(Conto da obra Antes do baile
verde)
Lygia Fagundes Telles
A
borboleta pousou primeiramente na haste de uma folha de roseira que vergou de
leve. Em seguida, voou até a rosa e fincou as patas dianteiras na borda das
pétalas. Juntou as asas que se coloram palpitantes. Desenrolou a tromba. E
inclinando o corpo para frente, num movimento de seta, afundou a tromba no
âmago da flor.
Maria Camila chegou a estender a mão
para prendê-la pelas asas. Não completou o gesto. Entrelaçou novamente as mãos
no regaço e ficou olhando. Era uma borboleta amarela, com um fino riso negro
debruando-lhe as asas.
-- Deve ser uma borboleta jovem – disse
Maria Camila.
-- Jovem? – repetiu a mulher debruçada
na janela que dava para o jardim.
-- Veja, as asas ainda estão intactas.
E está sugando com tamanha força ... Haverá tanto suco assim?
-- Essa rosa abriu ontem cedo, a
senhora lembra? E já está murchando – disse a mulher prendendo com o alfinete
do
-- Maria Camila voltou-se para janela.
Estava sentada numa cadeira de vime, entre os dois canteiros do jardim.
No céu azul- claro, as nuvens iam
tomando uma coloração rosada. Havia uma poeira de ouro em suspensão no
ar.
-- Você ainda não pregou essa
alça, Matilde?
--
Não sei onde o botão foi parar.
-- Pegue outro na minha caixa. Mas
agora não! – pediu ela ao ver que a empregada já se dispunha a voltar para o
interior da casa. Baixou o olhar até a roseira. – A gente vai clareando à
medida que envelhece, mas as rosas vermelhas vão escurecendo, veja, ela está
quase preta.
-- E essa borboleta ainda...
-- Deixa – atalhou Maria Camila. Uniu
as mãos espalmadas no mesmo movimento com que a borboleta unira as asas. Suas
mãos tremiam. – Há de ver que a rosa está feliz por ter sido
escolhida.
-- Mas desse jeito ela vai morrer mais
depressa.
-- É melhor deixar.
A empregada passou lentamente a ponta
do avental no peitoril da janela. Acompanhou com um olhar uma andorinha que
cruzou o jardim num voo raso e desapareceu atrás do muro. Da casa vizinha.
Suspirou.
-- Acho que essa borboleta já esteve
ontem por aqui, a senhora não viu?
-- Maria Camila concordou com um leve
movimento de cabeça. Examinou com espanto as mãos cheias de sardas.
-- É a mesma.
-- Acostumou - disse a mulher num tom
indiferente.
Fixou o olhar vadio nos ombros
estreitos da patroa. – A senhora não quer que traga o chá?
-- Estou esperando a menina.
-- Mas a que hora ficou de aparecer?
-- Às cinco – disse Maria Camila
apertando os olhos.
Inclinou-se para o relógio-pulseira. E
escondeu no regaço as mãos fechadas. – Às cinco em ponto.
-- Foi emergindo do silêncio da tarde o
zunido poderoso de uma abelha. O riso de uma criança explodiu tão próximo que
pareceu brotar de dentro do canteiro.
-- Essa menina... – E a empregada fez
uma pausa para ajustar para ajustar melhor o pente nos cabelos grisalhos: – Eu
conheço?
-- Não, não conhece.
-- Quantos anos ela tem?
-- Uns dezoito.
-- Mas então não é menina!
Maria Camila fixou no céu o olhar
perplexo. Voltou a examinar o relógio-pulseira. E cruzou os braços tentando
dominar o tremor das mãos.
-- Desde ontem ela já rondava por aqui.
Cismou com essa rosa, tinha que ser essa rosa.
-- Trabalhei na casa de um padre que
tinha um canteiro só de roseiras brancas. Como duravam aquelas rosas!
Por um breve instante Maria Camila
fixou-se de novo na borboleta. Teve uma expressão de repugnância.
