Conto: O BOQUINHA DA NOITE
Jair Vitória
Boca da noite, Boquinha da Noite – um
apelido bem dado e bem certo. E que não vinha de coisas estranhas. Gostava
tanto de dança que chegava à casa da pagodeira logo à boca da noite. Dançava de
dar íngua nas virilhas e debaixo dos braços. Homenzinho já beirando os cinquenta
mas que era uma espoleta nas gafieiras. Os rapazes ficavam basbacados com os
mandos deles nas rodas de
dança. E as moças gostavam de dançar com ele...
Andava ele quase de felicidade malvivida;
mas, se sabia disso, não se importava. Pulava o Rio Grande toda vez que havia
um baile no Triângulo Mineiro. Dançava até molhar toda a roupa de suor. Saía
para o terreiro, torcia a camisa, secava um pouco, depois voltava e, enquanto
houvesse o fole falando música e houvesse dama, estava ele sacolejando as
cadeiras. Cabelo já empainando. Tinha um cavalo castanho de encher os olhos. E
só, também.
-- Pacatau, pacatau, pacatau – era o
Boquinha da Noite enforquilhado no lombo do Castanho, esfregando na sela as
carnes do fundo. Tinha também um cachorro pintado que era seu amigo fiel. Meio
de bem, meio de mal com a tal felicidade. Por outros tempos, longe, ele tinha
ficado de mal com ela. Tinha sido lá nas margens do São Francisco, para as
bandas de Xique-Xique. Naquele rincão ele perdeu a bem-amada. Ficou sorumbático
um naco de tempo. Andou de bico virado para as coisas do mundo. Mas um dia
pegou a trouxa e, sonhando com as terras de São Paulo, apontou o nariz para o
sul. E tinha vivido e vivia sozinho – sem mulher. Pererecava e sambangava daqui
e dali e achava pedaços de alegria nos bailes de roça. Morava numa espelunca em
vivência com outro rapaz solteiro já meio também chegado nos anos. Era o
Ninico.
-- Pacatau, pacatau, pacatau – sempre o
Boquinha enforquilhado no Castanho. Queria ver as mulheres-esposas e moças com
os olhos brilhantes para o lado dele. O cavalo era bonito, sabia muito bem
daquilo. Enganar a si mesmo não era tolice tanta. As mulheres olhavam para o
cavalo, mas olhavam para ele
também. Era bom demais dar de possuir um cavalo bonito.
-- Castanho, vai comer um pouco de
capim, que a gente vai mais de noitinha num baile.
O cavalo começava a pastar o
capim-jaraguá bem depressa.
-- Tigre, sai pra lá, sá bichinho. Esse
cachorrinho anda de maus modos, Ninico.
Ninico pôs o prato vazio no jirau e não
falou nada. A noite vinha
pingando orvalho no capinzal.
Mas apareceu uma mudança e encheu a
tapera onde o Boquinha passava em frente aos pacataus, pacataus, pacataus.
Família de grande prole. Havia uma moça de beleza pequena e de sorriso
malfeito. Entretanto, tinha o corpo de bom feitio. Voz até grossa e de falar
áspero.
-- Sabe o nome da moça que mudou pra tapera
do Jorginho, Ninico?
-- Sei não, inda não. Só vi pelas
costas ainda. É bonita?
-- Bonita até falar chega, pois...
-- Mas você não pode mais não nem
pensar em moça.
-- Tu é besta, sô; sou homem de cativar
mulher demais ainda.
-- Ora Boquinha, deixa de pensamento
bobo.
-- Pois vou ganhar a Odete pra mim.
esse é o nome dela, ODETE, nome doce de fazer arrepio pelo corpo afora.
-- Você pega com muita coisa que eu vou
lá e tomo essa moça de você, Boquinha...
-- Pensa nem isso não, Ninico... vou
ser o dono dela.
