CONTO: A história de Blimundo
Recontado por Leão Lopes
[...]
Era uma vez um boi. Um boi grande, um boiona que se chamava Blimundo.
Blimundo, filho das rochas, possante, calmo e
sabedor do mundo, amante da vida e da liberdade, era boi respeitado por todos
os seus iguais, e não só pelas ribeiras, pelos campos e pelas vertiginosas
montanhas. Amigo da harmonia em todas as coisas, Blimundo nada fazia que
contrariasse a justiça e a ordem natural da evolução da vida. Tinha seu próprio
entendimento do mundo e da liberdade, que defendia no cotidiano, pelos picos,
pelas bordeiras e assomadas.
Senhor Rei, ao saber da existência de Blimundo, do seu comportamento, de
suas convicções e atitudes, que considerava irreverentes em relação às leis
estabelecidas no seu reino, não ficou nada tranquilo. Não admitia que boi algum
do seu território fugisse à obediência, às demandas dele, senhor todo-poderoso,
dono das ribeiras, dos campos, dos lombos e das vertiginosas montanhas, dono de
todas as águas e dos trapiches.
—
Que boi julgava ser Blimundo, que procurava, com o seu exemplo, tornar irreverentes
ao Rei todos os outros bois do território real? Que bicho depois faria os
trabalhos do campo, faria andar o trapiche […], daria carne para o sustento à
grande e pomposa mesa real? Ainda por cima, ele não queria vagabundos no seu
reinado, revoltosos e bichos que não acatassem as ordens!
Um Rei é um Rei
Um boi é um boi!
—
E, se mando cortar a cabeça de um boi para o meu jantar, têm que me obedecer! —
pensava alto e irritado o Senhor Rei. — Guarda, reúne os soldados, e que tragam
o Blimundo, vivo ou morto! — ordenou o Rei.
Saiu a tropa armada de machados, machadins,
coletes de ferro, capacete, arpões e afins, espumando, na sede de cumprir a tão
real missão.
Subiram rochas, desceram ribeiras, rebuscaram
campos em busca de Blimundo. A um dado momento da penosa busca, e de um lombo
estratégico, este os detectou e aguardou. No momento decisivo, pensando os
heróis do reino – dentro de suas armaduras de ferro e cravo – apanhar o
possante, calmo e sabedor do mundo, amante da vida e da liberdade que era
Blimundo, não tiveram tempo para mais tarde saber contar como foi.
Blimundo deu conta deles num estilhaçar de
machados, machadins, coletes de ferro, capacetes, arpões e afins, com a
sabedoria que aprendera das rochas!
Não descansou o Senhor Rei quando soube da
notícia.
Vendo que não podia arriscar mais do que
restava dos seus heroicos soldados, reuniu os homens valentes do reino e disse:
— Súditos! Eu sou o vosso Rei! O reino está
ameaçado por Blimundo, que, arrastando na sua irreverência outros bois, dignos
servidores do reino, poderá nos levar à miséria e à fome! A conduta desse
Blimundo é verdadeiramente perigosa para a nossa sobrevivência nesses lombos e
nessas ribeiras! Quem depois poderá reinar quando todos os bois tomarem a
liberdade? Quem fará andar os trapiches? De quem virá a carne para a minha
mesa? De quem? Respondam! De quem? Morte ao Blimundo e viva o Rei! — berrou o
Senhor Rei.
— Viva o Senhor Rei! — secundaram os súditos.
Estes, fiéis servidores do Rei, obedientes e
tementes ao Senhor, armaram-se de facas e facões, paus e forquilhas, fisgas e
enxadas e saíram à cata de Blimundo, o possante, calmo e sabedor do mundo,
amante da vida e da liberdade, amigo da harmonia entre todas as coisas.
Os súditos, ingênuos e obedientes, galgaram
lombos, desceram encostas, palmilharam ribeiras, revolveram furnas até que
encontraram o procurado.
Blimundo já os esperava. Sabia que, pela
liberdade que tanto amava, teria que pagar tão alto preço e que o Senhor Rei
não desistiria do intento de o transformar, vivo ou morto, num boi subserviente
e sem personalidade, num boi que tivesse que acatar as demandas e os abusos do
Rei sem se indignar, sem se revoltar.
