terça-feira, 20 de outubro de 2020

CONTO: O HOMEM DE CABEÇA DE PAPELÃO - PARTE I - JOÃO DO RIO - COM GABARITO

 Conto: O homem de cabeça de papelão - parte I

              João do Rio

        No país que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.

        O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em ideias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarés fatigados, jornais, trâmueis, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda e um aborrecimento integral. Enfim, tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso! Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.

        Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrário do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

        Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos, e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

        Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os trâmites legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

        -- Ouça! – bradava o tio. – Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

        -- Mas não quero ser nada disso.

        -- Então quer ser vagabundo?

        -- Quero trabalhar.

        -- Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando, – é vagabundo.

        -- Eu não acho.

        -- É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

        Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de ideias. Até alegre – qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por quê? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

        Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

        -- É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

        O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

        -- A perigosa mania de seu filho é pôr em prática ideias que julga próprias.

        -- Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

        -- Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

        No País do Sol o comércio é uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas ideias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto não o tinham explorado.

        Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse, chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

        -- É doido, mas bom.

        Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

        -- Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal....

        -- É da tua má cabeça, meu filho.

        -- Qual?

        -- A tua cabeça não regula.

        -- Quem sabe?

        Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.

        -- Só caso se o senhor tomar juízo.

        -- Mas que chama você juízo?

        -- Ser como os mais.

        -- Então você gosta de mim?

        -- E por isso é que só caso depois.

        Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.

                R. Magalhães Júnior (org.). Antologia de humorismo e sátira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P. 116-120.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Afluir: correr para ou chegar a; vir.

·        Bacharel: quem concluiu um curso universitário; quem concluiu o curso de Direito.

·        Bolchevique: comunista.

·        Enfant terrible: expressão francesa que significa “criança terrível”; pessoa muito independente, imprudente.

·        Meeting: palavra inglesa para “reunião”.

·        Progenitora: mãe.

·        Proletariado: os trabalhadores em geral; povo.

·        Trâmites: etapas de um processo.

02 – No início, o conto apresenta o País do Sol (espaço) e Antenor (personagem principal). Em seguida, esses dois elementos são caracterizados. Faça o que se pede no caderno:

a)   Releia o segundo parágrafo e complete a afirmação. Para caracterizar o País do Sol são destacados:

·        Elementos geográficos.

·        Elementos políticos.

·        Elementos econômicos.

·        Elementos sociais e humanos.

b)   Caracterize:

·        O País do Sol como um todo.

Comum, com poucas ideias e poucas ações.

·        As pessoas que viviam na capital do País do Sol.

Oportunistas, aborrecidas, julgavam-se possuidoras de inteligência e bom senso.

03 – Leia:

        “[...] Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção malvista.”

a)   Por que Antenor não tinha importância alguma?

Antenor não era príncipe, nem deputado, nem rico, ou seja, para a mentalidade local, não tinha nenhuma importância social.

b)   Para haver exceção, é necessário haver a regra. Qual era a regra na capital do País do Sol e por que Antenor, naquele contexto, era a exceção?

A regra no País do Sol era o individualismo, o oportunismo, o parasitismo. Antenor era exceção por agir sempre em desacordo com essa norma.

04 – Releia o início do terceiro parágrafo e faça o que se pede no caderno:

a)   Explique a diferença entre verdade útil e verdade verdadeira.

A verdade útil é aquela que favorece quem a dita, não correspondendo necessariamente à realidade; a verdade verdadeira é a que nem sempre é aceita por todos, mas corresponde aos fatos.

b)   No contexto do País do Sol, por que falar a “verdade verdadeira” é considerado um defeito horrível?

É considerado um defeito horrível por não ser a verdade conveniente, aquela que beneficia quem a usa.

c)   Aponte três situações em que Antenor ficou em desvantagem por ser bom, honesto, sincero, cheio de ideias e por valorizar a verdade acima de tudo.

Antenor foi considerado doido furioso por querer arranjar trabalho para os mendigos e fazer correr os parasitas na rua. Antenor foi demitido de vários empregos. Depois de certo tempo, a fama de Antenor o impedia de conseguir qualquer emprego.

05 – No conto, as desvantagens de Antenor aumentam à medida que ficam claros os procedimentos e a moral das pessoas daquele país. Leia os trechos e, no caderno, relacione-os aos valores morais que os orientam:

a)   Ação sempre em interesse próprio, com o fim de levar vantagens.

b)   Intolerância ao comportamento original, honesto e desinteressado.

c)   Intolerância à capacidade e ao compromisso do outro em fazer o melhor.

d)   Amizade por interesse.

I – “[...] os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós.”

      Letra a.

II – “-- Ouça! – bradava o tio. – Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.”

      Letras a/d.

III – “-- É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro.”

      Letra c.

IV – “-- A perigosa mania de seu filho é pôr em prática ideias que julga próprias.”

      Letras b/c.

V – “Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto não o tinham explorado.”

      Letra d.

VI – “Mas, a razão sua, sem interesse, chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios.”

