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terça-feira, 14 de maio de 2019

CONTO: OS LAÇOS DE FAMÍLIA - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

Conto: Os laços de família               

              Clarice Lispector

       A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza assistia.
        — Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe.
        — Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com paciência.
        Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. “Perdoe alguma palavra mal dita”, dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar – perturbado em ser o bom genro. “Se eu rio, eles pensam que estou louca”, pensara Catarina franzindo as sobrancelhas. “Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais um”, acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara sua gripe para tossir. Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho daquela mulherzinha grisalha… Foi então que a vontade de rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se mais estrábicos – e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos, desde sempre fora estrábica.
        — Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não impedira que… – Catarina olhava-os e ria.
        — O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi avançava monótono.
        — Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão.
        — Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente. Era um menino nervoso, distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante, dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha. Antônio, que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, “a proteger uma criança” …
        — Não esqueci de nada…, recomeçou a mãe, quando uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. — Ah! ah! – exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina?
        Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acontecera um desastre? seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora mais amiga. Quando a mãe enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar – por que não chegavam logo à Estação?
        — Não esqueci de nada, perguntou a mãe com voz resignada.
        Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe.
        — Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão.
        — Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa. Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem, depois de trocados os beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela.
        Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes.
        O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se “mãe e filha” fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa, e fitava-a sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçar-se por dar aos outros alguma impressão, da qual o chapéu faria parte. A campainha da Estação tocou de súbito, houve um movimento geral de ansiedade, várias pessoas correram pensando que o trem já partia: mamãe! disse a mulher. Catarina! disse a velha. Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de um carregador interrompeu-lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina, deslocando-lhe a gola do vestido. Quando puderam ver-se de novo, Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada…
        — …não esqueci de nada? perguntou a mãe.
        — Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e ambas se olhavam atônitas – porque se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais. Uma mulher arrastava uma criança, a criança chorava, novamente a campainha da Estação soou… Mamãe, disse a mulher. Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha.
        — Não vá pegar corrente de ar! gritou Catarina.
        — Ora menina, sou lá criança, disse a mãe sem deixar porém de se preocupar com a própria aparência. A mão sardenta, um pouco trêmula, arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai:
        — Dê lembranças a titia! gritou.
        — Sim, sim!
        — Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da fumaça as rodas já se moviam.
        — Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao primeiro solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe até o nariz, deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já andava e Catarina acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o chapéu, o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela – o rosto estava inclinado sem sorrir, talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante.
        No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta, as sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. Sem a companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais fácil. Alguns homens a olhavam, ela era doce, um pouco pesada de corpo. Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju. E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade – tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja – a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza. Estava muito bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos qualquer pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo. Espiava as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos carros, conseguiu aproximar-se do ônibus burlando a fila, espiando com ironia; nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau misterioso nos seus dias.
        O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão; parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito. Antônio mal levantou os olhos do livro. A tarde de sábado sempre fora “sua”, e, logo depois da partida de Severina, ele a retomava com prazer, junto à escrivaninha.
        — “Ela” foi?
        — Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho. Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito. Seu filho. Magro e nervoso. Desde que se pusera de pé caminhara firme; mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos: constatava as coisas com frieza, não as ligando entre si. Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura: este menino! Mas o menino olhava indiferente para o ar, comunicando-se consigo mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém conseguira ainda chamar-lhe verdadeiramente a atenção. A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele dizia “mamãe” nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe, quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolos a verdade caberia, só em símbolos é que a receberiam. Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a.
        — Vamos passear! respondeu corando e pegando-o pela mão.
        Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a porta do apartamento.
        Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro – e com surpresa espiava a sala já vazia. Catarina! chamou, mas já se ouvia o ruído do elevador descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo e assoando o nariz. Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado. Catarina! chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo. Levantou-se, foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada.
        Os dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E de súbito pondo-se em marcha.
        Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa, com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também olhava fixo para a frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar. Os cabelos da criança voavam…
        O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho… mas o quê? “Catarina”, pensou, “Catarina, esta criança ainda é inocente!” Em que momento é que a mãe, apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem. Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de pé diante desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça; preso. Obrigado a responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança. E com que sombrio prazer. Agora mãe e filho compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem. “Catarina”, pensou com cólera, “a criança é inocente!” Tinham porém desaparecido pela praia. O mistério partilhado.
        “Mas e eu? e eu?” perguntou assustado. Os dois tinham ido embora sozinhos. E ele ficara. “Com o seu sábado.” E sua gripe. No apartamento arrumado, onde “tudo corria bem”. Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas e dos quadros? fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um engenheiro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e cheio de futuro – desprezava-a também, com aqueles olhos sonsos, fugindo com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não poderia continuar a lhe dar senão: mais sucesso. E porque sabia que ela o ajudaria a consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivesse vivido sempre. As relações entre ambos eram tão tranquilas. Às vezes ele procurava humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? no entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas tinha se habituado a torna-la feminina deste modo: humilhava-a com ternura, e já agora ela sorria – sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações pacíficas, e aquelas conversas em voz tranquila que faziam a atmosfera do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às vezes o menino se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. De onde nascera esta criaturinha vibrante, senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária. Viviam tão tranquilos que, se se aproximava um momento de alegria, eles se olhavam rapidamente, quase irônicos, e os olhos de ambos diziam: não vamos gastá-lo, não vamos ridiculamente usá-lo. Como se tivessem vívido desde sempre.
        Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria – sozinha. Sentira-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia tomar seus momentos – sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher entre o trem e o apartamento? não que a suspeitasse mas inquietava-se.
        A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre os objetos. As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça de irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício. Quando Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria no primeiro sono, Catarina interromperia um momento o jantar… e o elevador não pararia por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um instante.
        — “Depois do jantar iremos ao cinema”, resolveu o homem. Porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador.