Deixou os súditos se aproximar e esperou pelo
ataque. Foi um encontro rápido e decisivo. Não ficou inteiro um só homem
valente do reino, nem faca nem facão, nem pau nem forquilha, nem fisga nem
enxada em postura de vir a contar como foi.
Blimundo respirou fundo e angustiado,
afastando-se da cena.
Quando chegaram as notícias ao palácio, o
Senhor Rei caiu em desespero.
Não tinha mais estratégias de combate ao
Blimundo e não podia suportar a ideia de tão perigoso desafiador à solta. É
nisto que lhe chega a notícia de um rapazinho criado no borralho de cinza que
lhe promete ir buscar Blimundo.
— Quero vê-lo já! — ordenou o Senhor Rei.
Trouxeram o rapaz, e o Rei, espantando,
pergunta:
— Tu, menino? Trazer Blimundo? Esse maldito que
me desfez um exército e os melhores homens do reino? Como podes trazer-me
Blimundo?
— Senhor Rei: dá-me um cavaquinho, um bli
d’água e uma bolsa de prentém que eu trago Blimundo. E, como recompensa, quero
metade da riqueza do reino e sua codizinha, para com ela casar!
E assim fez o Rei, comprometendo-se com a
recompensa.
Com o seu saco de prentém, bli d’água a
tiracolo e seu cavaquinho ao peito, sai o rapazinho do palácio, rumo aos campos
e às ribeiras, os lombos e as furnas, os picos e atalhos, à cata de Blimundo
com uma canção na boca, cantada com todo o sentimento e sem parar:
Oh, Blimundo
Senhor Rei mendé-me bem’shcóbe
Pa bô bé casá q’Vequinha de Praia
Tim-tim ne nhê cavequim
Cop-cop ne nhê prentém
Glu-glu ne nhê bli d’ága
Oh, Blimundo
Senhor Rei mendé-me bem’shcóbe
Pa bô bé casá q‘Vequinha de Praia
Tim-tim ne nhê cavequim
Cop-cop ne nhê prentém
Glu-glu ne nhê bli d’ága
A dada altura, Blimundo, do seu esconderijo,
ouve a canção que o encanta.
Levanta as grandes orelhas e se põe à escuta com
mais atenção. Quando entende bem a mensagem, deixa o rapazinho se aproximar,
pedindo:
— Canta, canta outra vez! Toca o teu
cavaquinho!
Oh, Blimundo
Senhor Rei mendé-me bem’shcóbe
Pa bô bé casá q’Vequinha de Praia
Tim-tim ne nhê cavequim
Cop-cop ne nhê prentém
Glu-glu ne nhê bli d’ága
— É verdade que eu vou casar com a Vaquinha de
Praia? Não me estás a enganar?
— ingadou Blimundo.
— Então vou contigo!
O rapaz pede a Blimundo que se abaixe todo e
que o deixe ir montado, porque
o caminho é longo e duro. Blimundo obedece, mas
exige:
— Mas... vais a cantar! É tão bonita essa
canção...
E assim foram:
Oh, Blimundo
Senhor Rei mendé-me bem’shcóbe
Pa bô bé casá q’Vequinha de Praia
Tim-tim ne nhê cavequim
Cop-cop ne nhê prentém
Glu-glu ne nhê bli d’ága
Oh, Blimundo
Senhor Rei mandou buscar-te
Porque vais casar com a
Vaquinha de Praia
Tim-tim no meu cavaquinho
Cop-cop no meu milho torrado
Glu-glu na minha cabaça de água
De vez em quando, Blimundo perguntava:
— Mas... eu vou casar com a Vaquinha de Praia?
Foram andando, andando, em direção ao
palácio do Rei.
— Não pares de cantar! Canta mais perto do
meu ouvido! — pedia Blimundo.
Oh, Blimundo
Senhor Rei mendé-me bem’shcóbe
Pa bô bé casá q’Vequinha de Praia
Tim-tim ne nhê cavequim
Cop-cop ne nhê prentém
Glu-glu ne nhê bli d’ága
Entretanto, o Senhor Rei, pelo sim, pelo não, e
com medo do que viesse a acontecer, mandara a tropa colocar-se em pontos
estratégicos do lugar real e ordenara aos súditos que ninguém se mostrasse
quando o rapaz aparecesse com Blimundo.