      Letra a.

06 – Qualidades como honestidade, bondade, inteligência eram atribuídas à má cabeça de Antenor. Isso o fez pensar na questão, na mesma época em que se apaixonou. Essa paixão será o grande desencadeador da transformação do conto. Releia os sete últimos parágrafos, depois responda no caderno:

a)   Por que houve pasmo geral com a resposta condicional de Maria Antônia?

Houve pasmo geral porque, sendo filha da lavadeira, os familiares esperavam que ela quisesse casar imediatamente com um homem de melhor condição social.

b)   Que qualidades Antenor deveria ter para “ser como os mais”?

Antenor deveria ser interesseiro, desonesto, oportunista e prejudicar as pessoas para atender aos seus interesses pessoais.

07 – Releia, depois responda no caderno: “Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido”.

a)   Nesse contexto, qual o sentido da palavra arranjar.

·        Conseguir.

·        Procurar.

·        Consertar.

·        Destruir.

b)   Na sua opinião, o que fará Antenor para arranjar a má cabeça?

Resposta pessoal do aluno.

 

 

CONTO: O CORAÇÃO COMIDO - PARTE II - GILLES MASSARDIER - COM GABARITO

 Conto: O coração comido – parte II

          Gilles Massardier

        Levei vários minutos para entender e forçar o engenhoso mecanismo da passagem secreta. Finalmente ela se abriu, com muitos rangidos e estalos, revelando uma escada de pedra em caracol, que mergulhava nas trevas; Escutei atentamente: reinava um silêncio mortal. Acendi uma tocha no braseiro e enveredei, todos os meus sentidos alertas, pela passagem, fechando a porta atrás de mim. Tinha a impressão de entrar num túmulo.

        Após uma descida que me pareceu interminável, desemboquei numa estreita tripa de pedra cujas paredes suavam de umidade e fediam a mofo. Eu devia estar nas entranhas do castelo. Uma corrente de ar glacial atravessou o tecido rústico do meu hábito. Arrepiei-me todo. Avancei lentamente rente as paredes, tendo como única luz a da minha tocha, tomando cuidado para não cair em algum alçapão.

        Meus nervos estavam no auge da tensão; o sangue palpitava em minhas têmporas.

        O arrastar das minhas sandálias nas lajotas repercutia de parede em parede, enchendo a passagem de ecos. Eu fazia mais barulho do que vinte homens juntos.

        Aquilo me tranquilizava e, ao mesmo tempo, me inquietava.

        O corredor bifurcou à direita, depois à esquerda, depois novamente à direita, antes de dar numa sala fechada por três portinhas. Abri a que estava à minha frente e passei por ela: dava num corredor, pelo qual segui. Ao fim de uma centena de metros, cheguei a uma segunda sala, também ela com várias portas. As passagens e os entroncamentos se multiplicavam infinitamente: eu estava num labirinto! Não tinha a menor intenção de abandonar minhas investigações, mas o risco de me perder naqueles subterrâneos não me entusiasmava nem um pouco. Eu tinha de tomar certas precauções, antes de aventurar-me mais profundamente por ali.

        Minhas mãos remexeram nervosamente as dobras do meu hábito e tiraram dele um tinteiro de chifre, que por sorte esquecera de guardar na biblioteca. Ele ia ser utilíssimo.

        Animado com a descoberta, continuei meu caminho naquele dédalo de túneis e corredores, desenhando com os dedos uma cruz nas paredes, a fim de marcar minha passagem. Mas a reserva de tinta não demorou a acabar. Furioso, pensei em voltar, quando o corredor que eu tomara terminou num beco. No fundo, percebi uma forma encostada na parede, sentada, imóvel, silenciosa. Após um momento de hesitação, aproximei-me. Um corpo banhava numa poça de sangue coagulado. A julgar pela rigidez cadavérica e pelo estado de decomposição, a morte devia remontar a mais de um dia, talvez dois. Tinha sido espancado brutalmente: estava coberto de ferimentos. O mais horrível, porém, era o enorme buraco no lado esquerdo do peito. Tinham arrancado seu coração!  Diante de tamanha abominação, meus cabelos ficaram em pé.

        Uma viela despedaçada, bem como as páginas ensanguentadas e rasgadas de um pequeno manuscrito, estavam espalhadas ao lado do cadáver. Peguei uma das folhas de pergaminho e decifrei seu conteúdo: o fragmento de um conto cortês que não pude identificar. A verdade revelou-se, terrível: eu havia encontrado o namorado de Béatrice!

        Subi o mais depressa que minhas pernas e o meandros do labirinto permitiam. Emergi enfim nos aposentos do barão. Nesse instante, uma voz sonora me fez estremecer:

        “Ora, vejam só, frei Adalbert! Visitando o castelo, irmão?”

        Giraud de Valgaillard me encarava. Medi então toda a minha imprudência. Fiquei petrificado, incapaz de um só movimento, a língua colada ao céu da boca, as pernas trêmulas. Larguei as folhas sangrentas que trouxera da masmorra.

