantadores nordestinos, sanfona, triângulo, pandeiro, violões e até guitarras elétricas, flertes, namoros, brigas, gentes nos pontos de ônibus, lá defronte aos correios, cachorros, esmoleiros, desocupados, domingueiramente. A noite, parece nascer gente do chão. [...]

JOÃO ANTÔNIO. Ô Copacabana! Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1978. p. 35-36.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 112-4.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Serzedelo Correia: (1858-1932) militar, economista e político que foi prefeito do Rio de Janeiro em 1910.

·        Especulador imobiliário: pessoa que compra um grande número de imóveis ou terrenos, geralmente concentrados em uma determinada área, com o objetivo de obter grandes lucros por causa da redução de oferta.

·        “Correr a perna até na sombra”: enganar, mentir.

·        Pingente: passageiro que viaja no estribo de um bonde, de um ônibus, ou pendurado em qualquer veículo.

·        Lambe-lambe: fotógrafo ambulante.

02 – Explique o título “Ô Copacabana!”.

      O título indica que o autor usou o recurso da personificação, pois a interjeição Ô é usada para chamar alguém. Dependendo do contexto e da entonação em que é usada, essa interjeição pode exprimir emoção, surpresa, pesar, repreensão ou invocação.

03 – Qual é o tema central desse texto?

      A praça Serzedelo Correia, que fica em Copacabana, popularmente chamada Praça dos Paraíbas ou Praça dos Paus de Arara por ser ponto de encontro de migrantes do Norte e do Nordeste do Brasil.

04 – Que tom o narrador usa para se referir ao político Serzedelo Correia, que foi prefeito do Rio de Janeiro em 1910? O que pode ser inferido desse tom?

      Ele usa um tom irônico e crítico do qual se pode inferir que o político tenha sido também um especulador imobiliário, um vendedor de terrenos: “E, desconfiando que tenha sido hábil especulador imobiliário desses que correm a perna até na sombra [...]”.

05 – Releia e explique os trechos a seguir:

a)   Das praças do nosso bairro, poucas e mirradas, uma é um capítulo nordestino, com variações para o norte, inda mais naquele trecho em que há uma touceira de palmeiras ao lado dos bancos laterais.

Crítica à falta de espaços verdes destinados ao lazer no bairro de Copacabana e referência à praça como um ponto de encontro de imigrantes das regiões Norte e Nordeste do Brasil.

b)   Ali, ninguém sabe quem foi quem.

Referência ao anonimato e à inconsciência das pessoas em relação ao espaço que frequentam.

c)   E, desconfiando que tenha sido hábil especulador imobiliário desses que correm a perna até na sombra, já que as maiores estrelas cariocas, festejadas em cartazes, placas e luminosos de preço pelos pontos principais da cidade são os nomes desses senhores poderosos.

Crítica à especulação imobiliária e ao modelo de urbanização.

d)   Cada milímetro tem história. Cada horário, seu povo particular. Seu chão é talvez o mais vivido e sofrido de Copacabana.

Referência à memória histórica e afetiva da praça, construída pelas pessoas do povo, que a frequentam, e ao tipo de frequentador, que muda conforme o horário.

e)   Recebe de tudo, não rejeita nada, espécie de capital cultural do bairro, inda mais aos domingos, quando abriga crianças, babás, velhos senhores aposentados quentando sol [...].

Reconhecimento da praça como espaço social de convivência democrática.

06 – Faça uma analogia entre o tom das narrativas “Ai de ti, Copacabana” e “Ô Copacabana!”.

      A narrativa “Ai de ti, Copacabana” apresenta tom bíblico, solene, proferindo ameaças e profecias, e tem como foco especialmente a Copacabana boêmia, voltada para o lazer e o entretenimento. A narrativa “Ô Copacabana!” apresenta um tom mais poético, envolvendo-se com o cenário que descreve, e foca, especialmente, a praça Serzedelo Correa – espaço democrático de convivência entre pessoas e grupos diferentes.

