Crônica: Liberdade,
oh, liberdade
Danuza Leão
Todo mundo quer ser livre; a liberdade
é o bem mais precioso, almejado por homens e mulheres de todas as idades, e a
luta para conquistá-la começa bem cedo.
Desde os primeiros meses de idade, você
só pensa em uma coisa: fazer apenas o que quer, na hora que quer, do jeito que
quer.
Crianças de meses rejeitam a mamadeira
de três em três horas, mas choram quando têm fome – querem comer na hora que
escolherem –, e quando um pouco mais grandinhas brigam para não vestir a roupa
que a mãe escolheu. Ficam loucas para ir sozinhas para o colégio, e quando
chegam em casa além do horário previsto, ai de quem perguntar onde elas
estiveram. "Por aí" é o que respondem, quando respondem – e as mães
que enlouqueçam.
Quando adolescentes, as coisas pioram:
querem a chave do carro (e a de casa), e quando começam a sair à noite e os
pais tentam estabelecer uma hora para chegar, é guerra na certa, com as devidas
consequências: quarto trancado, onde ninguém pode entrar nem para fazer uma
arrumação básica. Naquele território ninguém entra, pois é o único do qual ele
se sente dono – e, portanto, livre. A partir dos 12 anos, o sonho de todos os
adolescentes é morar num apart –sozinhos, claro.
Mas
o tempo passa, vem um namoro mais sério, e quem ama não é – nem quer ser –
livre (para que o outro também não seja). Dá para quem está namorando sumir por
três dias? Claro que não. Se for passar o fim de semana na casa da avó, que
mora em outra cidade, vai ter que dar o número do telefone – e isso lá é
liberdade? E dos celulares, melhor nem falar.
Aí um dia você começa a achar que, para
ser livre mesmo, é preciso ser só; começa a se afastar de tudo e cancela o amor
em sua vida – entre outras coisas. Ah, que maravilha: vai aonde quer, volta na
hora em que bem entende, resolve se o almoço vai ser um sanduíche ou na-da, sem
ninguém para reclamar da geladeira vazia, trocar o canal de televisão ou
reclamar porque você está fumando no quarto. Ah, viver em to-tal liberdade é a
melhor coisa do mundo. Mas a vida não é simples, e um dia você acorda pensando
em se mudar de casa; fica horas pesando os prós e contras, mas não consegue
decidir se deve ou não. Pensa em refrescar a cabeça e ir ao cinema, mas fica na
dúvida – enfrentar a fila, será que vale a pena? Vê a foto de uma modelo na
revista e tem vontade de cortar o cabelo – mas será que vai ficar bem? Acaba
não fazendo nada, e depois de tantos anos sem precisar dar satisfação da vida a
ninguém, começa a sentir uma estranha nostalgia.
Como seria bom se tivesse alguém para
dizer que é uma loucura fazer uma tatuagem; alguém que te aconselhasse a não
trocar de carro agora – pra que, se o seu está tão bom? Que mostrasse o quanto
você foi injusta com aquela amiga e precipitada quando largou o marido, o
quanto foi rude com a faxineira por uma bobagem. Que falasse coisas que iam te
irritar, desse conselhos que você iria seguir ou não, alguém com quem você
pudesse brigar, que te atormentasse o juízo às vezes, para você poder reclamar
bastante. Alguém que dissesse o que você deve ou não fazer, o que pode e o que
não pode e até mesmo te proibisse de alguma coisa.
E que às vezes notasse suas olheiras e
falasse, de maneira firme, que você está muito magra e talvez exagerando na
dieta; alguém que percebesse que, faltando dez dias para o final do mês, você
só tem 50 reais na carteira e perguntasse se você não está precisando de alguma
coisa. E que dissesse sempre, em qualquer circunstância, "vai dar tudo certo".
Que falta faz um pai.
Danuza Leão. Folha de
S. Paulo, 3/3/2002.
Fonte: Livro-
PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 7ª Série – 2ª
edição - Atual Editora -1998 – p. 113-5.
Entendendo o texto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Almejado: desejado ardentemente.
·
Apart: o mesmo que apart-hotel (apartamento-hotel), espécie de
apartamento com regalias de hotel: arrumadeira, lavanderia, cozinheira,
manobrista, etc.
02 – A autora defende um
ponto de vista a respeito da importância que tem a liberdade na vida das
pessoas. Qual é esse ponto de vista e em que fases da vida o ser humano aspira
pela liberdade?
Ela defende o
ponto de vista de que a liberdade é o bem mais desejado pelo ser humano em
todas as fases da vida.