        Passado o primeiro instante de estupor, recobrando o controle, sustentei seu olhar e acusei-o:

        “Eu sei de TUDO, senhor Giraud! O senhor é um ASSASSINO!”

        “Bravo! Bela réplica, frei Adalbert! Está ensaiando para um mistério?”, ele me interrompeu ironicamente.

        Sua boca contraiu-se num riso cruel.

        “Chegou na hora certa, frei Adalbert. Eu queria mesmo me confessar...”

        Fingi não entender.

        “Frei Adalbert, confesse-me!”, disse ele com uma voz sibilante, apontando para um banco.

        A cólera contida arroxeava os arranhões que marcavam sua bochecha esquerda. Sus olhos giravam loucamente nas órbitas.

        De repente sua fisionomia se aplacou; sua voz tornou-se suplicante:

        “Frei Adalbert, o senhor não pode recusar...”

        Impotente, sentei-me diante dele, pronto para ouvir a longa lista dos seus pecados.

        “O senhor certamente sabe que um fazedor de versos seduziu sua aluna, minha querida filha. Calarei as circunstâncias do encontro dos dois para entrar logo no assunto. O amor é cego, cego e imprudente... Ah, que tolos! Será que acreditavam mesmo que sua paixão nunca seria descoberta? Que eu permitiria uma aliança descabido como aquela? Anteontem, peguei em flagrante os dois pombinhos, que Agnès mimava. Com meus homens, agarrei o amante da minha filha e prometi a ela que o baniria de minhas terras sem fazer-lhe nenhum mal. Na verdade, mandei leva-lo para os subterrâneos do castelo, matei-o e, com minhas próprias mãos, arranquei-lhe o coração.”

        Ontem, fui ver minha filha em seu quarto.

        “Minha criança, eu lhe perdoo esse namorico. Como prova da minha sinceridade, você e esse... rapaz serão meus convidados de honra, esta noite mesmo.”

        “Deixei-a entregue a sua alegria recobrada, inconsciente da minha perfídia, e desci quatro a quatro os degraus que levam às dependências de serviço do castelo.”

        “Preparem a sala principal! Ponham a mesa com uma toalha branca bordada e a baixela de prata! Andem! Criados, cozinheiros, ao trabalho!”.

        “Enquanto os preparativos do banquete iam de vento em popa, chamei à parte meu cozinheiro e entreguei-lhe o coração do moço:

        “Tome! Prepare-o a seu modo. Conto com você para fazer com ele um prato saboroso, digno de uma rainha. Vai servi-lo esta noite à minha meiga filha”.

        “Chegada a hora, um serviçal anunciou o jantar com um toque de trompa. Lavamos as mãos antes de nos sentarmos à mesa. Béatrice, é claro, espantou-se ao não ver o amado.”

        “Pai, onde está ele? Por que ainda não está aqui?”

        “Calma, querida! Ele já vem. Em carne... Mandou dizer que chegará atrasado.”

        “Eu não estava com o menor apetite naquela noite, em compensação não parei de esvaziar minha taça e logo me embriaguei.”

        “De ótimo humor, minha filha provou um pouco de cada prato. Adora o coração ensopado, que repete até acabar o prato. Esquecendo-se das boas maneiras, lambe os dedos úmidos de molho.”

        “Pai, que delícia estava essa carne!!”

        “Não me espanta que tenha apreciado esse prato. Você não podia deixar de saborear, guisado e temperado, o que você adorava vivo e palpitante.”

        “Desculpe, não estou entendendo. O que o senhor me deu para comer?”

        “Minha filha, esta carne que tanto lhe agradou, outra coisa não era que o coração do seu namorado. O lindo coração lhe serviu de alimento. Aqui está a prova do que digo: o anel que tirei do cadáver do seu trovador. Ó delícias do amor!”

        “A náusea se apodera da minha filha, que se curvou para o chão e vomita. Depois, enfurecida, precipita-se sobre mim, unhas à mostra. Uma saraivada de socos e arranhões se abate sobre meu rosto e meu peito, mas continuei a zombar:”

        “Ele não queria lhe dar o coração? O desejo dele foi satisfeito! Melhor ele não podia esperar. Agora vocês estão reunidos. Você consumiu o seu amor. Devorou-o com apetite!”

        “De repente, ela se acalma; seus punhos pararam de me bater. Seu rosto perde a expressão. Suas mãos põem-se a rodopiar como se tocassem um instrumento imaginário, enquanto ela entoa uma cantilena obsessiva. Sua razão fraqueja. Ela promete ir ao encontro do amado... Presa do delírio, foge da sala. Corre para as galerias superiores e atira-se no vazio. Morreu louca e amaldiçoada.”

        “Pronto! O senhor agora sabe de toda a história, frei Adalbert. Mas para que servirá saber, se não pode contar nada a ninguém? O segredo da confissão condena o senhor ao silêncio. Quem irá cobrar por meus atos?”