Extraído do livro: Laços de Família, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998.

Entendendo o conto:

01 – Severina passara quinze dias na casa da filha e do genro. Observe o diálogos entre a sogra e o genro.
a)   Como se caracteriza a relação entre eles? Indique um trecho que comprove sua resposta.
Uma relação de tolerância e falsidade, conforme explicita o trecho “Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado”.

b)   Na hora da despedida, Catarina sente vontade de rir. Por quê?
Porque percebe o comportamento falso da mãe e do marido, que querem passar por sogra e genro exemplares.

02 – Nos contos de Clarice Lispector, é comum um fato banal do cotidiano desencadear um processo de epifania, isto é, um processo de revelação, de tomada de consciência da personagem.
a)   Que fato desencadeia um processo epifânico no relacionamento entre mãe e filha?
A freada brusca do carro que as aproxima fisicamente.

b)   A partir desse momento, o que se revela à Catarina quanto ao relacionamento com a mãe? Por quê?
A proximidade física entre as duas evidencia o quanto elas tinham se distanciado nos últimos anos e o quanto o relacionamento entre elas era artificial e convencional.

03 – Releia este fragmento do conto: “A mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se “mãe e filha” fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso.”

a)   Na prosa de Clarice, é comum o emprego de metáforas ou de antíteses e paradoxos surpreendentes. Identifique nesse trecho um exemplo de um desses recursos.
“Como de ‘mãe e filha’ fosse vida e repugnância”; “Sua mãe lhe doía”.

b)   Dê uma interpretação coerente à frase: “Sua mãe lhe doía”.
A mãe, para Catarina, era como uma ferida aberta, um problema não resolvido, que doía constantemente, pedindo uma solução.