07 – Leia:

        As crônicas têm diversas motivações e formas de apresentação, como:

·        Provocar riso por meio da narração ou da descrição objetiva de um fato real ou imaginário;

·        Promover uma reflexão por meio de uma exposição argumentativa, narração ou descrição de um fato de conhecimento público ou pessoal;

·        Definir um sentimento por meio de um relato ou descrição, baseando-se, por exemplo, em uma experiência pessoal.   

      a)   De qual dos recursos acima Rubem Braga se utiliza, na crônica que você leu, e com que finalidade?

Ele faz uma exposição argumentativa de fatos para promover uma reflexão a respeito do futuro de Copacabana, que, segundo o narrador ficcional, pode ser comprometido pela desigualdade social, pela especulação imobiliária, pela prostituição, pelo desprezo pela natureza, etc.

b)   De qual dos recursos acima João Antônio se utiliza, na crônica que você leu, e com que finalidade?

Ele faz uma descrição de um espaço público para provocar uma reflexão a respeito da importância das áreas verdes e de outros espaços públicos para o convívio social.

08 – O narrador de “Ô Copacabana!” refere-se a características da linguagem carioca (no caso, dos moradores do Rio de Janeiro).

a)   Quais são essas características? Identifique exemplos dados pelo narrador.

Tendência a abreviar as palavras, com objetivo pejorativo ou afetivo: “[...] o carioca abrevia os nomes para os desmoralizar ou humanizar”. Variação lexical: “[...] chope é garoto, jirimum é abóbora, camarada é cara, ônibus refrigerado é frescão.”. 

b)   Com que objetivo o narrador usa a palavra Copa, abreviada, para se referir a Copacabana?

Apesar das críticas feitas ao bairro, o narrador usa a forma abreviada com sentido afetivo, demonstrando carinho pelo bairro: “[...] no pequeno pedaço de território democrático dentro de Copa”.

09 – Explique o uso da primeira pessoa do plural e do advérbio  em:

·        Das praças do nosso bairro [...].

·        Ainda não tivemos tempo,  no bairro [...].

O narrador de “Ô Copacabana!” inclui-se entre os moradores do bairro, manifesta sua percepção, assim como suas avaliações, estabelecendo uma relação de intimidade com o cenário. Isso confere subjetividade à narrativa.

10 – Como são as pessoas, as ruas, as casas e as praças de seu bairro? Você sabe como ele foi formado?

      Resposta pessoal do aluno.

11 – Se tivesse que falar ou escrever algo a respeito de seu bairro, quais aspectos abordaria?

      Resposta pessoal do aluno.

12 – Você já leu algum texto do jornalista, contista e cronista João Antônio?

      Resposta pessoal do aluno.

 

 

CONTO: A CARTEIRA DE CROCODILO - MIA COUTO - COM GABARITO

 Conto: A carteira de crocodilo

         Mia Couto

        A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas. Exibia a carteirinha que o marido lhe trouxera das outras Áfricas, toda em substância de pele de crocodilo. As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce. Até a bílis lhes escorria pelos olhos. Motivadas pela desfaçatez, elas comentavam: o bichonho, assim tão desfolhado, não teria sofrido imensamente? Tal dermificina não seria contra os católicos mandamentos?

        – E com o problema das insolações, o bicho, assim esburacado, apanhando em cheio os ultravioletas...

        – Cale-se, Clementina.

        Mas o governador Sacramento também se havia contemplado a ele mesmo. Adquirira um par de sapatos feitos com pele de cobra. O casal calçava do reino animal, feitos pássaros que têm os pés cobertos de escamas. Certo dia, uma das nobres damas trouxe a catastrágica novidade. O governador-geral contraíra grave e irremediável viuvez. A esposa, coitada, fora comida inteira, incluído corpo, sapatos, colares e outros anexos.

        – Foi comida mas... pelo marido, supõe-se?

        – Cale-se, Clementina.

        Mas qual marido? Tinha sido o crocodilo, o monstruoso carnibal. Que horror, com aqueles dentes capazes de arrepiar tubarões.

        – Um crocodilo no Palácio?

        – Clemente-se, Clementina.