        Nenhuma palavra de arrependimento, nenhum remorso saiu dos lábios do senhor Giraud. Ele até se orgulhava do seu feito! Apavorado, fugi do castelo, deixando o castelão impune.

        Dez anos se passaram desde esses terríveis acontecimentos. Soube recentemente que o Senhor Giraud de Valgaillard multiplicara suas peregrinações, antes de morrer combatendo na oitava cruzada. Sua morte foi heroica, dizem. Ele teria entrado no sangrento corpo a corpo berrando como um possesso: “Béatrice! Deus! Perdão!” Não era um grito de guerra.

        Eu, Adalbert, frade, sei da falta da qual ele tentava redimir-se, em vão. Que Deus, Nosso Senhor Onipotente, tenha piedade da sua alma!

Adaptado de Gilles MASSARDIER. Contos e lendas da Europa Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P. 22-7.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Dédalo: labirinto.

·        Impune: sem punição.

·        Mistério: peça de teatro com tema religioso.

·        Pasto: comida, alimento.

·        Perfídia: ação traiçoeira, desleal.

02 – O tom do mistério caracteriza grande parte do conto, graças a alguns recursos usados. Entre os elementos do gênero conto dados abaixo, quais contribuem para a criação do clima de mistério em “O coração comido”?

a)   A narração em primeira pessoa.

b)   A caracterização do espaço.

c)   A narração em tempo cronológico.

d)   A narração em tempo psicológico.

e)   A época em que se deram os acontecimentos.

f)    As características das personagens.

g)   O enredo.

03 – Uma fórmula narrativa é uma espécie de modelo que muitos autores usam para contar uma história. Pode-se afirmar que “O coração comido” segue uma fórmula? Dê exemplos que justifiquem sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A caracterização dos espaços sempre escuros ou sombrios, o início com um acontecimento trágico e inexplicável são elementos comuns a qualquer conto de mistério.

04 – A descrição é fundamental na construção de um conto de mistério; é por meio dela que o leitor tem a possibilidade de imaginar as personagens e os lugres descritos. Se a descrição for eficiente, poderá garantir a tensão necessária ao desenvolvimento do enredo, até o momento do desfecho. Releia os parágrafos de 2 a 5 e indique no caderno os elementos do ambiente responsáveis por manter o leitor em expectativa.

      O fato de a escada estar totalmente escura, sendo iluminada apenas pela tocha que o frei carrega; as várias bifurcações do corredor; as salas com mais de uma porta; os corredores imensos; as passagens e os entroncamentos.

05 – A partir do momento em que frei Adalbert adentra as entranhas do castelo, uma sequência de situações aumenta a tensão criada no conto. Observe que para criar essa tensão o narrador destaca a ausência de controle da personagem sobre os acontecimentos e, além disso, provoca no leitor uma expectativa em relação às soluções adotadas. Entretanto, para garantir a tensão, todas as expectativas deverão ser frustradas. Observe:

        “Minhas mãos remexeram nervosamente as dobras do meu hábito e tiraram dele um tinteiro de chifre, que por sorte esquecera de guardar na biblioteca. Ele ia ser utilíssimo.

        Animado com a descoberta, continuei meu caminho naquele dédalo de túneis e corredores, desenhando com os dedos uma cruz nas paredes, a fim de marcar minha passagem.”

·        Expectativa criada no leitor: O leitor imagina que o narrador-personagem, com esse recurso, vai poder percorrer o labirinto em segurança, sem o perigo de perder-se.

·        O que acontece: A tinta acaba, e o narrador-personagem, furioso, pensa em voltar antes de concluir a investigação.

Agora complete no caderno:

a)   Furioso, pensei em voltar, quando o corredor que eu tomara terminou num beco.

·        Expectativa criada no leitor: O leitor imagina que talvez frei Adalbert volte para o quarto do barão e deixe para depois as investigações.

·        O que acontece: Frei Adalbert depara com uma forma encostada na parede, sentada, imóvel, silenciosa.

b)  Subi o mais depressa que minhas pernas e os meandros do labirinto permitiam. Emergi enfim nos aposentos do barão.

·         Expectativa criada no leitor: O leitor é levado a acreditar que o frei, agora com as provas do crime, denunciará o barão pela atrocidade que cometeu ou que o barão matará o frei.

·        O que acontece: O barão estava em seus aposentos e aguardava o frei.

06 – A reação do frei Adalbert ao encontrar o barão a sua espera reforça a tensão narrativa:

        “Medi então toda a minha imprudência. Fiquei petrificado, incapaz de um só movimento, a língua colada ao céu da boca, as pernas trêmulas. Larguei as folhas sangrentas que trouxera da masmorra.”

a)   Frei Adalbert tinha motivos para sentir medo do barão?