03 – No 4° parágrafo do
texto, a autora diz que, na adolescência, “as coisas pioram”.
a)
Por que há conflitos entre pais e
adolescentes?
Os conflitos ocorrem porque os adolescentes se rebelam contra as
normas impostas pelos pais, como as de horário para chegar em casa.
b)
Que palavras empregadas pela autora reforçam
a ideia de que o lar se transforma num campo de batalha?
As palavras guerra e território, que sugerem lutas e demarcação de
espaços e fronteiras.
c)
Se o quarto é o único espaço do qual o
adolescente se sente o dono, deduza: Que envolvimento ele tem com o restante da
casa e com os problemas do lar?
Nenhum envolvimento; geralmente não se sente dono nem responsável
pelo resto da casa; também não se interessa pelos problemas gerais da família.
04 – De acordo com o texto,
“o sonho de todos os adolescentes é morar num apart – sozinhos, claro”.
a)
Das regalias que há no lar, quais o
adolescente encontraria num apart-hotel?
Comida, roupa lavada e faxina.
b)
O adolescente tem condições concretas de
manter um apart-hotel?
Não.
05 – Segundo a autora, a
fase do “namoro mais sério” modifica a visão que até então a pessoa tinha de
liberdade. “Quem ama”, diz ela, “não é – nem quer ser – livre”.
a)
Explique essa contradição.
Se a pessoa quer a sua liberdade, então precisa dar liberdade ao
outro. Por amor, o ser humano começa a sacrificar sua liberdade para garantir a
fidelidade do outro.
b)
Levante hipóteses: Por que, a respeito dos
telefones celulares, a autora diz “melhor nem falar”?
Porque os celulares põem fim a certa “liberdade” do indivíduo, pois
permitem que alguém, a distância, controle tudo o que o outro está fazendo.
06 – Morar sozinho é uma das
etapas na conquista da liberdade. De acordo com o texto:
a)
Que vantagens há em morar sozinho?
A pessoa tem liberdade total para fazer o que deseja, sem dar
satisfações a outra pessoa.
b)
E quais são as desvantagens?
A falta de um interlocutor para trocar ideias, para opinar sobre as
mínimas coisas: corte de cabelo, ir ao cinema, etc.
07 – Releia este trecho:
“[...]
depois de tantos anos sem precisar dar satisfação da vida a ninguém, começa a
sentir uma estranha nostalgia.” Veja alguns dos sentidos que a palavra nostalgia tem no dicionário:
Nostalgia: s.f. 1 melancolia profunda
causada pelo afastamento da terra natal [...] 3 saudades de algo, de um estado,
de uma forma de existência que se deixou de ter; desejo de voltar ao passado.
Dicionário Houaiss da
língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
a)
No texto em estudo, a nostalgia se deve à
falta de quê?
De conselhos, broncas, proibições e consolo.
b)
Que outro sentido ganha, nesse momento, tudo
aquilo que antes parecia insuportável ao adolescente?
Ganha um sentido de carinho, de preocupação, de companheirismo, etc.
08 – Comparada com o início
do texto, a frase: “Que falta faz um pai”, do final, é surpreendente.
a)
A palavra pai foi empregada conotativamente. Que sentidos ela apresenta no
contexto?
Representa a família como um todo: a mãe, os irmãos, a companhia, a
solidariedade, o companheirismo, etc.
b)
Levante hipóteses: Até alguém chegar a essa
nova forma de ver o mundo, quantos anos terão se passado?
Parece que a cronista se refere a adultos com mais de 30 anos, que
já passaram por muitas experiências.
c)
O reconhecimento, nesse estágio da vida, de
que “sente falta do pai”, indica que o ser humano amadureceu? Por quê?
Resposta pessoal do aluno. Sugestões: Sim, pois esse reconhecimento
significa que as coisas estão sendo vistas de vários ângulos, que a pessoa
aprendeu a ponderar, a ser mais tolerante, etc. Ou: Não, porque revela
carência.
09 – Em sua trajetória de
vida, o ser humano sofre profundas mudanças. De acordo com o texto, essas
mudanças fazem com que ele deixe de valorizar a liberdade? Justifique sua
resposta.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: Não, ele apenas passa a ter uma visão diferente, menos
radical, de liberdade. Passa a ver, por exemplo, que ser livre não é
necessariamente ser só e que as demais pessoas sem sempre exercem opressão
sobre nós. Sua preocupação pode ser, inclusive, uma forma de amor.