04 – Há diferentes formas de o narrador inserir os pensamentos das personagens na narrativa. Ele pode fazê-lo, por exemplo, de modo linear, delimitando nitidamente a voz do narrador e o pensamento das personagens; pode também empregar o discurso indireto livre, misturando a fala do narrador com a fala das personagens; pode, ainda, inserir pensamentos das personagens simultaneamente ao acontecimento dos fatos. No fragmento reproduzido na questão anterior:
a)   De que modo o narrador introduz o pensamento das personagens?
Ele o introduz simultaneamente ao acontecimento dos fatos.

b)   Que efeito esse recurso provoca no andamento da narrativa?
A narrativa se torna mais dinâmica e profunda, pois o leitor consegue saber o que a personagem está pensando enquanto está agindo.

c)   O que se destaca mais na literatura de Clarice Lispector: o enredo ou a introspecção psicológica das personagens? Por quê?
A introspecção psicológica. O enredo normalmente é secundário; ele interessa na medida em que cria situações que levam a reflexões sobre o ser humano.

05 – Os diálogos entre mãe e filha são repetitivos e vazios, evidenciando uma oposição entre o que é dito e o que é pensado.
a)   Constantemente Severina diz “Não esqueci de nada...”. Considerando o relacionamento das duas, o que elas realmente poderiam estar esquecendo?
Poderiam estar se esquecendo de conversar sobre elas mesmas, como mãe e filha, como pessoas, e não apenas como papéis sociais convencionais.  

b)   Com base em elementos do texto, responda: O que as duas personagens efetivamente gostariam de ter dito? O que as impede de dizerem uma à outra o que realmente pensam e sentem?
Gostariam de dizer coisas íntimas, significativas para a vida delas, como o sentimento de mãe e filha, ou sobre a vida familiar. Elas não diziam essas coisas porque pareciam estar acostumadas à situação, endurecidas pelo hábito e sem forças para começar um novo relacionamento.

06 – Clarice, em vários de seus contos, retrata a condição da mulher na sociedade, o casamento sem amor e a vida alienada da mulher o lado do marido. No conto “Os laços de família”, o processo epifânico vivido por Catarina faz com que ela chegue a sua casa diferente, mudada. E a palavra que o filho lhe diz parece dar continuidade ao processo epifânico.
a)   Que efeito tem sobre o marido a iniciativa de Catarina de sair do apartamento com o filho?
Catarina desestrutura a vida do casal, construída sobre certa estabilidade financeira e papéis sociais convencionais: ela dona de casa dedicada, ele um engenheiro bem-sucedido.

b)   Considerando “Os laços de família” (título do conto) observados entre Catarina e a mãe, troque ideias com os colegas e dê uma interpretação coerente: Por que Catarina toma a iniciativa de sair do apartamento com o filho, sem comunicar ao marido?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Parece que Catarina não quer que a história entre ela e a mãe se repita entre ela e o filho. A atitude que ela toma é uma forma de romper a cadeia das relações familiares superficiais e convencionais.

c)   Na sua opinião, Catarina vai voltar?
Resposta pessoal do aluno.

07 – Com base no conto “Os laços de família”, responda: Mesmo trabalhando com o universo da consciência individual de personagens, a literatura de Clarice Lispector consegue ser também social? Justifique sua resposta. 
      Sim, pois acaba fazendo uma crítica à fragilidade e à superficialidade das relações familiares.



quinta-feira, 14 de março de 2019

BIOGRAFIA: VOANDO PARA O RIO(CLARICE LISPECTOR) - BENJAMIN MOSER - COM GABARITO

BIOGRAFIA: VOANDO PARA O RIO(CLARICE LISPECTOR)
                        Benjamin Moser


