Crônica: Preto no Branco
Luís Fernando Veríssimo
“Escrevo peças porque escrever
diálogos é a única maneira respeitável de você se contradizer.” Tom Stoppard
Um palco vazio. Entram dois homens, um
vestido de preto e o outro vestido de branco. Eles representam os dois lados do
Autor. Isso a plateia já sabe porque está escrito no programa. Pelo Autor. Ou
por um dos lados do Autor, já que o outro era contra. O outro lado do Autor
queria que o espectador deduzisse no transcorrer do diálogo que os dois autores
representam a mesma pessoa, porque, na sua opinião, dar muitas explicações para
a plateia subverte a relação de cumplicidade misturada com hostilidade que deve
existir entre palco e público, e nada destrói este clima mais depressa do que o
público descobrir que está entendendo tudo. Os dois lados do Autor discutiram
muito sobre isto e prevaleceu o lado que queria ser perfeitamente claro, mesmo
com o perigo de frustrar o público. Palco vazio. Dois homens, representando os
dois lados do Autor. Um todo de preto, o outro todo de branco.
Homem
de Branco – Preto.
Homem
de Preto – Branco.
Branco
– Por que não cinza?
Preto
– Vem você com essa absurda mania de conciliação. Essa volúpia pelo entendimento.
Essa tara pelo meio-termo!
Branco
– Senão fosse isso, nós não estaríamos aqui. Foi minha moderação que nos
manteve longe de brigas. Foi minha ponderação que nos preservou. Se eu fosse
atrás de você...
Preto
– Nós teríamos vivido! Pouco, mas com um brilho intenso. Teríamos dito tudo que
viesse à cabeça. Distinguido o pão do queijo com audácia. Posto pingos
destemidos em todos os “is”. Dado nome completo a todos os bois!
Branco
– Em vez disso, fomos civilizados. Isto é, contidos e cordatos.
Preto
– E temos tiques nervosos para provar.
Branco
– Você preferiria ter dito a piada que magoaria o amigo? A verdade que
destruiria o amor? O insulto que nos levaria ao Pronto-Socorro, setor de
traumatismo?
Preto
– Preferiria. Para poder dizer que não me calei. Para poder dizer “Eu disse!”
Branco
– Ainda bem que não é você quem manda em nós.
Preto
– Não, é você. Sempre fazemos o que você determina. Ou não fazemos. Não
dizemos. Não vivemos! Estou dentro de você, fazendo, dizendo e vivendo só em
pensamento. Se ao menos eu pudesse sair aos sábados...
Branco
– Para que, para nos matar? Pior, para nos envergonhar?
Preto
– Melhor se envergonhar pelo dito e o feito do que pelo não dito e não adiado.
Você sabe que cada soco que um homem não dá encurta a sua vida em 17 dias? E
cada vez que um homem pensa em sair dançando um bolero e se controla, seu
fígado aumenta? E cada...
Branco
– Bobagem. Ainda bem que eu sou verdadeiro nós.
Preto
– Não, eu sou o verdadeiro você.
Branco
– Você só é nós em pensamento. Você é minha abstração.
Preto
– Sou tudo o que em nós é autentico e não reprimido. O seja: você é minha
falsificação.
Branco
– Você não é uma pessoa, é uma impulsão.
Preto
– Você não é pessoa, é uma interrupção.
Branco
– Mas quem aparece sou eu.
Preto
– Então o que estou fazendo neste palco, e ainda por cima de malha justa?
Branco
– Você só está aqui como uma velha tradição teatral, o interlocutor. Um
artifício cênico, para o Autor não falar sozinho. “Escrever diálogos é a única maneira
respeitável de você se contradizer.” Tom Stoppard.
Preto
– Quer dizer que eu só entrei em cena para dizer...
Branco
– Branco. E eu...
Preto
– Preto. Por quê?
Branco
– Para mostrar à plateia que todo homem é a soma, ou a mescla, das duas
contradições. Que no fim o destino comum de todos, cremados ou não cremados,
não é ser branco ou preto, é ser cinza.
Preto
– Mostrar a quem?
Branco
– A pla... Onde está a plateia?!
Preto
– Foram todos embora.
Branco
– Será porque não entenderam o diálogo?
Preto
– Acho que foi porque entenderam.
Luiz Fernando
Verissimo. Preto e Branco. Publicado originalmente no jornal
O Estado de São Paulo
– Caderno 2, em 25/11/2001.
Entendendo a crônica:
01 – Releia a citação de Tom
Stoppard, utilizada como epígrafe por Veríssimo, e responda: que
características do gênero dramático motivam aquele autor a escrever peças de
teatro? Explique.
As caraterísticas
são o diálogo – forma básica da
linguagem dramática – e o conflito.
Segundo Stoppard, o diálogo teatral é uma maneira de o autor se contradizer, ou
seja, de discutir e conflitar consigo mesmo.
02 – Por que o texto “Preto
no Branco” pode ser considerado uma paródia
de uma peça teatral?
O texto foi
publicado como uma crônica, para os leitores de um jornal, e Veríssimo não
pretende que ela seja representada em um palco, como se fosse teatro. É,
portanto, como crônica, um texto narrativo. Suas características, porém, são as
do gênero dramático: atores representando personagens no palco, conflito,
diálogo, discurso direto, sem intermediação ou interferência de narrador. Essa
imitação do teatro tem uma intenção crítica e até zombeteira.
03 – Uma peça de teatro
normalmente não tem narrador. Seu texto é construído essencialmente de
diálogos. O autor, no entanto, entremeia o texto de rubricas – orientações e
explicações dirigidas aos encenadores (diretor, atores, cenógrafos...). Essas
rubricas têm características narrativas e descritivas. Identifique, na crônica,
o parágrafo que parodia a rubrica de um texto teatral.
O primeiro
parágrafo.
04 – A rubrica atribui um
significado alegórico às personagens, que representam os dois lados ou
personalidades conflitantes do autor.
a)
Que características do autor são simbolizadas
pela cor branca, atribuída à primeira personagem?
A cor branca simboliza a clareza, a moderação, a ponderação, o
espírito conciliador, cordato, propenso ao entendimento.
b)
E pela cor negra, atribuída à segunda
personagem?
A cor negra simboliza a sinceridade, a autenticidade, o respeito à
verdade, a audácia, a coragem, a emoção, o impulso.