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sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

CONTO: O PLANETA DO PEQUENO PRÍNCIPE PRETO - (FRAG.ADAPT) - RODRIGO FRANÇA - COM GABARITO

 Conto: O PLANETA DO PEQUENO PRÍNCIPE PRETO

        Fragmento adaptado.     

        Rodrigo França

        Em um minúsculo planeta mora um menino preto com uma árvore Baobá.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfMxiCNvwZC77N4Z59DbHC-PTKuG_txo8cDnmkQdXLq2_ejnpeGdBIMFNuWsHhLX-waFlGs1WfeIkQuD8FBIrAPhU6vT5BpqdyUzteAujSaEW-Ys9r6nsLATRhc8weT_p5n9-Nn7CcZTLrWXHSwmB2UMYQKqkcIT-UKZrG1rlpjwbfX2nD2aH98uFrQqc/s320/BAOB%C3%81.jpg


        O menino gosta muito de regar a Baobá, que é sua única companheira.

        — Vocês só estão me ouvindo, mas não conseguem me ver. Estou atrás do tronco de uma árvore, da Baobá. É uma árvore linda, imensa, gigante. Estou de braços abertos tentando envolvê-la, mas não consigo. Precisaria de duas, três, quatro... De muita gente. Abraçar a Baobá é uma troca de força, de energia. Sabe quando a bateria está fraca? Então, eu venho aqui e recarrego.

        Ah, já ia esquecendo: eu sou o Príncipe deste planeta. A Baobá disse que sou o Pequeno Príncipe. Ela é a Grande Princesa.

        Este planeta é tão pequeno que só cabemos nós dois aqui. Em breve seremos três. Comparado a um planeta chamado Terra, aqui é tão pequeno que parece um grão de areia. Existem outros planetas espalhados por esse infinito Universo. Conheço alguns, mas o meu sonho é conhecer todos, um a um. Saber quem mora nesses lugares e o que fazem. Enquanto faço isso, deixo a semente da Baobá, porque quero espalhar por aí o que tenho de mais precioso: ela e o UBUNTU.

        Foi uma promessa que fiz para a Baobá. Mas, para sair daqui preciso aproveitar as ventanias, que só aparecem de vez em quando. Então, quando elas aparecem, eu saio voando, voando.

        Eu não sei quem veio primeiro. O planeta ou a Baobá. Ela é uma árvore sagrada, milenar. Está há tanto tempo aqui…

        A Baobá gosta do solo seco, mas eu rego todos os dias com água morna. Não gosto de ver ninguém com sede. As amizades também devem ser regadas todos os dias. Nem com muita água, nem com pouca.

        Deixe-me contar um segredo: uma vez por ano, numa única noite, nasce uma solitária flor de cabeça para baixo, e a Baobá explode de vida e alegria.

        A flor dura poucas horas e fede igual a carniça, mas é linda demais. Eu acho engraçado, porque a Baobá é ao contrário. Os galhos são secos para cima, parecem raízes. As folhas só brotam quando chove. Parece até que caiu do céu, de ponta-cabeça.

        Devo tanto à Baobá, sabe? Sabedoria é comida que nos alimenta.

        Existe uma coisa chamada ancestralidade. Antes dessa árvore, existiu outra árvore, antes existiu outra árvore, e mais outra, outra e outra… Antes de mim vieram os meus pais, os meus avós, os meus bisavós, os meus tataravós, os meus ta-ta-taravós… Todos eram reis, rainhas.

        Como pode existir o hoje, o agora, se você não conhece o seu passado, a sua origem, as suas características? É assim que a gente conhece a nossa ancestralidade. Isso é sabedoria e ancestralidade

        A minha pele é da cor desse solo. Quando eu rego fica mais escuro, cor de chocolate, de café quentinho. As cores são diferentes, iguais aos lápis de cor. Tem gente que fala que existe um lápis “cor de pele”. Como assim? A pele pode ter tantos tons…

        Eu sou negro! Um pouco mais claro que alguns negros e um pouco mais escuro que outros. É como a cor verde… Tem o verde-escuro e o verde-claro, mas nenhum dos dois deixa de ser verde. Eu gosto muito da minha cor e dos meus traços.

        Minha boca é grande e carnuda.

        Olhe o meu sorriso, como é simpático e bonito!

        Eu tenho nariz de batata. Eu adoro batata e adoro meu nariz.