        Quando Clarice Lispector tinha 15 anos, um ano depois de descobrir a possibilidade de escrever, seu pai fez sua última mudança. O destino agora era o Rio de Janeiro.
        O Rio estava no auge de sua reputação internacional. Se anteriormente os navios que viajavam a Buenos Aires anunciavam que não faziam escalas no Brasil – a mente estrangeira, quando pensava no país, imaginava um lugar infestado de macacos, febre amarela e cólera –, o Rio tinha se transformado num dos destinos mais chiques do planeta. Cruzeiros afluíam para a Baía de Guanabara, descarregando seus abastados passageiros nos novos hotéis que imitavam os brancos bolos de noiva originais da Riviera francesa: o Hotel Glória, perto do Centro, inaugurado em 1922; o lendário Copacabana Palace, inaugurado um ano depois, numa praia que ainda ficava fora da cidade. [...]
        Pedro Lispector tinha mais em comum com os imigrantes portugueses do que com aqueles que agora eram seus companheiros nordestinos. Depois de anos de trabalho, seus negócios ainda não estavam prosperando, e ele tinha esperança de que a capital do país oferecesse um campo mais amplo para suas ambições. Esperava também que o Rio de Janeiro, com uma grande comunidade judaica, pudesse oferecer maridos apropriados para suas filhas. Elisa agora tinha 24 anos, Tania estava com vinte e Clarice, quinze. [...]
        Clarice nunca descreveu a partida do Recife, onde ela passara toda a sua infância. Lembrava-se do barco inglês que as levara ao Rio na terceira classe: “Foi terrivelmente exciting. Eu não sabia inglês e escolhia no cardápio o que meu dedo de criança apontasse. Lembro-me de que uma vez caiu-me feijão-branco cozido, e só. Desapontada, tive que comê-lo, ai de mim. Escolha casual infeliz. Isso acontece”. [...]
        Depois de chegar ao Rio, em 1935, ela passou um breve tempo numa precária escola de bairro na Tijuca antes de entrar, em 2 de março de 1937, no curso preparatório para a Faculdade de Direito da Universidade do Brasil. [...] No Brasil inteiro, a carreira no direito era reduto da elite, e nenhuma escola do país tinha mais prestígio do que a da capital. [...]
        A carreira, porém, não foi o que motivou Clarice a entrar na escola de Direito. A ânsia de justiça estava inscrita em seus ossos. Tinha visto a horrível morte da mãe, e seu brilhante pai, incapaz de estudar, reduzido ao comércio ambulante de tecido. Cresceu pobre no Recife, mas sempre teve consciência de que sua família, apesar das dificuldades, estava melhor de vida que muitas outras. [...] “E eu sentia o drama social com tanta intensidade que vivia de coração perplexo diante das grandes injustiças a que são submetidas as chamadas classes menos privilegiadas”. [...]
        Ela mudara de perspectiva pouco antes de começar o curso. Durante o primeiro ano na faculdade descobrira um canal para dar vazão a sua verdadeira vocação, e em 25 de maio de 1940 publicou seu primeiro conto conhecido, “Triunfo”, na revista Pan.

MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
Entendendo o texto:
01 – Quem é o autor deste texto? De que se trata?
      Foi escrito por Benjamin Moser. Conta a história vivida pela Clarice na época de sua mudança para o Rio.

02 – Com que idade Clarice Lispector descobriu a possibilidade de se tornar escritora?
      Ela tinha 14 anos, quando descobriu o dom para ser escritora.

03 – Clarice, aos 15 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro com sua família. Como a cidade era vista na época?
      O Rio estava no auge da sua reputação internacional. Era vista como um destino mais chique do Planeta.

04 – Quantas irmãs tinha Clarice? Qual o nome delas?
      Tinha 02 (duas) irmãs. Elisa, 24 anos e Tania, 20 anos.

05 – De acordo com o texto, em que ano ela chegou ao Rio? E quando foi feito o curso preparatório para a faculdade?
      Chegou ao Rio em 1935. Ela fez o curso em 1937, para a faculdade de Direito da Universidade do Brasil.

06 – O que motivou Clarice Lispector a ingressar na escola de Direito?
      A ânsia de justiça, por tudo o que eles tinham visto e passado.

07 – Que sentido tem a expressão em destaque no trecho “A ânsia de justiça estava inscrita em seus ossos”?
      Refere-se a vida de sofrimento, injustiça e dificuldades, pela qual eles tinham passados.