Já o Sol tinha passado para a outra ribeira,
quando à entrada do lugar real surgiu Blimundo, pachorrento e feliz, e sobre
ele o rapazinho com o seu cavaquinho.
Senhor Rei que esperava no sobrado não queria
acreditar no que estava vendo. Impressionado pela grandeza de Blimundo,
perguntava a si mesmo como conseguira o rapaz trazer-lhe tão arrostado e temido
personagem que muitas noites de sono lhe roubara e muitos estragos ao reino
causara.
Blimundo seguiu pela rua principal crivado de
olhares de medo e respeito através das frestas das portas e janelas,
devidamente trancadas.
Só um amor; só uma velha paixão; só essa grande
força arrastaria Blimundo, feliz, calmo e confiante, pela rua que o levaria a
enfrentar o Rei, que sempre o perseguira pelos ideais de amor e de liberdade.
Só a correspondente paixão da Vaquinha de Praia
e a enorme vontade de a libertar das garras do Rei o levaram a enfrentar com
suficiente tranquilidade esse chamado do dono de todas as terras, águas,
ribeiras, atalhos, furnas e campos, rochas e lombos.
Chegados junto à entrada do palácio, o
rapazinho pediu a Blimundo que o deixasse descer e que o esperasse, pois tinha
que pedir o barbeiro ao Rei para lhe fazer a barba antes de o apresentar à
Vaquinha de Praia.
O rapaz entra pelo palácio adentro e explica ao
Rei o seu plano. Veio com ele um barbeiro com seus apetrechos. Atrás, o Senhor
Rei, ansioso pelo desfecho do plano concebido pelo rapaz.
Blimundo, paciente, deixa-se envolver pela
toalha e ensaboar, enquanto o Rei e o rapaz assistem com ar triunfante à
cerimônia.
Blimundo fecha os olhos imaginando a
impaciência da Vaquinha de Praia esperando, enquanto o pincel de barba envolve
deliciosamente, com espuma branca e fresca, a sua barba selvagem.
Blimundo deixa-se embalar quase como num sonho, e, num ápice, com um terrível e certeiro golpe de navalha do barbeiro-carrasco, fica o plano consumado. É traiçoeiramente assassinado Blimundo. Seu corpo cai para um lado, e, num estrebuchar de revolta e violência, uma bela patada traseira de toneladas de força atinge o Senhor Rei, que perde aí o seu reinado.
O rapazinho e o barbeiro fogem despavoridos,
mas jamais iriam esquecer o último olhar de revolta de Blimundo, o último olhar
que os havia de perseguir eternamente.
Blimundo cantou no seu derradeiro fôlego.
Cantou na agonia do momento a sua última canção, profunda e condenadora, bela e
terrivelmente melancólica, que jamais deixaria de condenar seus assassinos.
E, no grande banquete após a tragédia, cada bocado de carne no prato dos convivas levava o sabor de revolta e da bela e condenadora canção que imortalizaria Blimundo, esse sabedor do mundo e das coisas, amante da vida e da liberdade, amigo da beleza e da harmonia e que nada fazia que contrariasse a justiça e as leis da natureza.
Esta é a história de Blimundo.
LOPES, Leão. A história de Blimundo In: GONÇALVES, Zetho Cunha et al. Dima, o passarinho que criou o mundo: mitos, contos e lendas dos países de língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2013. E-book.
Vocabulário
arrostado: que desafia ou afronta o adversário.
fisga: atiradeira, estilingue.
borralho de cinza: origem pobre.
pachorrento: lento, calmo.
boiona (crioulo cabo-verdiano): boi muito grande.
bordeiras (crioulo): caminhos íngremes.
assomadas (crioulo): cumes.
lombos (crioulo): elevações no terreno.
machadins (crioulo): machadinhas, pequenos machados.
secundaram: responderam.
fisgas: atiradeiras, estilingues.
furnas: grutas.
Entendendo o texto
01. O narrador conta que Blimundo era calmo, sabedor das coisas do mundo, amante da vida e da liberdade, amigo da harmonia e da justiça e respeitado por todos os seus iguais.
a) Como
Blimundo era visto pelo Rei?