        O monstro de onde surgira? Imagine-se, tinha emergido da carteira, transfigurado, reencarnado, assombrado. Acontecera em instantâneo momento: a malograda ia tirar algo da mala e sentiu que ela se movia, esquiviva. Tentou assegurá-la: tarde e de mais. Foi só tempo de avistar a dentição triangulosa, língua amarela no breu da boca. No resto, os testemunhadores nem presenciaram. O sáurio se eminenciou a olhos imprevistos.

        E o governador, sob o peso da desgraça? O homem ia de rota abatida. Lágrimas catarateavam pelo rosto. O dirigente recebeu o desfile das condolências. Vieram íntimos e ilustres. A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado. Os visitantes se juntaram no nobre salão, aguardando palavras do dirigente. O governador avançou para o centro e anunciou não o luto mas, espantem-se cristãos, a inadiável condecoração do crocodilo. Em nome da protecção das espécies, explicou. A bem da ecologia faunística, acrescentou.

        No princípio, houve relutâncias, demoras no entendimento. Mas logo os aplausos abafaram as restantes palavras. O que sucedeu, então, foi o inacreditável. O governador Sacramento suspendeu a palavra e espreitou o chão que o sustinha. Pedindo urgentes desculpas ele se sentou no estrado e se apressou a tirar os sapatos. Entre a audiência ainda alguém vaticinou:

        – Vai ver que os sapatos se convertem em cobra...

        – Clementina!

        Sucedeu exactamente o inverso. O ilustre nem teve tempo de desapertar os atacadores. Perante um espanto ainda mais geral que o título do governador, se viu o honroso indignitário a converter-se em serpente. Começou pela língua, afilada e bífida, em rápidas excursões da boca. Depois, se lhe extinguiram os quase totais membros, o homem, todo ele, um tronco em flor. Caiu desamparado no mármore do palácio e ainda se ouviu seu grito:

        – Ajudem-me!

        Ninguém, porém, avivou músculo que fosse. Porque, logo e ali, o mutante mutilado, em total mutismo, se começou a enredar pelo suporte do microfone. Enquanto serpenteava pelo ferro ele se desnudava, libertadas as vestes como se foram uma desempregada pele. O governador finalizava elegâncias de cobra. O ofídio se manteve hasteado no microfone, depois largou-se. Quando se aguardava que se desmoronasse, afinal, o governador encobrado desatou a caminhar. Porque de humano lhe restavam apenas os pés, esses mesmos que ele cobrira de ornamento serpentífero.

        – Não aplauda, Clementina, por amor de Deus!

COUTO, Mia. Contos do nascer da Terra. 3. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1997. p. 101-103.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 132-5.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Canasta: jogo de cartas de baralho também chamado, no Brasil, de canastra ou tranca.

·        Desfaçatez: descaramento, cinismo; falta de vergonha ou de pudor.

·        Atacador: cordão, cadarço.

·        Bífida: fendida ou separada em duas partes, como a língua das serpentes.

·        Serpentífero: relativo a uma situação em que há ou em que se produz serpente ou cobra venenosa.

02 – Você conhece a literatura em prosa de algum escritor africano de língua portuguesa? Qual?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – O realismo mágico também faria parte do contexto literário desse continente?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – Qual seria o tema ou o assunto de um conto intitulado “A carteira de crocodilo”?

      Resposta pessoal do aluno.

05 – Leia as informações a seguir:

        A República de Moçambique, cuja capital é Maputo, situa-se na costa sudeste do continente africano. Foi uma colônia portuguesa e tornou-se independente em 25 de junho de 1975. Segundo estudos arqueológicos, os povos bantu se fixaram nessa região entre os séculos I e V. Além de agricultores, eles dominavam a metalurgia, ciência que estuda os processos de extração de metais e seu uso industrial ou a arte de trabalhar metais. Os portugueses chegaram pela primeira vez em Moçambique em 1497.

        Com base nessas informações, quem representariam as personagens governador-geral, Sacramento; sua mulher, Dona Francisca Júlia Sacramento; suas amigas; e os “íntimos e ilustres”?