-- Chega a ser obsceno...
-- Mas é sabido que as vermelhas têm
mais perfumes – prosseguiu a empregada apoiando-se nos cotovelos.
Duas crianças atravessaram a rua aos
gritos. A borboleta recolheu precipitadamente a tromba e fugiu num voo
atarantado. Uma pétala desprendeu-se da corola e foi pousar na relva.
Outra pétala desprendeu-se em seguida e desenhando um giro breve, caiu
num tufo de violetas. Maria Camila estendeu as mãos até a corola da flor.
Não chegou a tocá-la. Recolheu as mãos e ficou olhando para as veias
intumescidas com a mesma expressão que olhara para a rosa.
-- Ela é conhecida do doutor?
-- Quem, Matilde?
-- Essa moça que vem tomar chá...
-- Trabalham juntos – disse Maria
Camila passando nervosamente a ponta do dedo sobre a rede de veias. – Ela está
fazendo um estágio no laboratório.
-- Estágio?
-- Sim, estágio.
-- A mulher ficou pensativa. Pôs-se a
coçar o braço.
-- E a senhora conhece ela?
-- Já vi de longe.
-- É bonita?
-- Não sei, Matilde, não sei.
-- Estágio – repetiu a empregada. –
Então é essa que às vezes telefona pra ele.
Alguém iniciou na vizinhança um
exercício de piano. O exercício era elementar e tocado sem vontade.
-- Deve ser- sussurrou Maria Camila
apanhando a pétala que caíra na relva Levou-a aos lábios que estavam lívidos. –
Deve ser.
-- Hoje cedo ela telefonou, não
perguntei quem era porque o doutor não quer mais que a gente pergunte. Mas
reconheci a voz, só podia ser ele.
-- São muito amigos. Os velhos, os mais
velhos gostam da companhia dos jovens – acrescentou a mulher dilacerando a
pétala entre os dedos. Fez um gesto brusco. – Esse menino era melhor no
violino, não era?
A empregada fungou, impaciente.
-- Nem no violino! A gente ficava com
dor de cabeça quando ele começava com aquela atormentação. Diz que a mãe cismou
que ele tem que tocar alguma coisa...
-- Quem foi que disse?
-- A Anita, que trabalha lá. Diz que a
mãe fica o dia inteiro atrás dele, dando castigo se ele não estuda. São
estrangeiros.
-- Maria Camila olhou furtivamente o
relógio. Abriu e fechou as mãos num movimento exasperado. Manteve-as
fechada.
-- Ele tocava melhor violino.
A mulher fez uma careta. E ficou
seguindo com um olhar gelado. Uma adolescente que passava na calçada. Franziu a
cara como se enfrentasse o sol.
-- Como é que ela se chama? Essa do
chá...
O menino interrompeu o exercício. O
Zunido da abelha voltou mais nítido, fechando o círculo em redor de um único
ponto. Maria Camila respirou com esforço.
-- Acho que estou gripada.
-- Gripada? – E a mulher apoiou o
queixo nas mãos. – A senhora está com os
olhos inchados. Quer que eu vá buscar uma aspirina?
-- Não, não é preciso – disse Maria
Camila movendo a cabeça num ritmo fatigado. Encarou a empregada: – Não vai
mesmo pregar esse botão? Não vai?
-- Mas se não sei dele...
-- Pegue um na minha caixa, já disse.
A mulher empertigou-se com solenidade.
Passou ainda a ponta do avental na janela, a fisionomia concentrada. Chegou a
abrir a boca. E enveredou para o interior da casa.
Maria Camila relaxou a posição tensa. Olhou
o relógio, sacudiu a cabeça e fechou com força os olhos cheios de lágrimas.
" Que é que eu faço agora?", murmurou inclinando-se para a
rosa. "Eu gostaria que você me dissesse o que é que eu devo fazer!
..." Apoiou a nuca no espaldar da cadeira. “Augusto, Augusto, me diga
depressa o que é que eu faço! Me diga! ...”