Sim, pois vira do que o barão era capaz. Além disso, sabendo que o frei tomara conhecimento do assassinato do trovador, o senhor de Valgaillard poderia tentar mata-lo para não ser denunciado.

b)   O barão, no entanto, quebra a expectativa do narrador-personagem e a do leitor. Explique a estratégia adotada pelo barão para se livrar da acusação de frei Adalbert.

O barão resolve confessar tudo o que fizera, assim teria a garantia do silêncio do frei. “Pronto! O senhor agora sabe de toda a história, frei Adalbert. Mas para que servirá saber, se não pode contar nada a ninguém? O segredo da confissão condena o senhor ao silêncio.”

07 – O relato do barão revela mais do que sua personalidade assassina. Explique essa afirmação apresentando informações do texto.

     O barão, além de assassino, era frio e sádico, pois fora capaz não só de assassinar o namorado da filha, mas de agredi-la e humilhá-la fazendo-a comer o coração do amado.

08 – Ao final da confissão do castelão, o que mais surpreende o frei?

      O fato de o barão não parecer sentir remorso, não se mostrar arrependido do que fez. Ao contrário, até se orgulhava do que fizera.

09 – O desfecho do texto (penúltimo parágrafo) faz referência a um comportamento surpreendente do barão. Ao relatá-lo, o narrador sugere ter havido uma grande mudança no comportamento do pai de Béatrice.

a)   Que mudança foi essa?

O barão arrependeu-se do que fez.

b)   O que o barão resolveu fazer para aplacar esse novo sentimento?

Lutar nas cruzadas.

 

 

CONTO: O CORAÇÃO COMIDO - PARTE 1 - GILLES MASSARDIER - COM GABARITO

 Conto: O coração comido – parte 1

  Gilles Massardier

        Pam, pam, pam...  As batidas insistentes abalavam a porta do meu quarto. Pus o livro de orações em cima da mesinha bamba.

        Ouvi gritos:

        “Frei Adalbert, abra! Depressa! Oh, meu Deus!”

        Mal corri o ferrolho e entreabri a porta, uma mulher gorda, aflita, entrou no aposento. Seu rosto estava branco como um lençol. Puxou a manga do meu hábito, suplicando que fosse com ela. Percebendo a gravidade da situação, precipitei-me para fora do quarto.

        O pátio, iluminado pelas tochas, estava em efervescência. As pessoas formavam um semicírculo em torno de um corpo que eu mal conseguia ver. Ninguém ligava para a garoa. Uma velhinha rezava, ajoelhada numa poça. Fórmulas mágicas apenas murmuradas respondiam aos sinais da cruz. À minha chegada, a aglomeração se dispersou. Li em todos os rostos a estupefação e o horror, a incompreensão e a piedade. Senti um aperto no coração enquanto baixava os olhos para o corpo inanimado. A moça estava deitada, imóvel, nas pedras do chão reluzentes da chuva. Uma leve brisa brincava nos véus que cobriam sua cabeça e franzia sua túnica de linho verde. Um sapato de feltro jazia a alguns centímetros do pé nu. Apesar do ângulo esquisito que sua cabeça fazia com o busto e do sangue que manchava seus cabelos louros, Béatrice ainda era bonita.

        Bruscamente, a torrente das lembranças submergiu-me. Lembrei-me de nossos primeiro encontro, sete meses antes. Eu havia sido enviado por meu superior ao senhor Giraud de Valgaillard, um dos protetores da nossa ordem, a fim de completar a educação de sua filha Béatrice. Sua falecida mãe fizera dela uma boa cristã e uma excelente dona de casa. Mas o barão ambicionava elevar o nome da família casando-a com o melhor partido possível. Em vista disso, ele queria que ela aprimorasse o conhecimento do latim, língua dos poderosos deste mundo, assim como da música e da literatura. Sua graça natural e seus novos talentos deviam abrir-lhe as portas douradas das cortes da França ou da Inglaterra.

        Numa bela tarde de primavera, seu pai levara até ela, num pomar junto da velha morada senhorial. O ar recendia a lilás, narciso e pilriteiro. O forte perfume dessas flores subia-me à cabeça. Um rouxinol e um melro entoavam loas ao sol. No centro desse jardim encantador, num banco de pedra, Béatrice ouvia sua dama de companhia cantar, acompanhando-se à harpa.

        O chiado dos nossos passos no cascalho fez as moças se virarem e seus companheiros de canto revoarem numa onda de penas. Ela era radiante, a mais bela criatura que Deus já pôs na terra! Uma fada com uma pele de inigualável alvura. Seus pômulos altos, seu olhar sorridente e sua boca viva, cujos lábios carmim entreabertos deixavam ver seus dentes de pérola, davam-lhe um ar de atrevimento irresistível. A simplicidade do seu vestido de linho (...) realçava sua beleza natural.

        O véu do passado rasgou-se. Pouco a pouco as recordações estufaram-se. Voltei a mim. Um guarda me relatava:

        "Ela saiu correndo pelas galerias superiores; depois, sem um grito, jogou-se no vazio. Não pude fazer nada”.