        Meus olhos são escuros como a noite. Também existem olhos claros, mas gosto dos meus olhos como eles são. Porque são meus.

        Meu cabelo não é ruim. Ele não fala mal de ninguém. Antes eu cortava meu cabelo bem baixinho, mas agora estou deixando crescer. Quero que fique para cima igual aos galhos da Baobá. Vai crescer, crescer, crescer… Vai ficar forte, brilhoso, volumoso. Olhe para o céu! Ele será o limite.

Rodrigo França. O Pequeno Príncipe Preto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020.

Fonte: Coleção Desafio Língua Portuguesa – 5° ano – Anos Iniciais do Ensino Fundamental – Roberta Vaiano – 1ª edição – São Paulo, 2021 – Moderna – p. MP052 – Mpo054.

Entendendo o conto:

01 – Quem é o narrador da história?

a)   A Baobá.

b)   A Grande Princesa.

c)   O Pequeno Príncipe.

02 – Quem faz companhia ao menino no planeta em que ele habita?

a)   O pai e a mãe do príncipe.

b)   Uma árvore grande e sagrada.

c)   Vários reis e rainhas, avós do príncipe.

03 – É possível perceber que a Baobá é, de fato, enorme porque:

a)   O Pequeno Príncipe não consegue envolver a árvore com os braços abertos.

b)   Apenas uma pessoa conseguiria envolver a árvore com os braços abertos.

c)   Baobás costumam ser árvores não muito grandes.

04 – A árvore chama o menino de Pequeno Príncipe porque:

a)   Esse é o apelido que outras árvores deram ao menino.

b)   Ele é o único príncipe que já existiu no planeta.

c)   Ele é uma criança de quem ela gosta muito.

05 – Quem veio primeiro: a árvore ou o planeta?

a)   O menino não sabe se quem veio primeiro foi a árvore ou o planeta.

b)   O menino tem uma certeza de que o planeta veio primeiro.

c)   O menino acha que foi a árvore, pois ela está há muito tempo no planeta.

06 – Como é a Baobá e o Pequeno Príncipe? Reconte como o menino descreve a si mesmo e a árvore.

      A Baobá é uma árvore linda e imensa, gosta de solo seco, é uma árvore sagrada, milenar. O menino é negro, tem boca grande e carnuda, sorriso simpático e bonito, nariz de batata, olhos escuros e cabelos que “não é ruim”.

07 – Releia o trecho em que o menino fala de amizade.

        “A Baobá gosta do solo seco, mas eu rego todos os dias com água morna. Não gosto de ver ninguém com sede. As amizades também devem ser regadas todos os dias. [...]”. Como o menino alimenta a amizade que tem com a árvore Baobá?

      Ele a rega todos os dias com água morna para demonstrar seu afeto.

08 – No trecho: “Meu cabelo não é ruim. Ele não fala mal de ninguém.”, podemos dizer que a segunda afirmação é inusitada porque faz uma crítica. O que o menino está criticando?

      O menino está criticando o modo preconceituoso como muitas se referem ao cabelo das pessoas negras, dizendo que é “ruim” por ser crespo ou encaracolado.

09 – Releia o trecho abaixo: “A Baobá gosta do solo seco, mas eu rego todos os dias com água morna”. Reescreva esse trecho, substituindo as palavras destacadas por sinônimos.

      A Baobá gosta do solo árido/desértico, contudo eu rego todos os dias com água morna.

10 – Releia o trecho abaixo: “A minha pele é da cor desse solo. Quando eu rego fica mais escuro, cor de chocolate, de café quentinho. As cores são diferentes, iguais aos lápis de cor. Tem gente que fala que existe um lápis “cor de pele”. Como assim?

a)   Em que situações costumamos empregar o verbo regar?

Usa-se o verbo regar ao falar da ação de molhar ou umedecer as plantas e a terra.

b)   Por que o menino não concorda com a existência de um lápis “cor de pele”?

Porque ele sabe que há muitos tons de pele, e o chamado lápis “cor de pele” refere-se a apenas um tom.

 

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

CONTO: O BEIJO DA PALAVRINHA - MIA COUTO - COM GABARITO

 CONTO: O BEIJO DA PALAVRINHA

                Mia Couto

Era uma vez uma menina que nunca vira o mar. Chamava-se Maria Poeirinha. Ela e a sua família eram pobres, viviam numa aldeia tão interior que acreditavam que o rio que ali passava não tinha nem fim nem foz.