08 – Por que foram usadas as aspas no trecho “E eu sentia o drama social com tanta intensidade que vivia de coração perplexo diante das grandes injustiças a que são submetidas as chamadas classes menos privilegiadas”?
      Foi utilizada para dar mais ênfase (importância) para o assunto.

09 – Quando e qual era o nome da sua primeira publicação?
      Foi publicado em 25 de maio de 1940, na Revista Pan. Com o nome de “Triunfo”.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

POEMA PARA SÉRIES INICIAIS: LAURA - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

Poema: Laura



Laura vive apressadinha.
Por que tanta pressa, oh, Laura?
Pois ela não tem nada o que fazer.
Esta pressa é uma das bobagens de Laura.
Mas ela é modesta:
Basta-lhe cacarejar um bate-papo
Sem fim com as outras galinhas.
As outras são muito parecidas com ela:
Também meio ruiva e meio marrom.
Só uma galinha é diferente delas:


Uma carijó toda de enfeites preto e branco.
Mas elas não desprezam a carijó por ser de outra raça.
[...]
                         Clarice Lispector. A vida íntima de Laura.
                               Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
Entendendo o poema:
01 – Como é Laura?
      É uma galinha apressadinha, modesta, adora conversar.

02 – Em que Laura e a galinha carijó são diferentes?
      Laura é meio ruiva e meio marrom. A galinha carijó é toda de enfeites preto e branco.

03 – Para você, as diferenças físicas são importantes?
      Resposta pessoal do aluno.

04 – O que mais a Laura gosta de fazer?
      Bate-papo com as outras galinhas.

05 – Quem é a autora do texto?
      Clarice Lispector.