A janela abriu-se. A empregada estendeu
o braço num gesto digno. A voz saiu sombria.
-- Não achei botão igual. Posso pegar
este amarelo?
Maria Camila tirou do bolso do casaco o
estojo de pó.
Examinou-se ao espelho. Consertou as
sobrancelhas. Umedeceu com a ponta da língua os lábios ressequidos e fechou o
estojo. Ficou com ele apertado entre as mãos. Voltou-se para a janela.
-- Pregue esse mesmo.
A mulher vacilava, rodando o botão
entre os dedos.
-- É o mais parecido que achei.
-- Está bem, está bem – repetiu a outra
reabrindo o estojo. Passou a esponja em torno dos olhos. Examinando as mãos. –
Veja, Matilde, minhas mãos estão ficando da cor da tarde, tudo nesta hora vai
ficando rosado...
-- O céu parece brasa, que bonito!
A gente vai ficando rosada também –
disse atirando a cabeça para trás. Expôs a face à luz incendiada do crepúsculo.
E riu de repente: – Acho a vida tão maravilhosa!
-- Maravilhosa?
O menino parou de tocar. Maria Camila
ficou alerta, os olhos brilhantes, as narinas acesas. Olhou para o relógio.
Falou com energia
-- Assim que a moça chegar, sirva o chá
aqui mesmo, faça um chá bem forte. E traga três xícaras.
-- Mas é só a senhora e ela...
-- O doutor pode aparecer de surpresa,
é quase certo que ele apareça – acrescentou a mulher limpando do vestido os
pedaços da pétala dilacerada que ficara por entre as pregas da saia.
Levantou-se. Respirava ofegante. – Quero os guardanapos novos, não vá esquecer,
hein? Os novos.
Passos ressoaram na calçada. Quando
ficaram mais próximos, a empregada pôs-se na ponta do pés, tentando ver além do
muro da casa vizinha:
-- Deve
ser ela... É ela! – sussurrou excitadamente. – É ela!
Maria Camila levantou a cabeça. E
caminhou decidida em direção ao portão.
Lygia Fagundes Telles
Entendendo o conto:
01 – Dentro deste tipo
textual (conto) há que narrador?
a)
Narrador-personagem.
b)
Narrador-observador.
c)
Narrador-onisciente.
02 – Qual o cenário em que
se acontece a história?
Num jardim.
03 – Que fato provocou o
desenrolar dos acontecimentos descritos no conto?
A visita de uma jovem de dezoito anos,
convidada para um chá.
04 – Quantos personagens
participam da ação apresentada no texto? Quem são eles?
Maria Camila, Matilde, Augusto e a
Estagiária.
05 – Maria Camila observa a
borboleta e a flor e faz comentários com Matilde relacionando com sua vida. Por
quê?
A imagem da
borboleta que suga a flor com força, forma uma analogia com a situação que ela
está enfrentando.
O ato de sugar talvez provoque a morte
mais rápida da flor, pode ser comparada com a jovem estagiária que, para ela, é
a causada morte do amor entre ela e Augusto.
06 – Neste trecho: “[...] A
gente vai clareando à medida que envelhece mas as rosas vermelhas vão
escurecendo, veja, ela está quase preta. Pode-se observar a utilização de que
figura de linguagem?
Uma antítese.
07 – O nervosismo de Maria
Camila é traduzido em alguns gestos, principalmente relacionados às mãos. Cite
alguns trechos que comprove a afirmação.
“Suas mãos tremiam”; “As mãos fechadas”;
“Tentando dominar o tremor das mãos”; “Abriu e fechou as mãos num movimento
exasperado”.
08 – Em que passagem do
texto ocorre o clímax, ou seja, o momento de maior tensão da história?
Explique.
Quando ouvem
passos ressoarem na calçada e Matilde olha, vê que a estagiária chegou.
Maria Camila levanta a cabeça e caminha
em direção do portão.