 

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgfSFA-1IuQ65Ifba5bopuEL30xtHzRqQsWL00tnk_cpB_mLHzwHOH0tJasSPbdvG-YazzlCj6F5t098CGTB_0kbqAWUDDnfwK_d0CK5CCxzHMEiPCQW0naOrk_p28fqQskWFIwr_7yzkjzfSGDpcq1hovVFvQ3PmFQTHGheFjDDWCV6Ga1033r5sfR3A8/s354/mar.jpg

       Poeirinha só ganhara um irmão, o Zeca Zonzo, que era desprovido de juízo. Cabeça sempre no ar, as ideias lhe voavam como balões em final de festa. Na miséria em que viviam, nada destoava. Até Poeirinha tinha sonhos pequenos, mais de areia do que castelos.

       Às vezes sonhava que ela se convertia em rio e seguia com passo lento, como a princesa de um distante livro, arrastando um manto feito de remoinhos, remendos e retalhos. Mas depressa ela saía do sonho, pois seus pés descalços escaldavam na areia quente. E o rio secava, engolido pelo chão.

       Um certo dia, chegou à aldeia o Tio Jaime Litorânio, que achou grave que os seus familiares nunca tivessem conhecido os azuis do mar.

       Que a ele o mar lhe havia aberto a porta para o infinito. Podia continuar pobre mas havia, do outro lado do horizonte, uma luz que fazia a espera valer a pena. Deste lado do mundo, faltava essa luz que nasce não do Sol, mas das águas profundas.

       A fome, a solidão, a palermice do Zeca, tudo isso o Tio atribuía a uma única carência: a falta de maresia. Há coisas que se podem fazer pela metade, mas enfrentar o mar pede a nossa alma toda inteira. Era o que dizia Jaime.

      - Quem nunca viu o mar não sabe o que é chorar!

       Certa vez, a menina adoeceu gravemente. Num instante, ela ficou vizinha da morte. O Tio não teve dúvida: teriam que a levar à costa.

      Para que se curasse, disse ele. Para que ela renascesse tomando conta daquelas praias de areia e onda. E descobrisse outras praias dentro dela.

       - Mas o mar cura assim tão de verdade?

       - Vocês não entendem? - respondia ele. - Não há tempo a perder. Metam a menina no barco que a corrente a leva em salvadora viagem.

       Contudo, a menina estava tão fraca que a viagem se tornou impossível. Todos se aproximavam da cabeceira e ali ficavam sem saber o que fazer, sem saber o que dizer. A mãe pegou nas mãos da menina e entoou as velhas melodias de embalar. Em vão. A menina apenas ganhava palidez e o seu respirar era o de um fatigado passarinho. Já se preparavam as finais despedidas quando o irmão Zeca Zonzo trouxe um papel e uma caneta.

       - Vou-lhe mostrar o mar, maninha.

      Todos pensaram que ele iria desenhar o oceano. Que iria azular o papel e no meio da cor iria pintar uns peixes. E o Sol em cima, como vela em bolo de aniversário. Mas não. Zonzo apenas rabiscou com letra gorda a palavra

                                             MAR

      Apenas isso: a palavra inteira e por extenso.

       O menino ficou olhando para a folha parecendo que não entendia o que ele mesmo escrevera.  Antes mesmo que ele dissesse alguma coisa, a irmã murmurou, em débil suspiro:

       -Não vale a pena, mano Zonzo. Eu já não distingo letra, a luz ficou cansada que já não se consegue levantar.

       -Não importa, Poeirinha. Eu lhe conduzo o dedo por cima do meu.

       Os pais chamaram o moço à razão, ele que poupasse a irmã daquela tontice e que a deixasse apenas respirar. Mas Zeca Zonzo fingiu não escutar. Ele tomou na sua mão os dedos magritos de Maria Poeirinha e os guiou por cima dos traços que desenhara.

       -Vês esta letra, Poeirinha?

      -Estou tocando sombras, só sombras, só.

      Zeca Zonzo levantou os dedos da irmã e soprou neles como se corrigisse algum defeito e os ensinasse a decifrar a lisa brancura do papel.

      -Experimente outra vez, mana. Com toda a atenção. Agora, já está sentindo?