A noite estava no terreiro, pretinha de
fazer medo. Boquinha da Noite dormiu com a cabeça cheia de primaveras. No dia
seguinte bateu visita na casa da família novata. Castanho estava no terreiro da
sala mastigando o freio e o cachorro Tigre foi cheirar a lata de lavagem na
cozinha. Boquinha tagarelou com o chefe. Conversou com os rapazotes. Depois
ganhou uma xícara de café da moça. Ficou trêmulo e queimou a boca de apuro de beber
café pelando. Minou até água dos olhos do homenzinho, mas ele aguentou firme. O
que mais fervia era o sangue dele em doidura de amor. Estava de bater a cabeça
sem rumo de paixão pela Odete. Ofereceu ajuda que não dispunha à família pobre.
O Boquinha da Noite conversou o que não sabia. O chefe da espelunca que era folgado
aceitou tudo. Disse que era bom fazer amizade com os vizinhos novos.
-- Pacatau, pacatau, pacatau – foi-se o
Boquinha enforquilhado no arreio do Castanho. Rindo sozinho pela estrada. A
Odete tinha gostado dele sim. Dera-lhe a xícara de café mais um sorriso. Agora
ele estava em doidura séria de amor. Ninico iria morrer de inveja.
Os outros rapazes iriam ficar de olhos
arregalados ao vê-lo nos bailes com a mão no ombro da Odete. Ela era mais alta
que ele, mas tinha nada não.
Chegou em casa e conversou com os
animais, porque o Ninico não estava. Notava toda a beleza da floresta num
pedação de natureza que começava do outro lado do córrego. Beleza maior era
casar de novo e com uma doninha de dezessete anos. Ele, o dançarino fanático de
cabelos empainando. Feliz mais que sabiá em tardes de sol e em manhãs radiosas.
Ria de falar chega a si mesmo
e de fazer graça aos animais. Sacudia a cabeça à toa.
Quando a noite vinha de novo e o Ninico
ainda não havia chegado da roça, Boquinha saiu com um frango carijó debaixo do
braço. Era o primeiro de uma série de presentes que ele levaria para a família
de Odete.
-- Seo Roque, tá aqui um franguinho que
eu trouxe de presente pra vocês. Na Bahia tinha desse costume com o vizinho
novo.
No vaivém da conversa, na luz mortiça
da sala, Odete saiu para ajudar a esticar o assunto. O Boquinha da Noite sentiu
o sangue ferver de amor. Conversou o que não sabia. O Sr. Roque disse que ele
podia ficar na sala conversando com os meninos enquanto ele ia lavar os pés.
Odete de amizade com o homenzinho de língua elástica sentou no mesmo banco.
Quando ele foi embora, saiu tonto de paixão olhando para as estrelas. O vento
sacudia as ramas e a lua começava a nadar no céu. Boquinha enchia os pulmões de
ar e o coração de esperança. Decerto ela também tinha gostado dele.
O Boquinha agora estava dando de toda a
noite passar um pedaço de tempo na casa de Odete. Não era nada a casa dos
velhos, mas casa da Detinha. Mandou mais frangos de presente e esqueceu um
pouco dos pagodes. Odete não ia aos bailes no começo, pois não tinha roupa. Mas
apareceram cortes de vestido de presente. O velho Roque viu o gosto do Boquinha
da Noite pela filha. Deixou aquilo acontecer como água de regato que corre
normalmente. Era
proveitoso, não precisava comprar vestido para a Detinha, ela ganhava do homenzinho
atacado de paixão. Boquinha passava de galope três ou quatro vezes por dia em
frente à casa da moça.
-- Ninico, vê se gosta desse pano. Vou
dá pra Detinha.
-- É bonito sim. Mas tira isso da
cabeça, sô. A moça tá aí querendo te enganar, sô.
-- Enganar. Tu que não sabe. Já peguei
na mão dela lá embaixo daquela figueirinha e dei até bicota nela. Ela riu, sô.
-- Então o negócio tá sério mesmo, uai.
-- Falo com o velho daqui uns tempos.
Os rapazes da vizinhança abusavam do
Boquinha. Achavam que Odete queria apenas presente dele.
-- A Odete vai casar com Baianinho, seo
Roque? – era um desses homens de língua elástica que perguntava ao pai da moça.