      Todas essas personagens representam o colonizador português em Moçambique.

06 – Segundo estudiosos, esse conto (assim como “O edifício”, de Murilo Rubião) é filiado ao realismo fantástico.

a)   Que elementos desse conto de Mia Couto extrapolam a realidade, ou seja, podem ser considerados fantásticos?

As circunstâncias absurdas que envolveram a morte da senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, que é devorada por um crocodilo que sai de sua bolsa de pele; e a metamorfose pública e gradual do corpo do governador em serpente.

b)   Como você interpreta a presença desses elementos fantásticos no conto “A carteira de crocodilo”?

No contexto, esses elementos foram usados com o objetivo de provocar a reflexão a respeito da arrogância, da vaidade, da hipocrisia, da inveja e de denunciar a realidade: a política colonialista, o oportunismo político, etc.

c)   O que o crocodilo e a serpente simbolizam no contexto?

Os nomes dos dois animais estão associados a aspectos negativos do ser humano. É chamada de cobra uma pessoa traiçoeira, maldosa. A expressão “lágrimas de crocodilo” está associada a fingimento. Tanto no Brasil como em Moçambique, a gíria crocodilar/crocodilagem tem o sentido pejorativo de “agir com falsidade, hipocrisia”.

d)   Que sentimentos, ações humanas e fatos reais são tematizados nesse conto?

A hipocrisia, a falsidade, a vaidade, a inveja, a exploração colonial, assim como o uso político das tragédias.

07 – Releia e explique no caderno cada um dos trechos a seguir:

a)    A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas. Exibia a carteirinha que o marido lhe trouxera das outras Áfricas, toda em substância de pele de crocodilo.

O trecho crítica de forma irônica a vaidade da mulher do político, que se mostrava superior e exibia sua carteira de crocodilo, que pode representar a exploração das colônias portuguesas da África. É uma crítica, também, às atividades sociais realizadas com o falso pretexto de fazer ações de caridade.

b)    As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce. Até a bílis lhes escorria pelos olhos. Motivadas pela desfaçatez, elas comentavam: o bichonho, assim tão desfolhado, não teria sofrido imensamente? Tal dermificina não seria contra os católicos mandamentos?

– E com o problema das insolações, o bicho, assim esburacado, apanhando em cheio os ultravioletas...

Crítica, de forma irônica, à inveja das “amigas” de Dona Francisca, aos falsos discursos religioso e ecológico, à hipocrisia. A palavra amigas foi usada no sentido irônico, em que se afirma o contrário do que se pensa.

c)    E o governador, sob o peso da desgraça? O homem ia de rota abatida. Lágrimas catarateavam pelo rosto. O dirigente recebeu o desfile das condolências. Vieram íntimos e ilustres. A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado. Os visitantes se juntaram no nobre salão, aguardando palavras do dirigente. O governador avançou para o centro e anunciou não o luto mas, espantem-se cristãos, a inadiável condecoração do crocodilo. Em nome da protecção das espécies, explicou. A bem da ecologia faunística, acrescentou.

Ironiza a comemoração do marido pela viuvez, como se ele estivesse comemorando a morte da mulher ao condecorar o crocodilo; e critica os políticos que se apropriam do discurso ecológico e até da “própria desgraça” para obter ganhos políticos.

d)    – Cale-se, Clementina.; – Clemente-se, Clementina.; – Não aplauda, Clementina, por amor de Deus!

Uma personagem adverte uma outra, chamada Clementina, para que ela não expresse o que pensa e mantenha as aparências. É uma crítica irônica à hipocrisia das relações sociais e de poder.

08 – Baseando-se nos trechos lidos na atividade 7, responda:

        Nesse conto, o narrador de terceira pessoa é neutro, ou seja, ele só narra o que presencia, ou se posiciona perante os fatos? Explique sua resposta.