     -Sim. O meu dedo já está a espreitar.

     -E que letra é?

      E sorriram os dois, perante o espanto dos presentes.  Como se descobrissem algo que ninguém mais sabia. E não havia motivo para tanto espanto. Pois a letra m é feita de quê?

      É feita de vagas, líquidas linhas que sobem e descem.

      E Poeirinha passou o dedo a contornar as concavidades da letrinha.

     -É isso, manito. Essa letra é feita por ondas. Eu já as vi no rio.

     -E essa outra letrinha, essa que vem a seguir?

     Essa a seguir é um  a

     É uma ave, uma gaivota pousada nela própria, enrodilhada perante a brisa fria.

      Em volta todos se haviam calado. Os dois em coro decidiram não tocar mais na letra para não espantar o pássaro que havia nela.

     -E a seguinte letrinha?

     E os dedos da menina magoaram-se no r duro, rugoso, com suas ásperas arestas.

     O Tio Jaime Litorâneo, lágrima espreitando nos olhos, disse:

     - Calem-se todos: já se escuta o marulhar!

      Então do leito de Maria Poeirinha se ergueu a gaivota branca, como se fosse um lençol agitado pelo vento. Era Maria Poeira que se erguia? era um simples remoinho de areia branca?

Ou era ela seguindo no rio, debaixo do manto feito de remoinhos, remendos e retalhos?

      Ainda hoje, tantos anos passados, Zeca Zonzo, apontando o rosto da sua irmãzinha na fotografia, clama e reclama.

          -Eis minha mana poeirinha que foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha.

Entendendo o texto

01. Qual o nome do protagonista do conto?

a) Maria Litorânio

b) Maria Poeirinha

c) Zeca Zonzo

d) Tio Jaime.

    02. O que acreditou a família de Maria Poeirinha sobre o rio que passava pela aldeia?

         a) Que era um rio mágico

         b) Que não tinha fim nem foz

         c) Que era o rio da vida

         d) Que era um rio poluído

  03. Quem acreditou que a falta de maresia era causa da miséria da família de Maria Poeirinha?

       a) A mãe do protagonista

       b) O Tio Jaime Litorânio

       c) Zeca Zonzo

       d) O pai da protagonista

   04. Como Zeca Zonzo tentou mostrar o mar para Maria Poeirinha quando ela estava doente?

       a) Desenhando um oceano no papel

       b) Levando-a até a costa

       c) Cantando canções sobre o mar

       d) Escrevendo a palavra "MAR" no papel

   05. O que Zeca Zonzo fez para ajudar a irmã a sentir o mar enquanto ela estava doente?

       a) Cantava canções de embalar

       b) Soprava nos dedos dela

       c) Desenhava peixes

       d) Contava histórias sobre o mar

     06. Como Maria Poeirinha falou a letra "m" que Zeca Zonzo escreveu no papel?

        a) Feita de vagas, linhas líquidas que sobem e descem

        b) Uma ave, uma gaivota pousada nela própria

        c) Rugosa, com arestas ásperas

       d) Uma letra que vem a seguir

     07. Qual a letra que Maria Poeirinha comparou a uma ave, uma gaivota pousada nela própria?

         a) m

         b) a

         c) r

        d) d

    08. O que o Tio Jaime Litorânio afirmou ao ouvir a letra "r" sendo tocada por Maria Poeirinha?

         a) "Calem-se todos: já se escuta o marulhar!"

         b) "Essa letra é feita por ondas. Eu já as vi no rio."

         c) "Você não entende? Não há tempo a perder."

         d) "O mar cura assim tão de verdade?"

     09. Como Maria Poeirinha se elevou o leito no final do conto?

          a) Como uma gaivota branca

          b) Como um remoinho de areia branca

          c) Como uma onda gigante

         d) Como um lençol agitado pelo vento

   10. O que Zeca Zonzo afirma sobre a irmã no final do conto?

        a) Que ela foi beijada pelo sol

        b) Que ela se afogou no rio

        c) Que ela foi beijada pelo mar e se afogou numa palavrinha

        d) Que ela nunca viu o mar

 

 

 

 

 

CONTO: A CANOA FURADA - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 CONTO: A CANOA FURADA

