Conto: Cavalos selvagens
Lygia Fagundes Telles
O homem de grandes negócios fecha a
pasta de zíper e tom o avião da tarde. O homem de negócios miúdos enche o bolso
de miudezas e toma o ônibus da madrugada. A mulher elegante faz Cooper e sauna
na quinta-feira. A mulher não elegante faz feira no sábado. A freira faz
orações diariamente em horas certas. A prostituta faz o trottoir todos os dias
em certas horas. O patriarca joga bridge e faz amor segundo o calendário. O
operário joga bilhar e faz amor nos feriados. Homens, mulheres e crianças –
todos com seus dias previstos e organizados: amanhã tem missa de sétimo dia,
depois de amanhã tem casamento. Batizado na terça e, na quarta, macarronada,
que a feijoada fica para sábado, comemoração prévia do futebol de domingo,
vitória certa, ora sei!... As obedientes engrenagens da máquina funcionando com
suas rodinhas ensinadas, umas de ouro, outras de aço, estas mais simples, mais
complexas aquelas lá adiante, azeitadas para o movimento que é uma fatalidade,
taque-taque taque-taque… Apáticos e não apáticos, convulsos e apaziguados,
atentos e delirantes em pleno funcionamento num ritmo implacável.
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiqW4pMBKTX_shbx8e65ecrB8dwWW8SDAD12NmiAdnOFjEUo0DQ38V_QAMsHVYGuE439d1PP6Y62weCNqyxDDrkFx7xzqk4xdB4Kcsq2uj_e6dCcY6A4e6Vqg6kSEGKGEqQexKGphdOO8Lg5W0KGdzYKdXT0J8faXBPiqvYR8P7RoKOtXGC5PYS7TWWwgE/s320/cavalosselvagens-240411195611-d94f9e7e-thumbnail.jpg
Às vezes, por motivos obscuros ou
claros, uma rodinha da engrenagem salta fora e fica desvairada além do tempo,
do espaço – onde? A máquina prossegue no seu funcionamento que é uma
condenação, apenas aquela rodinha já não faz parte dessa ordem. “É um
desajustado” – diz o médico, o amigo íntimo, o primo, a mulher, a amante, o
chefe. Há que readaptá-lo depressa à engrenagem familiar e social, apertar
esses parafusos docemente frouxos. Se o desajustado é um adolescente, mais
fácil reconduzi-lo com a ajuda psicólogos, analistas, padres, orientadores,
educadores – mas por que ele ainda não está nos eixos? Por que tem que haver
certas peças resistindo assim inconformadas? Não interessa curá-lo, mas
neutralizá-lo, taque-taque taque-taque.
Pronto, passou a crise? Todos
concordam, ele está ótimo ou quase. Mas às vezes o olhar tem aquela expressão
que ninguém alcança e volta o fervor antigo, cólera e gozo nos descompromissamentos
e rupturas – aguda a lembrança violenta do cheiro de mato que recusa o asfalto,
o elevador, a disciplina, ah! vontade de fugir sem olhar para trás, desatino e
alegria de um cavalo selvagem, os fogosos cavalos de crina e narinas frementes,
escapando do laço do caçador. Na história de Arthur Miller, eram os pobres
cavalos selvagens destinados a uma fábrica que os transformaria num precioso
produto enlatado. O instinto, só o instinto os advertia das armadilhas nas
madrugadas. E fugiam galopando por montes, rios, vales – até quando?
Inexperiência ou cansaço? Cavalos e
homens acabam por voltar à engrenagem. Muitos esquecem mas alguns ainda se
lembram e o olhar toma aquela expressão que ninguém entende, ânsia de
liberdade. De paixão. Em fragmentos de tempo voltam a ser inabordáveis mas a
máquina vigilante descobre os rebeldes e aciona o alarme, mais poderoso o
apelo, taque-taque TAQUE-TAQUE! Inútil. Ei-los de novo desembestados: “Laçá-los
é o mesmo que laçar um sonho”.
Lygia Fagundes Telles,
A disciplina do amor. 2 ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. p. 131-2.
Fonte: Português. Série
novo ensino médio. Volume único. Faraco & Moura – 1ª edição – 4ª impressão.
Editora Ática – 2000. São Paulo. p. 13-14.
Entendendo o conto:
01 – Qual é a metáfora central
utilizada no conto "Cavalos Selvagens" para descrever a sociedade?
A sociedade é
comparada a uma máquina com engrenagens, representando a rotina e a
padronização da vida cotidiana.
02 – O que representam os
"cavalos selvagens" no contexto do conto?
Os cavalos
selvagens simbolizam a liberdade, o desejo de romper com a rotina e a
resistência à conformidade social.
03 – Qual é a atitude da
sociedade em relação àqueles que se desviam da norma?
A sociedade busca
"readaptar" os "desajustados", neutralizando sua
individualidade e reconduzindo-os à engrenagem social.
04 – Como o conto aborda a
questão da liberdade individual versus a conformidade social?
O conto explora a
tensão entre o desejo de liberdade e a pressão para se conformar às normas
sociais, mostrando a luta entre a individualidade e a padronização.
05 – Qual é o significado da
frase "Laçá-los é o mesmo que laçar um sonho"?
Essa frase
destaca a dificuldade de aprisionar o desejo de liberdade e a natureza
intangível dos sonhos e aspirações individuais.
06 – De que forma Lygia
Fagundes Telles usa a linguagem para transmitir a sensação de opressão e desejo
de liberdade?
A autora utiliza
uma linguagem concisa e direta para descrever a rotina opressiva, intercalando
com passagens poéticas que evocam a beleza e a intensidade da liberdade.
07 – Qual é a mensagem
principal que Lygia Fagundes Telles busca transmitir com o conto "Cavalos
Selvagens"?
A mensagem
principal é uma reflexão sobre a natureza da liberdade individual e a luta
contra as forças da conformidade social, além de instigar o leitor a questionar
a própria relação com a rotina e os desejos de liberdade.