        Aquela revelação foi como um soco na boca do estômago. Por pouco não desmaiei. Por que motivo Béatrice decidiu pôr fim a seus dias? Esse pensamento me revoltava.

        “Onde está o senhor Giraud? Por que não está aqui?”, exclamei, sacudindo o sentinela como se o rapaz fosse uma ameixeira.

        “Ele se trancou em seus aposentos... Ninguém tem coragem de perturbá-lo...”.

        Virei-me sem prestar mais atenção nas suas palavras e pedi que transportassem a defunta para seu leito.

        Uma vez à sua cabeceira, mandei que a lavassem. Foi nesse instante que notei a ausência de um anel de esmeralda do qual ela nunca se separava: era uma lembrança da mãe. Perplexo, examinei atentamente suas mãos. Descobri debaixo das unhas fragmentos de carne e um fio púrpura que não provinha nem da sua roupa nem da colcha avermelhada sobre a qual ela jazia. Notei também manchas de molho e de vômitos em sua túnica.

        Meu cérebro fervia de tantas perguntas. Eu não conseguia explicar nem a ausência do barão nem minhas descobertas. Tudo aquilo era estranho, muito estranho. Pouco a pouco formei a convicção de que a morte da minha aluna ocultava um terrível segredo. Prometi-me descobri-lo. Dei algumas orientações para que preparassem o corpo para sua derradeira viagem, depois desci precipitadamente a escada que levava à grande sala senhorial.

        Sua porta dupla de largos batentes entreaberta. Parei um segundo e corri os olhos pela vasta peça. Estava tal qual a deixáramos desde o jantar. As últimas achas acabavam de consumir-se na monumental lareira, enquanto a cera das velas escorria ao longo dos grandes candelabros de prata. Uma poltrona derrubada quebrava a bela ordem do lugar. Inspecionei cada canto, cada móvel, começando pela mesa.

        Ainda estava repleta dos pratos mais diversos. Fora posta para três comensais. Mas somente duas taças – a do senhor e a de sua filha – haviam sido utilizadas: um pouco de tanino permanecia no fundo de cada uma delas.  Béatrice e seu pai teriam esperado em vão uma visita? Outro detalhe me perturbava: uma só fatia de pão estava embebida de molho – um molho igual ao que eu tinha encontrado na túnica da morta.

        No chão, perto da poltrona derrubada, notei sinais de vômito. De quatro, sondei o assoalho. Debaixo da mesa, descobri o anel de esmeralda perdido no vão entre duas tábuas.

       Revirei na minha cabeça os fracos indícios que possuía. Impossível encontrar um nexo lógico entre eles! Pensei então na dama de companhia e confidente de Béatrice: Agnès. Eu sabia dos vínculos de amizade que a uniam à minha aluna. Será que ela sabia de alguma coisa? A noite ia alta; resolvi então deixar para o dia seguinte meu encontro com Agnès.

        Naquela noite, tentei em vão dormir. Eram muitas as perguntas sem resposta que turbilhonavam o meu espírito. Deitado no colchão de palha, meus olhos relutavam em fechar-se, fixos no teto descascado. Só de manhãzinha é que consegui adormecer, exausto.

        Já passava da terça quando fui ter com Agnès em seu quarto. Sentada num tamborete, ela remendava uma comprida camisola. Ergueu para mim uma cara fechada, as pálpebras inchadas de tanto chorar. Depois desviou os olhos, continuando seu trabalho. Era evidente que Agnès não tinha a menor vontade de falar comigo. Peguei-a pelo queixo, forçando-a a olhar para a joia que eu lhe mostrava.

        “Agnès, reconhece este anel?”

        Como única resposta, o sangue sumiu do rosto da moça, e ela desmaiou em meus braços! Quando voltou a si, seus olhos encheram-se de lagrimas. Tentou em vão contê-las. Seu lábio superior era agitado por um tique nervoso, suas mãos tremiam.

        “Santa Mãe misericordiosa! O anel de... Eu sabia que aquilo acabaria mal...”

        Os soluços entrecortavam suas palavras, tornando-se quase inaudíveis.

        “Vamos, vamos, minha filha... Você tem que se controlar e contar-me tudo que sabe. Preciso saber a verdade.”

        Agnès enxugou as lágrimas e inspirou profundamente para deter a disparada do seu coração. Com uma voz frouxa, ela revelou-me que Béatrice conhecera pouco tempo antes um rapaz. Trovador, nobre, mas sem dinheiro, corria o mundo, vivendo da sua pena, da sua viela e da sua espada. O barão o convidara uma noite para vir cantar umas trovas. Seus versos impressionaram muito Béatrice, seu encanto a conquistou. Resumindo, a moça ficou loucamente apaixonada por ele. Por sua vez, o rapaz não ficou nem um pouco insensível à beleza de Béatrice – beleza que ele cantou diante de todos, para grande desprazer do castelão.