                 Graciliano Ramos

Mestre Gaudêncio curandeiro, homem sabido, explicou uma noite aos amigos que a terra se move, é redonda e fica longe do sol umas cem léguas. — Já me disseram isso, murmurou Cesária.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhr4mqqHx1EwpNxgjQLyXZEaYTp_bokDnzrhIHW-Gs1OODPpCe92r4YmAJuFJQUo_pMiTX9namtG3fhRFdHvIMY75aqvoVzMtEVMlGXLTAX_VQ7Zu1CxRpeCxvMHZpYHvrpBXyX9mrfCAeg7N9iuvEdNgNjU47KlmVBI8wWOBVH6VgcGYBAPIqS6HReqqs/s1600/canoa_furada.jpg


Das Dores arregalou os olhos, seu Libório espichou o beiço e deu um assobio de admiração. O cego preto Firmino achou a distância exagerada e sorriu, incrédulo:

– Conversa, mestre Gaudêncio. Quem mediu? Das telhas para cima ninguém vai. Isso é emboança de livro, papel aguenta muita lorota. Cem léguas? Não embarco em canoa furada não, mestre Gaudêncio.

– Ora, seu Firmino! exclamou Alexandre. Para que diz isso? Embarca. Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada. Tudo neste mundo é canoa furada, seu Firmino. E a gente embarca. Nascemos para embarcar. Um dia arreamos, entregamos o couro às varas e, como temos religião, vamos para o céu, que é talvez a última canoa, Deus me perdoe. Embarca, seu Firmino.

Levantou-se, foi acender o cigarro ao candeeiro de folha, voltou à rede.

– Embarca. E por falar em canoa furada, vou contar aos senhores o que me aconteceu numa, há vinte anos. Canoa verdadeira, seu Firmino, de pau, não dessas que vossemecê puxou para contrariar mestre Gaudêncio. Ora muito bem. Numa das minhas viagens rolei uns meses por Macururé, levando boiadas para a Bahia. Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa no alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária. Demorei-me na capital uma semana. Aí fiz tenção de vender a fazenda e os cacarecos, mudar-me, dar boa vida à pobre mulher, que trabalhava no pesado, ir com ela aos teatros e rodar nos bondes. Refletindo, afastei do pensamento essas bobagens. Matuto, quando sai do mato, perde o jeito. Quem é do chão não se trepa. Ninguém me conhecia na cidade cheia como um ovo. A propósito, sabem que um ovo custa lá cinco tostões? Calculem. Não me aprumo nessas ruas grandes, onde gente da nossa marca dá topadas no calçamento liso e os homens passam uns pelos outros calados, como se não se enxergassem. Nunca vi tanta falta de educação. Vossemecê mora numa casa dois ou três anos e os vizinhos nem sabem o seu nome. Nos meus pastos a coisa era diferente. Lá eu tinha prestígio: votava com o governo, hospedava o intendente, não pagava imposto e tirava presos da cadeia, no júri. Vivia de grande. E quando aparecia na feira, o cavalo em pisada baixa, riscando nas portas, os arreios de prata alumiando, o comandante do destacamento levava a mão ao boné e me perguntava pela família. Tenho tocado nisso algumas vezes, e os amigos vão pensar que estou aqui arrotando importância. É engano, detesto pabulagem. Na capital só viam em mim um sujeito que vendia gado. Mas se quiserem saber a minha fama no sertão, deem um salto à ribeira do Navio e falem no major Alexandre. Cinquenta léguas em redor, de vante a ré, todo o bichinho dará notícia das minhas