Crônica: Amigos
Luís Fernando Veríssimo
Os dois eram grandes amigos. Amigos de
infância. Amigos de adolescência. Amigos de primeiras aventuras. Amigos de se
verem todos os dias. Até mais ou menos 25 anos. Aí, por uma destas coisas da
vida – e como a vida tem coisas! – passaram muitos anos sem se ver. Até que um
dia...
Um dia se cruzam na rua. Um ia numa
direção, o outro na outra. Os dois se olharam, caminharam mais alguns passos e
se viraram ao mesmo tempo, como se fosse coreografado. Tinham-se reconhecido.
– Eu não acredito!
–
Não pode ser!
Caíram um nos braços do outro. Foi um
abraço demorado e emocionado. Deram-se tantos tapas nas costas quantos tinham
sido os anos da separação.
– Deixa eu te ver!
– Estamos aí.
– Mas você está careca!
– Pois é.
– E aquele bom cabelo?
– Se foi...
– Aquela cabeleira.
– Muito Gumex...
– Fazia sucesso.
– Pois é.
– Era cabeleira pra derrubar suburbana.
– Muitas sucumbiram...
– Puxa. Deixa eu ver atrás.
Ele se virou para mostrar a careca
atrás. O outro exclamou:
– Completamente careca!
– E você?
– Espera aí. O cabelo está todo aqui.
Um pouco grisalho, mas firme.
– E essa barriga?
– O que é que a gente vai fazer?
– Boa vida...
– Mais ou menos...
– Uma senhora barriga.
– Nem tanto.
– Aposto que futebol, com essa
barriga...
– Nunca mais.
– E você era bom, hein? Um bolão.
– O que é isso.
– Agora tá com a bola na barriga.
– Você também.
– Barriga, eu?
– Quase do tamanho da minha.
– O que é isso?
– Respeitável.
– Quem te dera um corpo como o meu.
– Mas eu estou com todo o cabelo.
– Estou vendo umas entradas aí.
– O seu só teve saída.
Ele se dobra de rir com a própria
piada. O outro muda de assunto.
– Faz o quê? Vinte anos?
– Vinte e cinco. No mínimo.
– Você mudou um bocado.
– Você também.
– Você acha?
– Careca...
– De novo a careca? Mas é fixação.
– Desculpe, eu...
– Esquece a minha careca.
–
Não sabia que você tinha complexo.
– Não tenho complexo. Mas não precisa
ficar falando só na careca. Eu estou falando nessa barriga indecente? Nessas
rugas?
– Que rugas?
– Ora, que rugas?
– Meu Deus, sua cara está que é um
cotovelo.
– Espera um pouquinho...
– E essa barriga? Você não se cuida
não?
– Me cuido mais que você.
– Eu faço ginástica, meu caro. Corro
todos os dias. Tenho uma saúde de cavalo.
–
É. Só falta a crina.
– Pelo menos não tenho barriga de
baiana.
– E isso, o que é?
– Não me cutuca.
– Me diz. O que é? Enchimento?
– Não me cutuca!
– E esses óculos são para quê? Vista
cansada? Eu não uso óculos.
– É por isso que está vendo barriga
onde não tem.
– Claro, claro. Vai ver você tem cabelo
e eu é que não estou enxergando.
– Cabelo outra vez! Mas isso já é
obsessão. Eu, se fosse você, procurava um médico.
– Vá você, que está precisando. Se bem
que velhice não tem cura.
– Quem é que é velho?
– Ora, faça-me o favor...
– Velho é você.
– Você.
– Você.
– Você!
– Ruína humana.
– Ruína não.
– Ruína!
– Múmia!
– Ah, é? Ah, é?
– Cacareco! Ou será cacareca?
– Saia da minha frente!
Separaram-se, furiosos. Inimigos para o
resto da vida.
Verissimo, Luís Fernando. O
melhor das comédias da vida privada. São Paulo: Objetiva, 2004.
Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 8º
ano – Ensino Fundamental – IBEP 4ª edição São Paulo 2015 p. 131-3.
Entendendo a crônica:
01 – Em que período da vida esses dois homens conviveram?
Da infância até mais ou menos 25 anos de
idade.
02 – Que mudanças físicas os
amigos percebem um no outro?
Ficar careca,
ganhar barriga, rugas e vista cansada.
03 – Até certo momento do
texto, falar sobre as mudanças físicas ainda era amistoso. Em que ponto deixa
de ser assim? Transcreva no caderno as frases que marcam essa passagem.
As frases são: “– De novo a careca? Mas é
fixação.”
04 – Em seu caderno,
transcreva o trecho do texto que corresponde ao clímax do conflito.
Tem início com
a fala “– Velho é você.” até “– Cacareco! Ou será cacareca?”.
05 – O texto mostra como a
relação de amizade se transforma progressivamente em inimizade. Em seu caderno,
descreva como o texto desenvolve essa progressiva oposição.
O texto começa
usando uma linguagem quase poética, com expressões como “amigos de primeiras
aventuras”, descreve o abraço emocionado do reencontro; com a entrada dos
diálogos, o texto vai ficando mais dinâmico, os desentendimentos começam a
aparecer. Com a continuidade da narrativa, os diálogos vão se tornando cada vez
mais ásperos, as frases se tornam curtas e incisivas até chegar ao ponto alto
do conflito.
06 – O narrador, na
introdução da crônica, apresenta ao leitor uma reflexão: “Aí, por uma destas
coisas da vida – e como a vida tem coisas!”. O assunto da crônica justifica a
reflexão do narrador? A vida realmente “tem coisas”? Justifique sua opinião com
acontecimentos narrados no texto.
Sim, pois os
amigos se reencontram depois de tantos anos e de repente se envolvem em uma
discussão e tornam-se inimigos para sempre.
07 – Para as personagens da
crônica, a situação de desentendimento entre amigos é um momento tenso e
desagradável ou leve e divertido?
A discussão é
tensa e provoca um desconforto nos dois conhecidos, tornando o encontro muito
desagradável.
08 – Por que podemos dizer
que se trata de um texto de humor?
Porque o diálogo travado entre as
personagens é engraçado, as observações que um faz a respeito da aparência
física do outro e a não aceitação da mudança da aparência por parte dos dois
amigos, que ainda se consideram jovens, como há 25 anos, dão o tom humorístico,
irônico à obra. O próprio afastamento definitivo é irônico.
09 – As características que
uma personagem repara na outra são predominantemente negativas. Cite algumas
palavras ou frases que exemplifiquem essa afirmação.
“– Agora tá com a bola na barriga.”, “–
Meu Deus, sua cara está que é um cotovelo.”, “– Ruína humana.”, “– Múmia!”.
10 – Em que consiste o humor
do texto?
O humor é a
ironia da situação, “as coisas que a vida tem”: os dois não se viam há muito
tempo, mas quando se reencontram, identificam tantos defeitos na aparência um
do outro que transformam esse reencontro, no início tão afetuoso, em guerra
verbal e desentendimento definitivo.
11 – Com base nos
conhecimentos que já possui sobre gêneros textuais, responda: Por que podemos
considerar esse texto uma crônica de humor?
Trata-se de um texto narrativo breve, que
apresenta uma situação do cotidiano em linguagem coloquial. A reflexão é
exemplificada com uma situação irônica, que surpreende o leitor.
12 – Você se lembra de algum
reencontro desagradável, mas engraçado, vivido por você ou por alguém que
conhece? Conte para a turma.
Resposta pessoal do aluno.