O Rei o considerava desobediente,
revoltado, vagabundo e desrespeitoso.
b) Releia estes trechos da fala atribuída ao
Rei, dirigindo-se a seus súditos.
A conduta desse Blimundo é verdadeiramente
perigosa para a nossa sobrevivência [...]. Quem fará andar os trapiches? De
quem virá a carne para a minha mesa?
O Rei espera um comportamento subserviente, que Blimundo obedeça a ordens, que trabalhe sem descanso e que sacrifique sua vida, se necessário, para alimentar os seres humanos.
02. A figura do boi Blimundo, na tradição oral
de Cabo Verde, representa alguns ideais e é considerada uma alegoria de
resistência à escravatura e ao poder absoluto de um rei autoritário. Quais são
os ideais que Blimundo representa?
Espera-se que os alunos reconheçam em Blimundo o desejo de liberdade, de justiça e igualdade para todos.
03. No conto, apenas o boi, um animal, tem
nome; os seres humanos são mencionados por sua designação genérica: o Rei, o
rapazinho, o barbeiro, os soldados. Por que isso acontece?
Ao nomear um indivíduo mesmo que se
trate, como no conto, de um boi, cria-se uma identidade para ele. Com a identidade
cria-se também empatia.
É um recurso que aproxima o leitor do personagem.
04. Releia o primeiro e os últimos parágrafos
do texto. Neles, o narrador repete uma mesma informação sobre Blimundo.
a) Que informações se repetem?
O narrador descreve Blimundo como um amante da vida e da liberdade, amigo da beleza e da harmonia, e diz que nada fazia que contrariasse a justiça e as leis da natureza.
b) Que
efeito essa repetição provoca no texto?
A repetição da descrição, que também acontece em outros trechos, enfatiza o caráter de Blimundo, reforçando os ideais que ele representa.
05. A descrição do cenário é importante para o
desenvolvimento da história de Blimundo.
a) Como o cenário é caracterizado?
Como um ambiente cheio de terrenos
íngremes, formados por ribeiras, campos, vertiginosas montanhas, e com a
presença dos trapiches.
b)De que forma esse cenário
contribui para acompanharmos o desenvolvimento da história?
O cenário mostra o alcance do poder
do Rei na história e a trajetória de Blimundo, que caminha por lugares hostis,
se mantém escondido e a salvo dos que o perseguem.
06. Depois de tentativas frustradas de capturar
Blimundo, qual foi o plano proposto pelo personagem jovem para iludir Blimundo
e levá-lo até o Rei?
Disse que o levaria para casar com a Vaquinha que ele amava.
07. Releia o texto observando os itens a
seguir.
• Expressões utilizadas no início do texto.
• Local onde ocorre a ação.
• Tempo em que ocorre a ação.
• Caracterização dos personagens.
• Tipo de narrador.
• O autor do texto.
a) Qual é a expressão utilizada no início do
texto?
A expressão usada no início do texto é “Era uma vez...”.
b)Onde ocorre a ação? O local é
indeterminado.
O local
é indeterminado.
c) Quando
ocorre a ação? A ação ocorre em um tempo indeterminado.
A ação ocorre em um tempo
indeterminado.
d) O narrador participa da ação?
O narrador conta a história como quem a ouviu contar,
sem participar dos fatos narrados.
e) Em qual pessoa verbal (foco narrativo) o
texto é narrado?
O texto é narrado em 3ª pessoa.
f) Quem é o autor do texto?
Essa versão é contada pelo escritor Leão Lopes; no
entanto, ele não criou a história,
somente a recolheu da
tradição oral de Cabo Verde.
08. Os contos populares sempre motivam alguma
reflexão. Sobre o que esse conto faz você refletir?
Possibilidades: Líderes poderosos
podem se tornar opressores. Quem ama a liberdade pode se tornar uma ameaça para
os poderosos.
09. Você vê alguma relação entre o ensinamento
desse conto, de origem africana, com a sua realidade no Brasil? Justifique sua
resposta.
Resposta pessoal. Espera-se que os
alunos compreendam o caráter universal dos ensinamentos de contos populares,
independentemente de sua origem ou de seus personagens