estrepolias. A história da onça, a do bode, o estribo de prata, este olho torto, que ficou muitas horas espetado num espinho, roído pelas formigas, circulam como dinheiro de cobre, tudo exagerado. É o que me aborrece, não gosto de exageros. Quero que digam só o que eu fiz. Esse negócio da canoa entrou num folheto e hoje se canta na viola, mas com tantos acréscimos que, francamente, não me responsabilizo pelo que escreveram. Exatamente o que sucedeu com o marquesão. Lembram-se? Dr. Silva pegou o marquesão de jaqueira e fez dele o que entendeu, encheu a casa de cortiços. Não era o meu marquesão, que só deu quatro pés de jaca. O caso da canoa também foi muito aumentado. É bom prevenir. Se vossemecês ouvirem falar nele em cantoria, fiquem sabendo que as nove-horas são astúcias do poeta. O acontecido foi coisa muito curta, que eu podia embrulhar num instante. E se converso demais, é porque a gente precisa matar tempo, não sapecar tudo logo de uma vez. Se não fosse assim, a história perdia a graça. Por isso espichei diante dos amigos a cidade grande, os teatros, os bondes, os ovos e a roupa nova, o corte de pano fino e o frasco de cheiro que ofereci a Cesária. Ela vestiu o pano fino e botou o frasco de cheiro no lenço, mas isto não adianta. Sem cheiro e sem pano, a história da canoa seria a mesma, um pouco mais encolhida. Bem, como disse aos amigos, demorei na Bahia, com desejo de arranjar-me por lá. Quando vi que a intenção era besteira, decidi voltar para casa, amansar brabo, arrematar caixas de segredo em leilão e animar o cordão azul e o cordão vermelho, no pastoril, que foi para isto que nasci. Sim senhores. Selei o cavalo e atirei-me para o norte. Caminhei, caminhei, cheguei ao S. Francisco. Seu Firmino andou no S. Francisco? Não andou. É o maior rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento. Quer dizer que, se em vez de correr por cima da terra, ele corresse para os ares, apagava o sol, não é verdade, mestre Gaudêncio? Nunca vi tanta água junta, meus amigos. É um mar: engole o Ipanema em tempo de cheia e pede mais. Está sempre com sede. Não há rio com semelhante largura. Vossemecês pisam na beira dele, olham para a outra banda, avistam um boi e pensam que é um cabrito. Por aí podem imaginar aquele despotismo. Pois eu ia morrendo afogado no S. Francisco, vinte anos atrás. Afogado não digo que morresse, porque enfim dou umas braçadas, mas, se não me afogasse, era certo estrepar-me no dente da piranha, o bicho mais infeliz que Deus fabricou. Já viram piranha? Se não viram, perdem pouco. É uma criatura que não tem serventia e morde como cachorro doido. Onde há sangue aparece um magote delas. Entra um vivente na água e em cinco minutos deixa lá o esqueleto. Percebem? Topei o S. Francisco empanzinado, soprando. Tinha lambido as plantações de arroz, comido as ribanceiras, e a escuma subia, ia cobrindo as catingueiras e as baraúnas. Viajei dois dias para as cabeceiras, procurando passagem. E, ali pelas alturas de Propriá, vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas. — “Seu moço, perguntei ao remador, essa gangorra é segura?” E o homem respondeu, de cara enferrujada:

– “Segura ela é. Mas garantir que chegue ao outro lado não garanto. Se tem coragem de se arriscar, entre para dentro, que ainda cabe um.” Fiquei embuchado, com uma resposta atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição. Que, para usar de franqueza, o que faço direito é correr boi no campo. Mergulhar e brigar com peixe não é ocupação de gente. Desarreei o animal, amarrei o cabresto na popa da canoa, arrumei os picuás e embarquei. O cavalo nadou, três mulheres velhas puxaram os rosários e navegamos em paz até o meio do rio. Aí, quando mal nos precatávamos, o diabo do cocho se furou e em poucos minutos os meus troços estavam boiando. Foi um deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça, numa latomia, numa choradeira dos pecados.

— “Então, seu mestre, perguntei ao canoeiro, o senhor não disse que esta geringonça era segura?” E o desgraçado respondeu: “Segura ela era. Mas, como o senhor está vendo, agora não é.”

— “Que é que vamos fazer?” gritei desadorado.

— “Sei lá, disse o homem. Quem tiver muque puxe por ele e veja se alcança terra, o que acho difícil.” A minha vontade foi dar uns tabefes no sem-vergonha, mas não havia tempo, os amigos veem que não havia tempo.

— “Está bem, tornei. Nós ajustaremos contas depois. Se escaparmos, será na banda alagoana. Se formos para o fundo, no céu ou no inferno a gente se encontra e você me contará isso direitinho, seu filho de uma égua.” Acocorei-me e pus-me a esgotar aquela miséria com o chapéu. Os viajantes machos fizeram o mesmo e as mulheres dos rosários, chamadas à ordem, agarraram cuias e caíram no trabalho. Tempo perdido. Gastávamos forças e o traste cada vez mais se enchia. Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma ideia, a ideia mais feliz que Deus me deu. Lembrei-me de que tinha no bolso da carona um formão e um martelo, comprados para o serviço da fazenda. Muito bem. Veio-me a ideia, dei um salto, fui à carona, peguei o formão e o martelo, fiz um rombo no casco da canoa. Os companheiros me olhavam espantados, julgando talvez que eu estivesse doido. Mas o meu juízo funcionava perfeitamente. Imaginam o que sucedeu? A embarcação se esvaziou em poucos minutos, continuou a viagem e chegou sem novidade a Porto-Real-do-Colégio. Natural. A água entrava por um buraco e saía por outro. Compreenderam? Uma coisa muito simples, mas se eu não tivesse pensado nisso, alguns pais de família e três devotas teriam acabado no bucho da piranha. Desembarcamos na terra alagoana. Aí chamei de parte o canoeiro, sem raiva, e dei-lhe meia dúzia de trompaços, que o prometido é devido. Ele se defendeu (era um tipo de sangue no olho) e propôs camaradagem:

— “Seu Alexandre, vamos deixar de besteira. O senhor é um homem.” Ficamos amigos, fomos para a bodega e passamos uma noite na prosa, bebendo cachaça.

Entendendo o texto

01. No trecho “Todos nós embarcamos, é da natureza do homem embarcar em canoa furada”, Alexandre sugere que:

a.   todo mundo já andou em canoa furada.

b.   todo mundo já viajou em canoa.

c.   todo mundo já ajudou as pessoas.

d.   todo mundo já foi enganado por alguém.

02. Ao tentar evitar que a canoa afundasse, Alexandre demonstrou ser:

a.   apático e egoísta.

b.   esperto e rápido.

c.   egoísta e vagaroso.

d.   vagaroso e apático.

03. No trecho “Foi um deus nos acuda: os homens perderam a fala, as mulheres soltaram os rosários e botaram as mãos na cabeça”, é possível inferir que as pessoas estavam:

a.   tranquilas.

b.   desesperadas.

c.   irritadas.

d.   felizes.

04.  No trecho “Já andaram por essas bandas? Tenho aquilo de cor e salteado. Ganhei uns cobres, mandei fazer roupa de alfaiate, comprei um corte de pano fino e um frasco de cheiro para Cesária”, um termo que é próprio da linguagem informal é:

a.   bandas.

b.   alfaiate.

c.   corte.

d.   frasco.

05. Uma das finalidades do causo lido é:

a.   narrar uma história de origem oral.

b.   relatar com veracidade os fatos.

c.   argumentar sobre os perigos das canoas.

d.   instruir sobre como usar as canoas.

06. Na história contada por Alexandre, o conflito, ou seja, o momento de tensão da narrativa, é marcado:

a.   pelo furo na canoa, que apavorou as pessoas.

b.   pelo conserto do furo na canoa, que tranquilizou as pessoas.

c.   pela chegada da canoa em terras alagoanas.

d.   pela partida da canoa de terras alagoanas.

07. O clímax da história contada por Alexandre, ou seja, o momento de maior tensão na narrativa, é quando o personagem:

a.   tampa o buraco da canoa.

b.   faz outro buraco da canoa.

c.   vira a canoa.

d.   resgata a canoa.

08. No desfecho da história contada por Alexandre, todos que estão na canoa:

a.   caem na água.

b.   têm medo de água.

c.   embarcam com medo.

d.   desembarcam com segurança.

09. No trecho “Desanimei, ia entregar os pontos quando me veio de repente uma ideia [...]”, a expressão destacada indica relação de sentido de:

a.   causa.

b.   condição.

c.   tempo.

d.   finalidade.

10. No trecho “Selei o cavalo e atirei-me para o norte” a expressão liga duas orações e estabelece entre elas relação de sentido de:

a.   adição.

b.   oposição.

c.   explicação.

d.   conclusão.

11.  No trecho “Fiquei embuchado, com uma resposta atravessada na goela, pois acho desaforo alguém pôr em dúvida a minha disposição”, a conjunção destacada tem o mesmo sentido de:

a.   mas.

b.   a fim de.

c.   para.

d.   porque.

12. No trecho “E, ali pelas alturas de Propriá vi uma canoa cheia de gente que botava para as Alagoas”, a expressão destacada indica circunstância de:

a.   tempo.

b.   modo.

c.   lugar.

d.   instrumento.

13. No trecho “Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento” a conjunção mas indica:

a.   adição.

b.   oposição.

c.   explicação.

d.   conclusão.