-- Ham – rosnou o Sr. Roque erguendo o
cutelo de cortar arroz. – Eu vou dar uma pedrada só, mas a minha pedrada vai
ser certeira, eu não erro não, vou dar uma pedrada só; onde já se viu coisa
dessa?!
Roque falava daquilo, mas ficava muito
contente quando a filha ganhava um corte de vestido do Boquinha da Noite e a
família ganhava um frango para almoçar no domingo.
Boquinha da Noite estava de deitar e
levantar pensando na Detinha. Remediava o tempo com alegrias sonhadas de amor.
Mulher mais bonita do mundo!
Mulher mais bonita do mundo, sim
senhor. Passar noites com ela num colchão de palha era viver de verdade. Aquela
de outros tempos, noutro lugar, nem menos chegava perto da Detinha. Estava
iludido mais que peixe pela isca. Veio a primavera de verdade e as árvores
floresceram sem medo. Os ipês já tinham ficado carregadinhos de flor. Era a
coisa mais bonita do mundo pensar
na Detinha com os olhos cheios de flor. Cabelo empainando, sem mentira, mas sentindo
amor de verdade. Nunca deixava de levar presente à moça. Quando saía da casa da
amada, depois de tempão de namoro, tinha vontade de voltar para trás quando
chegava no meio do caminho. Os noitibós faziam frejo no charco, mas aquilo não
espaventava seu querer de amor. Estava de não dormir direito. Dava agora de
trabalhar no roçado do pai da criatura amada só para dar
de mão, sem cobrar nada. No fundo, no fundo mesmo do íntimo, Roque até gostava
do Boquinha da Noite. Ele era amigo dos leais que ajudavam sem medir esforço.
Mas aquele homenzinho dos cabelos empainando casar com a filha dele, isso era
neca. Queria o sérico dele, os presentes. Deixava o Boquinha namorar com a
filha só para iludi-lo com momentos de alegria.
-- Sabe, Ninico, já três vezes fiz
ameaça de falar com o velho no meu casamento com a Detinha.
-- Ela aceita?
-- Falei com ela ainda não de
casamento, mas aceita sim, ora.
-- Sei não. Acho que ela tá só te
iludindo.
-- Sou eu algum bobo... lá minha cara,
sô.
Passou mais um pedaço de tempo e o povo
da redondeza comentava o caso com galhofa. Boquinha da Noite nem queria saber
de nada. Era ele e ele mesmo o dono da Detinha. Estava de botar orgulho em si
mesmo. Cabeça erguida enforquilhado na sela do Castanho.
Um dia, voltando da roça por uma vereda
onde as formigas passeavam também, o Boquinha ensaiou demoradamente para pedir Detinha
em casamento. Com muito esforço o pedido de casamento saiu com voz tremida. Roque
ouviu com naturalidade, sem dar importância.
-- Sei, sei, eu não sou contra nada,
Severino – Roque respondeu falando o nome de batismo do Boquinha da Noite.
Boquinha da Noite pegou o trilho e foi
para casa com um sufocamento de felicidade. Contou ao companheiro Ninico o caso
que tinha acontecido. Ninico torceu o bigode e até acreditou que o Boquinha da
Noite conseguiria mesmo casar com a Detinha. Ficou matutando aquilo muito
tempo. O Boquinha da Noite era um homenzinho de língua solta mesmo, dono de uma
lábia comprida.
Até ele próprio estava com inveja do Boquinha. Ah, sujeitinho de sorte. Como era
possível um homem feito beirando os cinquenta anos casar com uma menina de dezessete?
Detinha precisava arranjar um namorado
de verdade mesmo. Roque falou isso com um risinho sarcástico pendurado nos
lábios. Boquinha da Noite pensava que aquilo fosse namoro sério. Mas Detinha
precisava de um namorado jovem.
E foi o que aconteceu num baile.
Detinha toda cheirosa e bonita dentro de um vestido presenteado pelo Boquinha.