domingo, 4 de novembro de 2018

CONTO: CEM ANOS DE PERDÃO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

Conto: Cem anos de perdão             

                          Clarice Lispector

        O conto se passa em um bairro rico de Recife, próximo a um palacete. Este lugar, que tem a beleza como uma de suas principais características, tem um jardim também muito bonito, que chama a atenção das personagens do conto. A partir daí, a história “começa” (fatos importantes ocorrem).
        Um dia, duas meninas passaram por esse bairro e avistaram tal palacete, que chamava a atenção. Elas queriam se apropriar dele, mas não podiam. Uma delas ficou encantada com uma das rosas que viram neste mesmo lugar, e então, a roubou, tomando cuidado para não ser vista. O enredo basicamente se desenvolve em torno dos pensamentos para tal roubo, já que o desejo por aquela rosa, para esta menina, era tão grande. Enquanto ela pegava as rosas, sua amiga vigiava, para que ninguém as visse. Com o passar do tempo, passaram a roubar não só rosas com frequência, como pitangas também.
        Apesar do narrador dizer que não se arrepende por roubar rosas quando pequena, o leitor nota que ela nunca esqueceu esse fato, conservando em sua memória todos os detalhes (inclusive os emocionais) da primeira vez em que roubou rosas, e procurando desculpar-se ao dizer que tem cem anos de perdão.
        Podemos classificar resumidamente, as partes que constituem o conto, tais como a situação inicial, o conflito, o clímax e o desenlace. A situação inicial é basicamente o fato das duas amigas olharem para os palacetes. O conflito se dá quando uma delas teve o desejo de uma flor. O clímax, por sua vez, é o roubo da flor, pois o resto do conto se baseia em tal ato. Já o desenlace, é o fato das meninas passarem a não roubarem apenas flores, como pitangas também, e isso indica que ambas gostaram e continuaram o que estavam fazendo (roubar).
        Apenas duas personagens fazem parte deste conto e estas são apresentadas ao leitor logo no começo. Ao decorrer deste, alteramos a imagem que tínhamos sobre ambas, pois não imaginaríamos que elas roubariam flores/pitangas, já que no começo, parecem ser inocentes.  Uma destas meninas é a narradora. Ela pode ser caracterizada por uma narradora em primeira pessoa protagonista, e também conta a história através de uma posição central, pois já que não narrou algo momentâneo, está distante dos acontecimentos, mas apesar disto, nos conta detalhadamente tudo o que aconteceu, e então, notamos que todos os eventos, personagens e elementos da história giram ao seu redor.  Já a sua amiga, pode ser caracterizada como uma personagem co-protagonista, pois possui uma relação próxima com o protagonista e o ajuda na busca de seu objetivo, ou seja, no roubo das rosas.
        O espaço em que o conto se passa compromete o que as personagens farão ao decorrer do mesmo, isto é, o que elas fizeram dependeu de onde estavam. Pelo fato de, logo no começo, avistarem um palacete que se situava em um bairro rico, ficaram comovidas com o mesmo e é a partir desta comoção que o conto se desenvolve. 
        Notamos que, para o narrador, a rosa era um desejo inevitável, ou seja, a menina tinha necessidade de possuí-la. Não sabemos ao certo porque ela tinha um desejo tão grande em roubar rosas, talvez para tentar substituir outras necessidades que tinha, como o desejo daqueles palacetes, ou apenas por vontade de cometer um erro.
        Quando a menina se depara com a rosa, se distancia daquilo imposto pela sociedade (cultura), ou seja, da proibição do roubo, e então, a partir daí, os valores, os princípios, as normas, as regras e os costumes são deixados de lado. A menina deseja a rosa, sem medo do que pode acontecer, pois enfrenta com muita naturalidade o fato de ter que roubá-la se quiser possuí-la. Este ato é considerado natural, apesar de parecer errado. A menina então enfrenta o mal e experimenta praticar ações consideradas pela sociedade como criminosas, assim como dito anteriormente.
        Pode-se perceber que esse conto relaciona o ato de roubar flores e pitangas com o erotismo, que não se expressa explicitamente. Ao decorrer da narrativa, imaginamos detalhadamente as descrições deste ato e o conto nos surpreende, pois logo no começo notamos que ele seria simples, mas depois, tudo muda. A autora faz com que nos aprofundemos mais na história narrada, devido ao aprofundamento na descrição detalhada do roubo da rosa e das pitangas, e a predominância da cor vermelha. Esse conto nos comove, pois a menina não queria apenas furtar flores e pitangas.

Entendendo o conto: 
01 – Quais são as personagens principais?
      O Autor, duas meninas, o Jardineiro.

02 – O que acontece na história?
      O texto fala de uma menina que queria uma rosa, mas como o jardineiro não dava, ela decidiu roubar, quando ela finalmente conseguiu, a rosa se espedaçou.

03 – Em que tempo e em que lugar se passa a história narrada?
      Num dia lindo ensolarado, num castelo.

04 – Quem narra? É possível ser identificado? Dá para saber quem está contando a história?
      O narrador-personagem. Sim. Sim porque ao ler podemos identificar que tem uma pessoa contando a história.

05 – O narrador conta de fora ou ele também é um dos personagens?
      Ele também é um personagem.

06 – Há tema (uma situação) abordado por este texto que tem semelhança com uma situação do conto “A Bela e a Fera”. Qual é esta situação?
      Porque assim como a menina roubava as rosas o pai da bela também roubou a rosa do castelo do monstro.

07 – Faça um resumo da História: (Mínimo de 5 linhas, uso suas próprias palavras)
      Num dia lindo, duas meninas estavam brincando na rua, quando uma das meninas viu uma rosa, e fica fascinada com a beleza da rosa, sabendo que o jardineiro é muito cuidadoso com seu jardim. A garota resolveu roubar a rosa com a sua amiga, ela roubou, mais ao roubar a rosa começou a se despedaçar na sua mão.











sexta-feira, 2 de novembro de 2018

CONTO: RESTOS DO CARNAVAL - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

Conto: Restos do carnaval
              Clarice Lispector

        Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.
        No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.
        E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
        Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.
        Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
        Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.
        Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola. Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem.
        Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
        Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
        Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me.
        Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
        Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

 Clarice Lispector, no livro “Felicidade clandestina”. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Entendendo o conto:

01 – “Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança.”
O excerto anterior apresenta uma figura de estilo denominada:
a) perífrase.
b) anacoluto.
c) metonímia.
d) antonomásia.