      O narrador posiciona-se, criticando e ironizando as personagens por meio da escolha das palavras, dos comentários e de descrições, como as seguintes: “As amigas se raspavam de inveja, incapazes de disfarce”; “O governador finalizava elegâncias de cobra”; “[...] invisivelmente emocionado [...]”; “[...] honroso indignitário [...]”; etc. Além disso, dirige-se ao leitor com interrogações: “E o governador, sob o peso da desgraça?”.

09 – O texto apresenta a voz do narrador, a do governador, a de uma personagem anônima que se dirige à personagem Clementina, fazendo-lhe advertências. Pelas advertências, é possível inferir a voz da personagem Clementina.

a)   Quem Clementina pode representar?

As pessoas que aplaudem e consideram justo o destino do governador e de sua mulher.

b)   O que a voz da personagem anônima pode representar?

As pessoas que, por algum interesse, querem manter as aparências.

10 – Nesse conto, Mia Couto criou neologismos, alterando a classe gramatical de várias palavras e aglutinando-as a outras. Qual é o feito do emprego desses neologismos no texto?

      Eles criam um efeito humorístico e também reflexivo, irônico, crítico e fantástico.

11 – Explique no caderno:

a)   O sentido e/ou a formação das palavras destacadas em:

·        A Senhora Dona Francisca Júlia Sacramento, esposa do governador-geral, excelenciava-se pelos salões, em beneficentes chás e filantrópicas canastas.

·        No resto, os testemunhadores nem presenciaram.

·        Acontecera em instantâneo momento: a malograda ia tirar algo da mala e sentiu que ela se movia, esquiviva

         Certo dia, uma das nobres damas trouxe a catastrágica novidade.

O termo excelenciava-se é um neologismo formando pela mudança de classe gramatical. Formado pelo adjetivo excelente e pela forma de tratamento excelência, tem o sentido de “exibia-se”. A palavra testemunhadores é usada com o sentido de pessoas presentes, que estavam no local do acontecimento. O termo esquiviva é um neologismo formado pelos adjetivos esquiva e viva: a carteira movimentou-se de forma defensiva e dela saiu um crocodilo vivo. O termo catastrágica é um neologismo formado pelos adjetivos catastrófica e trágica, com o objetivo de reforçar o ocorrido.

b)   O sentido das expressões destacadas em:

·        O sáurio se eminenciou a olhos imprevistos.

·        A todos ele cumprimentou, reservado, invisivelmente emocionado.

A expressão “se eminenciou a olhos imprevistos” tem o sentido de “se destacou, se fez ver, ganhou grandes proporções diante das pessoas presentes, que foram pegas de surpresa, pois não esperavam ver o que viram”. Brincadeira, humor com a expressão “visivelmente emocionado”, com o sentido de que não conseguia demonstrar emoção.

c)   O sentido da metáfora e da hipérbole em:

         Até a bílis lhes escorria pelos olhos.

     A expressão “bílis lhes escorria pelos olhos” é metáfora e hipérbole, com o sentido de muita inveja.

d)   O sentido da frase:

Clemente-se, Clementina.

     Clemente-se é um neologismo formado de verbo com base em substantivo. O nome da personagem pode ser uma ironia porque a palavra clemência tem o sentido de indulgência, bondade; e a palavra clemente tem o sentido de indulgente, bondoso.

12 – Explique a formação e/ou o sentido de mais estes neologismos criados por Mia Couto:

a)   Bichonho;

Neologismo formado com as palavras bicho + medonho, tem o sentido de bicho medonho, terrível.

b)   Carnibal;

Neologismo formado com as palavras derma/derme (do grego pele) + carnificina, tem o sentido de mortandade, grande extermínio ou carnagem de peles de animais.

c)   Dermificina;

Neologismo formado com as palavras carne + canibal, para reforçar a voracidade do crocodilo.

d)   Catarateavam.

Neologismo e hipérbole, para reforçar o sentido de lágrimas que cairiam como cataratas, ou cachoeiras.

 

domingo, 31 de julho de 2022

CRÔNICA: AI DE TI, COPACABANA - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

 Crônica: Ai de ti, Copacabana

               Rubem Braga

        1. AI DE TI, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.

        2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

        3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia.

        4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.

        5. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.

        6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.

