Crônica: O
sósia
Luís
Fernando Veríssimo
Da primeira
vez que lhe falaram ele nem ligou.
-- Como é,
não cumprimenta mais os amigos?
-- Por quê?
-- Anteontem. Você passou por mim, me
olhou e não me cumprimentou.
-- Eu?!
-- Sim,
senhor. Na Rua da Praia.
-- Não era eu. Há duas semanas que não
passo pela Rua da Praia.
-- Então era um sósia. Era você sem
tirar nem pôr.
Poucos dias depois:
-- Aí, hein? Tomando seu sorvetinho.
-- Eu?
-- Não era você? Ontem, quatro da
tarde? Na Rua 7?
-- O que eu ia estar fazendo ontem, às
quatro da tarde, na 7 de setembro?
-- Tomando um sorvetinho.
-- Estava no meu escritório, rapaz.
Dando duro.
-- Era você sem tirar nem pôr!
-- A terceira vez foi pouco antes do
Carnaval. Telefonou um amigo:
-- Eu te fiz alguma coisa?
-- Por quê?
-- Hoje. Eu passei por você de carro.
Chamei. Buzinei. Você nem olhou e nem...
-- Não era eu.
-- Mas então...
-- Anda um cara por aí com a minha
cara. É a terceira vez que me confundem.
-- Olha. É você sem tirar nem...
-- Eu sei.
Foi então que teve a premonição, como
um frio na barriga. Tinha planejado passar o Carnaval na cidade, aproveitando a
folga para pôr algumas coisas em ordem no escritório. Mas foi para a praia.
Assustou a mulher. “Que foi que houve?” “Nada. Me deu saudades.” Passou os
quatro dias de Carnaval colado na mulher. Cuidando para não sair da vista dela
nem um minuto. E aconteceu o que ele tinha previsto. Na quarta-feira, no
noticiário sobre o Carnaval nas boates, lá estava ele – ou o seu sósia –
agarrado com uma morena que em alguma fase da sua vida alegre já fora um moreno.
Era ele sem tirar nem pôr.
Os amigos comentaram:
-- Aí, hein?
-- A Dalinda é testemunha. Não sai do
lado dela nem um minuto.
-- É – confirmava a Dalinda. – Ele é
inocente.
Mas não parecia muito convencida.
Sozinhos, ela olhava a fotografia do formal e sacudia a cabeça. Ele protestava:
-- O que é isso. Dá? Eu não passei todo
o Carnaval na praia ao seu lado? Como é que eu podia estar em dois lugares ao
mesmo tempo?
-- Aí é que está. Se você não tivesse aparecido
na praia de surpresa e feito questão de não sair do meu lado um só minuto ia
ter certeza que não era você na foto. Agora, não sei não.
-- Mas Dalinda...
-- Não sei não...
Luís
Fernando Verissimo. O sósia. O suicida e o computador.
Porto Alegre: L&PM, 2000.
Entendendo a crônica:
01 – Releia o trecho:
“[...]Telefonou
um amigo:
-- Eu te fiz alguma coisa?”
Não é necessário reler o que vem antes
desse trecho para entender a pergunta do amigo. Explique por que e o que o
amigo quis dizer.
Porque os
parágrafos anteriores mostram que a situação do protagonista se repete: o amigo
queria saber por que não tinha sido cumprimentado.
02 – “-- Olha. É você sem tirar nem...”. As reticências indicam a
interrupção da fala do amigo. Complete essa fala com o único verbo possível no
contexto.
Cabe apenas o
verbo pôr para completar a
expressão “sem tirar nem pôr”. A expressão aparece anteriormente duas vezes.
03 – “Foi então que teve a
premonição, como um frio na barriga”.
a)
O que a personagem previa?
Que seu sósia pudesse aparecer em algum noticiário sobre o Carnaval
e que a mulher desconfiasse dele.
b)
O homem previu um acontecimento bom ou ruim?
Justifique sua resposta.
Ruim, pois ele sentiu um frio na barriga.
c)
Para não contrariar sua premonição, o
protagonista teve de abrir mão de um projeto. Qual?
Ele pretendia aproveitar os dias do Carnaval para colocar algumas
coisas em ordem no seu escritório.
04 – Como você completaria a
última fala da personagem na penúltima linha do texto?
Resposta pessoal do aluno.
05 – Apesar das evidências,
a mulher continuou desconfiada e desenvolveu um raciocínio que o marido não
esperava. Releia o parágrafo que começa na linha 52 e explique esse raciocínio.
O
fato de o marido não ter desgrudado dela fez Dalinda supor que ele estivesse
forçando um comportamento com o objetivo de disfarçar alguma falta cometida.
06 – O texto é quase todo
escrito em forma de diálogo. Algumas duplas de alunos vão fazer uma leitura
dramatizada do trecho que vai da linha 2 até 9.
a)
Agora, a classe comenta: que recurso da
língua falada dá vida ao diálogo?
A entonação.
b)
Como a língua escrita procura indicar esse
recurso? Dê exemplo que se encontra no próprio trecho dramatizado.
A língua escrita indica esse recurso por meio da pontuação. No
trecho, o sinal de interrogação e o de exclamação.
07 – O autor emprega
linguagem coloquial no texto. Reescreva no caderno as frases citadas a seguir,
substituindo o que estiver destacado por termos ou expressões da língua formal:
a)
“Da primeira vez que lhe falaram ele nem ligou.”
Ele nem se importou/nem se preocupou/nem deu importância.
b)
“--- Estava no meu escritório, rapaz. Dando duro.”
Trabalhando com afinco.
c)
“--- Aí,
hein?”
Divertindo-se, não?
d)
“--- Anda um cara por aí com a minha
cara.”
Um indivíduo/uma pessoa; muito parecido(a) comigo/que é,
eu(minha)sósia.
08 – “Como é que eu podia estar em dois lugares ao mesmo tempo?” Há uma
palavra em língua portuguesa que define essa propriedade de estar em vários
lugares ao mesmo tempo. Você a conhece? Qual é?
Ubiquidade, sinônimo de onipresença.
09 – “—Tomando um sorvetinho”. O sufixo -inho, nesse contexto, indica tamanho ou ironia?
Indica ironia.