        Nas semanas que se seguiram, encontraram-se às escondidas, com a cumplicidade de Agnès. Para selar um amor eterno, Béatrice deu ao jovem cavalheiro seu precioso anel de esmeralda.

        Mas os dois pombinhos ficaram cada vez mais audaciosos e imprudentes. Tanto assim que o barão, que não tinha nada de bobo, ficou a par dos encontros.

        “Dois dias atrás”, revelou-me Agnès, “o senhor Giraud e seus homens apareceram no pomar. Diante dos olhos assustados da minha senhorinha, arrancaram seu amado de seus braços, jogaram-no no chão e espancaram-no sem dó nem piedade. Ela bem que tentou protege-lo com seu corpo, mas imobilizaram-na, segurando-lhe os pulsos nas costas. Béatrice conseguiu escapar do soldado e prosternou-se aos pés do pai, implorando-lhe que poupasse a vida do amado. Obteve do barão que o moço não fosse morto, apenas expulso de suas terras. Os guardas arrastaram o pobre coitado, pés e mãos amarrados, para fora do pomar... Não sei de mais nada. Desse dia em diante, não me deixaram mais aproximar-me dela.”

        “Por que não me contou nada?”, perguntei-lhe.

        Seus ombros cederam, ela mordeu os lábios.

        “Eu estava aterrorizada... O barão é um homem violento. Eu... não tive coragem.”

        Fiz o que pude para consolar Agnès antes de afastar-me, pensativo. Quer dizer então que uma simples, uma banal história de amor havia se transformado em um tragédia?

        Tentei reconstruir os últimos instantes de Béatrice. Na última ceia, feita em companhia de seu pai, ela parece ter perdido toda esperança de rever um dia o ser amado. Uma ideia desagradável teimava na minha cabeça: o barão não era homem de deixar viva uma pessoa capaz de arruinar seus projetos matrimoniais. Só que eu precisava obter provas da sua culpa. Aproveitei uma das suas ausências para me aventurar em seus aposentos.

        A luz do dia quase não passava pelas estreitas janelas do quarto, vasto e alto. No centro do cômodo, um braseiro ardia; suas chamas refletiam-se nos móveis à volta: uma enorme cama de madeira de lei, ladeada por baús finamente esculpidos com cenas de falcoaria. Tapeçarias historiadas, cada uma mais magnífica que a outra, cobriam as paredes. Dei uma volta pelo quarto, vasculhei-o minunciosamente. Uma das tapeçarias tinha marcas de um desgaste anormal do lado esquerdo, na altura do ombro, como se fosse manipulada com frequência. Afastando com um gesto vivo o pesado tecido, descobri uma porta oculta.

Adaptado de Gilles MASSARDIER. Contos e lendas da Europa Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P.11-7.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Acha: pequeno pedaço de madeira usado como lenha.

·        Castelão: senhor feudal que vivia em castelo e administrava a justiça em sua região.

·        Falcoaria: arte da caça com falcões.

·        Historiado: decorado com personagens, geralmente de episódios das escrituras.

·        Jazer: encontrar-se; estar como morto.

·        Loa: elogio, louvor.

·        Tamborete: pequeno banco.

·        Terça: as 9 horas da manhã, de acordo com os rituais católicos.

·        Viela: antigo instrumento musical de cordas.

02 – Você acabou de ler a primeira parte do conto “O coração comido”. Resuma-a no caderno, em no máximo cinco linhas.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A jovem Béatrice, aluna de frei Adalbert e filha de um castelão poderoso, lança-se das galerias superiores do castelo node vive e morre. Intrigado com as causas do suicídio, o frei resolve investigar o caso. Agnès, ama de Béatrice, lhe dá algumas informações. O frei entra no quarto do barão.

03 – Ao longo da narrativa, fica clara a preocupação do narrador em não se limitar a contar os fatos. Com poucas palavras, ele faz referências ao ambiente onde acontecem as ações da história. Compare os trechos a seguir. Observe que cada um deles se refere a um momento diferente da história:

I – “O pátio, iluminado pelas tochas, estava em efervescência. [...] Ninguém ligava para a garoa. [...]. A moça estava deitada, imóvel, nas pedras do chão reluzentes da chuva. Uma leve brisa brincava nos véus que cobriam sua cabeça e franzia sua túnica de linho verde.”

II – “Numa bela tarde de primavera, seu pai levara até ela [...]. O ar recendia a lilás, narciso e pilriteiro. [...]. Um rouxinol e um melro entoavam loas ao sol. No centro desse jardim encantador, num banco de pedra, Béatrice ouvia sua dama de companhia cantar, acompanhando-se à harpa.”.

a)   Com qual fato vivenciado pelo narrador o trecho do primeiro quadro se relaciona? E o do segundo quadro?

O primeiro quadro está relacionado ao momento em que o narrador encontra Béatrice morta; O segundo apresenta um momento mais antigo, quando o narrador conhecera Béatrice.

b)   Que relação se percebe entre cada um desses ambientes e o fato que ocorre neles? O ambiente também está associado à situação das personagens Agnès e o senhor Giraud de Valgaillard.