        7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.

        8. Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.

        9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.

        10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.

        11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.

        12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.

        13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.

        14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.

        15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?

        16. Antes de te perder eu agravarei s tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.

        17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.

        18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.

        19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.

        20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.

        21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.

        22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!

Rio, janeiro, 1958

BRAGA, Rubem. Ai de ti, Copacabana. 13. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 80-3.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 106-9.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Iniquidade: injustiça.

·        Setentrião: vento norte.

·        Jamanta: arraia-gigante; peixe dos mares tropicais que atinge até 3 metros comprimento e 5 metros de diâmetro.

·        Mero: peixe do Atlântico tropical que atinge até 3 m de comprimento e pesa até 450 kg.

·        Mancebo: rapaz, jovem.

·        Lambreta: veículo motorizado semelhante à motocicleta; motoneta; vespa.

·        Concupiscência: prazer; desejo intenso de bens ou gozos materiais.

·        Quebrantar: vencer, domar, amansar.

·        Badejos, garoupas e tainhas: peixes do Oceano Atlântico.

·        Fariseu: com o sentido de indivíduo que aparenta santidade não a tendo; indivíduo hipócrita, fingido.

·        Rapina: ato de roubar, tirar, subtrair com violência.

·        Libação: ato de tomar bebidas alcoólicas por prazer e para fazer brindes.

·        Hetaira: na antiga Grécia, mulher dissoluta, cortesã; prostituta elegante e distinta.

·        Alfonje: sabre, espada de lâmina curta e larga.

·        Cação: peixe da família do tubarão.

02 – Caracterize o narrador de “Ai de ti, Copacabana” usando passagens da crônica.

      O narrador é um ser superior, um profeta, que tem o poder de prever o futuro. Trechos do texto que justificam a resposta: “[...] minha voz te abalará até as entranhas”; “Já movi o mar de uma parte e de outra parte [...]”; “[...] eu agravarei a tua demência [...]”; “[...] eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá.”.

03 – A quem o narrador se dirige? Com que objetivo?

      Ele se dirige ao bairro boêmio de Copacabana em tom ameaçador e irônico, profetizando seu fim.

04 – “Ai de ti, Copacabana” é uma crônica intertextual. Releia estes trechos:

        Ai de ti; referver de espumas; bando de carneiros em pânico; as muralhas ruirão; a hora da provação; Por que rezais em vossos templos, fariseus [...]; a multidão de vossos pecados; porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá; Pois o fogo e a água te consumirão. Com qual texto a crônica dialoga? Justifique.

      A crônica dialoga com o texto bíblico (a Bíblia), apropriando-se de imagens e de trechos do livro do Apocalipse.

05 – Explique a presença de numeração nos parágrafos.

      Os 22 parágrafos são numerados como se fossem versículos da Bíblia.

06 – O que o narrador de “Ai de ti, Copacabana” expressa por meio do texto?

a)   Ironia e rancor.

b)   Ameaça e lamento.

c)   Desprezo e horror.

d)   Queixa e dor.

e)   Arrogância e alerta.

07 – Releia os trechos a seguir e explique o que motivou as “profecias apocalípticas” do narrador.

·        [...] estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia. (3).

·        Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas. (8).

·        Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? (8)

·        [...] desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão. (9).

·        Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto. [...]. (10).

·        E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações. (14).

·        Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados? (19).

·        Pois grande foi a tua vaidade [...]. (19).

      O que motivou essas e outras “profecias apocalípticas” do narrador foram a desigualdade social, o desprezo pela natureza, a corrupção e a especulação imobiliária, a prostituição, as futilidades, os vícios.

08 – Releia o trecho a seguir e explique a que ele se refere.

        “Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite?”

      O trecho refere-se à fusão de cultos religiosos, chamada de “sincretismo religioso”.

09 – Qual é o efeito provocado pela citação de nomes de bairros, espaços públicos, casas noturnas, galerias comerciais, personalidade, etc.?

      A citação de nomes dá um tom documental, de registro de locais, cenários e fatos, que é uma das marcas do gênero crônica.