02 – Os “restos do carnaval” a que se refere a autora, no título do texto, pode ser entendido como um(a)
a) referência à fantasia feita para ela com as sobras de papel crepom da fantasia da amiga.
b) encantamento pela atmosfera que tomava toda a cidade após as festividades carnavalescas.
c) referência à festa simples e pouco alegre que era destinada à narradora em épocas carnavalescas.
d) referência às migalhas de felicidades às quais ela se agarrava para viver diante da crueldade mundana.

03 – O último carnaval traz à memória da autora os carnavais de sua infância. Na primeira parte do texto, ela nos fala daqueles carnavais em geral. Na segunda parte, de "um carnaval diferente dos outros". O que fez a diferença?
     O carnaval foi diferente porque, pela primeira vez, ela poderia se fantasiar e participar da festa (6º parágrafo)
     —"Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida, eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma". 

04 – A afirmação "eu fora desencantada" (décimo parágrafo) resume o sentimento da autora diante do modo como tudo acabou acontecendo naquele carnaval diferente. Como podemos interpretar a afirmação? 
      O incidente quebrou o encanto de ter ganhado a fantasia.

05 – No último parágrafo, a autora nos diz: "Só horas depois é que veio a salvação". Por que o gesto do menino acabou sendo tão importante para a menina? 
      Ela se considerou reconhecida com o gesto do menino quando nada mais restava da festa que quase tinha acontecido.

06 – No nono parágrafo, a autora nos diz que coisas piores lhe aconteceram e ela perdoou, mas que o acontecido naquele carnaval diferente "não posso sequer entender agora". Por quê? 
      Ela ainda não entende que, na vida, tudo resulte de um jogo de dados de um destino irracional. 

07 – No segundo parágrafo, a autora diz: "Ah, está se tornando difícil escrever." Qual é a razão para esse desabafo da autora neste ponto do texto?
      As lembranças de que tão pouco era suficiente para deixá-la feliz na infância deixam seu coração escuro ('apertado') e ela sente dificuldades de pôr estes sentimentos no papel.

08 – “… Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.”
Todo esse segmento é uma exemplificação do período anterior, através do termo:
a) orgulho.
b) irracional.
c) impiedoso.
d) jogo de dados.

09 – O trecho que inicia a história principal da narrativa é:
a) “Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância…”
b) “Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar.”
c) “Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco.”
d) “Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.”

10 – No trecho “… economizava-as com avareza para durarem…”, o pronome destacado retoma o termo:
a) várias fantasias.
b) altas horas da noite.
c) duas coisas preciosas.
d) máscaras de rosa escarlate.

11 – No excerto “Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.”, predomina a linguagem:
a) coloquial.
b) pejorativa.
c) denotativa.
d) conotativa.

12 – “Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.”  
Os termos sublinhados anteriormente exercem entre si uma ação:
a) similar.
b) antitética.
c) recíproca.
d) qualitativa.

13 – Relacione as colunas de acordo com o sinônimo das palavras empregadas no texto e, em seguida, assinale a alternativa que apresenta a sequência correta.
(1) Ávida.                           (4) Triste.                          
(2) Avareza.                       (5) Arrebatamento.
(3) Acedia.                         (1) Sôfrega.
(4) Melancólico.                 (3) Anuía.
(5) Êxtase.                         (2) Sovinice.
a) 4 – 1 – 5 – 2 – 3
b) 5 – 1 – 2 – 4 – 3
c) 1 – 4 – 3 – 5 – 2
d) 4 – 5 – 1 – 3 – 2.