O escuro da noite iluminado por tochas, a garota e uma leve brisa estão associados ao suicídio de Béatrice, um fato trágico. Já o primeiro encontro com a menina, um momento descontraído, em que ela está feliz, é relacionado à primavera, à luz do sol, ao canto dos pássaros, ao perfume das flores.

c)   Que tipo de ambiente está associado à ama Agnès antes da tragédia, isto é, onde ela se encontra no momento em que o narrador a apresenta? Qual deve ser seu estado de espírito nesse momento? E depois do suicídio?

Agnès é apresentada cantando e tocando harpa no pomar para Béatrice; pode-se pensar que esteja feliz, descontraída nesse momento. Depois da tragédia, frei Adalbert a encontra em seu quarto, chorosa e com medo da violência do senhor de Valgaillard.

d)   E o barão? Qual era sua situação sete meses antes do suicídio da filha? E logo depois da tragédia?

Sete meses antes da tragédia, o senhor de Valgaillard mostra-se um homem ambicioso, desejoso de ver a filha casada com algum nobre da corte da França ou da Inglaterra; após a tragédia, tranca-se em seus aposentos.

04 – Qual é a primeira informação que o leitor recebe sobre Béatrice?

      A informação de que ela está morta por ter se atirado das galerias do castelo de seu pai.

05 – Em seguida por meio da técnica do flashback, o leitor fica sabendo de acontecimentos anteriores da vida da moça. Portanto nesse conto o tempo é psicológico, e não cronológico. Lembrando que “O coração comido” é um conto de mistério, responda: teria sido adequado o uso do tempo cronológico?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Em um conto de mistério, o foco deve recair sobre as investigações, sobre a resolução do enigma, daí a adequação de iniciar a história pela morte de Béatrice.

06 – Qual a importância de empregar a técnica do flashback em um conto de mistério iniciado pelo fato que motivou a investigação?

      Voltar no tempo é fundamental para que as informações que explicam o acontecimento investigado venham à tona, dando sentido aos eventos narrados.

07 – Por meio de uma sequência de quadrinhos ou de frases, reconte a primeira parte de “O coração comido” usando o tempo cronológico.

      O frei é enviado ao castelo do senhor de Valgaillard para completar a educação da sua filha Béatrice; o frei conhece Béatrice; Béatrice conhece um trovador, e eles se apaixonam; o romance é descoberto pelo pai; Béatrice se atira das galerias superiores do castelo e morre; o frei é chamado e inicia suas investigações.

08 – Contado no tempo cronológico, esse conto de mistério conseguiria envolver o leitor?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: No tempo cronológico, o conto não seria tão envolvente.

09 – Ao longo da narrativa são adotados diversos tons: o trágico, o de perplexidade, o de equilíbrio e felicidade, o de mistério, o investigativo. Entre todos eles, no entanto, destacam-se os tons de mistério e o investigativo adotados pelo narrador-personagem a certa altura do texto.

a)   Que mistério ocupará os pensamentos do narrador-personagem, frei Adalbert?

A razão do suicídio de Béatrice é o mistério que intriga frei Adalbert, já que ela era uma moça feliz e cheia de vida.

b)   Em que momento da narrativa fica claro o tom investigativo da história?

No momento em que frei Adalbert, ao examinar as mãos da jovem morta, nota a ausência do anel de esmeralda.

10 – No caderno, faça um levantamento dos dados observados por frei Adalbert e que, na sua opinião, poderiam ajudar a desvendar o mistério.

      Resposta pessoal do aluno.

11 – Releia o depoimento de Agnès ao frei. Mentalmente, relacione o depoimento da ama aos dados anotados na questão 10 e a esta constatação de Adalbert:

        “Uma ideia desagradável teimava na minha cabeça: o barão não era homem de deixar viva uma pessoa capaz de arruinar seus projetos matrimoniais. Só que eu precisava obter provas da sua culpa.”

        Elabore uma hipótese que explique a causa da morte de Béatrice. Essa hipótese deve explicar todos os dados e as evidências encontrados por frei Adalbert.

      Resposta pessoal do aluno.

12 – Releia o trecho final da primeira parte do conto: “A luz do dia quase não passava pelas estreitas janelas do quarto, vasto e alto. No centro do cômodo, um braseiro ardia; suas chamas refletiam-se nos móveis à volta: uma enorme cama de madeira de lei, ladeada por baús finamente esculpidos com cenas de falcoaria. Tapeçarias historiadas, cada uma mais magnífica que a outra, cobriam as paredes.”

        Nesse trecho foi usado um recurso que revela o lado sombrio e sinistro do barão Valgaillard. Que recurso é esse?

      A descrição do espaço: os aposentos do barão quase não recebem luz, há no centro um braseiro cujas chamas refletem-se nos móveis. Trata-se de um ambiente que mistura luxo e mistério.