Ele, feliz que nem um passarinho. Naquela noite namoraria à beça. Mas Detinha
deu-se de esquerda e olhou firme para outro moço. Depois de pouco tempo trançaram
as mãos. Noite alta de amargura. Severino... Boquinha da Noite ficou macambúzio
num canto. Desapontado mais que nunca. Detinha rindo à solta com o braço do
rapaz enlaçado em sua cintura mesmo com a sanfona calada. Uma provocação ferindo
fundo!
Madrugada de amargura. Boquinha da Noite
saiu com palpite de morte no coração. Ninico ficou no pagode. Em casa pegou o
Castanho, botou a arreata no lombo do animal, encavalou-se e saiu com palpite
de morte já mais crescido ainda. Que presente e que presentes tinha dado à
Detinha.
--
Pacatau, pacatau, pacatau – a madrugada acordando sob os cascos do Castanho na
estrada do Rio Grande. E mais vontade de morrer aparecendo. E o rio, cheio de
roncar medo. Era uma baixada longa e perigosa. Um palpite sem limite de morte.
Nadar ele não sabia, tinha até medo d'água.
Disparou o Castanho apertando com cegueira
as esporas e batendo o chicote com alucinação. Um cavalo bom de rédea e
obediente até demais. Foi o cavalo disparado e sem parar caiu no rio até de
meio-mergulho. Uma loucura na madrugada. A lua não estava olhando e nem velando
por ninguém. A água brava! Foi-se o corpo do homem para não mais ser
encontrado. O cavalo amanheceu pastando no varjão, ainda arreado; Detinha
chorou umas lágrimas
sentidas quando soube de tudo aquilo, mas depois o tempo apagou o sentimento de
culpa.
Contam os visionários demais, que, pela
boquinha da noite, um homem dança no meio do rio, sobre as águas, e uma sanfona
soa indefinidamente. Mas o vulto some quando os visionários demais afirmam a
visão, e o som da sanfona vai embora quando eles aguçam os ouvidos.
VITÓRIA, Jair. O
Boquinha da Noite. In: Cuma-João. 2. ed. São Paulo: Ática, 1978. p. 49-54.
Fonte: livro Língua e
Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª
edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 111-115.
Entendendo o conto:
01 – Qual a principal
característica de Boquinha da Noite que dá nome ao conto?
Sua paixão por
dança, que o levava a frequentar bailes até altas horas da noite.
02 – Qual a relação de
Boquinha da Noite com o cavalo Castanho?
O cavalo era seu
fiel companheiro, um símbolo de status e um meio de transporte para os bailes.
03 – Como o passado de
Boquinha da Noite influencia seu comportamento presente?
A perda da
bem-amada no passado o deixou solitário e em busca constante de afeto, o que o
leva a perseguir a paixão por Odete.
04 – Qual o papel de Odete na
vida de Boquinha da Noite?
Odete representa a esperança de amor e
felicidade para Boquinha, mas também se torna o objeto de sua obsessão e,
posteriormente, a causa de sua tragédia.
05 – Como o ambiente rural e
os bailes são retratados no conto?
O ambiente rural
é retratado como um espaço de sociabilidade e onde os bailes são eventos
importantes para a comunidade.
06 – Qual a importância da
figura de Ninico na narrativa?
Ninico serve como
contraponto a Boquinha, oferecendo uma visão mais realista da situação e tentando
alertá-lo sobre as ilusões de Odete.
07 – Como o final do conto
pode ser interpretado?
O final é trágico
e ambíguo. Pode ser interpretado como uma punição por sua obsessão, uma
libertação de sua dor ou até mesmo uma elevação ao status de lenda local.
08 – Quais os temas principais
abordados no conto?
Amor, paixão,
obsessão, ilusão, morte, solidão e a busca por felicidade são alguns dos temas
presentes na narrativa.
09 – Qual a importância da
linguagem utilizada pelo autor para contar a história?
A linguagem
simples e direta, com expressões populares, contribui para a construção de um
universo realista e próximo do universo dos personagens.
10 – Qual a sua opinião sobre
a atitude de Boquinha da Noite ao longo da história?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Esta é uma pergunta aberta que incentiva a reflexão
individual sobre as ações e motivações do personagem.