Conto: A ARANHA
Orígenes Lessa
-- Quer assunto para um conto? –
perguntou o Eneias, cercando-me no corredor.
Sorri.
-- Não, obrigado.
-- Mas é assunto ótimo, verdadeiro,
vivido, acontecido, interessantíssimo!
-- Não, não é preciso... Fica para
outra vez...
-- Você está com pressa?
-- Muita!
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-- Bem, de outra vez será. Dá um conto
estupendo. E com esta vantagem: aconteceu... É só florear um pouco.
-- Está bem... Então... até logo...
Tenho que apanhar o elevador...
Quando me despedia, surge um terceiro.
Prendendo-me à prosa. Desmoralizando-me a pressa.
-- Então, que há de novo?
-- Estávamos batendo papo... Eu estava
cedendo, de graça, um assunto notável para um conto. Tão bom, que até comecei a
esboçá-lo, há tempos. Mas conto não é gênero meu – continuou o Eneias, os olhos
muito azuis transbordando de generosidade.
-- Sobre o quê? – perguntou o outro.
Eu estava frio. Não havia remédio. Tinha
que ouvir, mais uma vez, o assunto.
-- Um caso passado. Conheceu o Melo,
que foi dono de uma grande torrefação aqui em São Paulo, e tinha uma ou várias
fazendas pelo interior?
Pergunta dirigida a mim. Era mais fácil
concordar:
-- Conheci.
-- Pois olhe. Foi com o Melo. Quem
contou foi ele. Esse é o maior interesse do fato. Coisa vivida. Batata! Sem
literatura. É só utilizar o material, e acrescentar uns floreios, para encher,
ou para dar mais efeito. Eu ouvi a história, dele mesmo, certa noite, em casa
do velho. Não sei se você sabe que o Melo é um violinista famoso. Um artista.
Tenho conhecido poucos violões tão bem tocados quanto o dele. Só que ele não é
profissional nem fez nunca muita questão de aparecer. Deve ter tocado em
público poucas vezes. Uma ou duas, até, se não me engano, no Municipal. Mas o
homem é um colosso. O filho está aí, confirmando o sangue... fazendo sucesso.
-- Bem... eu vou indo... Tenho encontro
marcado. Fica a história para outra ocasião. Não leve a mal.
-- Você sabe: eu sou escravo.
-- Ora essa! Claro! Até logo.
Palmadinha no ombro dele. Palmadinha no
meu. Chamei o elevador.
-- É um caso único no gênero –
continuou Eneias para o companheiro. – O Melo tinha uma fazenda, creio que na
Alta Paulista. Passava lá enormes temporadas, sozinho, num casarão desolador.
Era um verdadeiro deserto. E como era natural, distração dele era o violão
velho de guerra. Hora livre, pinho no braço, dedada nas cordas. No fundo, um romântico,
um sentimental. O pinho dele soluça mesmo. Geme de doer. Corta a alma. É
contagiante, envolvente, de machucar. Ouvi-o tocar várias vezes. “A Madrugada
que Passou”, “O Luar do Sertão”, e tudo quanto é modinha sentida que há por aí
tira até lágrima da gente, quando o Melo toca...
-- Completo! – gritou o ascensorista,
de dentro do elevador, que não parou, carregado com gente que vinha do décimo
andar, acotovelando-se de fome.
Apertei três ou quatro vezes a
campainha, para assegurar o meu direito à viagem seguinte.
Enéias continuava:
-- E não é só modinha... Os clássicos.
Música no duro... Ele tira Chopin e até Beethoven. A “Tarantela” de Liszt é
qualquer coisa, interpretada pelo Melo... Pois bem... (Isto foi contado por
ele, hein! Não estou inventando. Eu passo a coisa como recebi.) Uma noite,
sozinho na sala de jantar, Melo puxou o violão, meio triste, e começou a tocar.
Tocou sei lá o quê. Qualquer coisa. Sei que era uma toada melancólica. Acho que
havia luar, ele não disse. Mas quem fizer o conto pode pôr luar. Carregando,
mesmo. Sempre dá mais efeito. Dá ambiente.
O elevador abriu-se. Quis entrar.
-- Sobe!
Recuei.
-- Você sabe: nessa história de
literatura, o que dá vida é o enchimento, a paisagem. Um tostão de lua,
duzentão de palmeira, quatrocentos de vento sibilando na copa das árvores, é
barato e agrada sempre... De modo que quem fizer o conto deve botar um pouco de
tudo isso. Eu dou só o esqueleto. Quem quiser que aproveite...
-- O Melo estava tocando. Luz, isso ele
contou, fraca. Produzida na própria fazenda. Você conhece iluminação de motor.
Pisca-pisca. Luz alaranjada.
-- A luz alaranjada não é do motor, é
do...
-- Bem, isso não vem ao caso... Luz
vagabunda. Fraquinha...
-- Desce!
Dois sujeitos, que esperavam também,
precipitaram-se para o elevador.
-- Completo!
-- O Melo estava tocando...
Inteiramente longe da vida. De repente, olhou para o chão. Poucos passos
adiante, enorme, cabeluda, uma aranha caranguejeira. Ele sentiu um arrepio. Era
um bicho horrível. Parou o violão para dar um golpe na bruta. Mal parou, porém,
a aranha, com uma rapidez incrível, fugiu, penetrando numa frincha da parede,
entre o rodapé e o soalho. O Melo ficou frio de horror. Nunca tinha visto
aranha tão grande, tão monstruosa. Encostou o violão. Procurou um pau, para
maior garantia, e ficou esperando. Nada. A bicha não saía. Armou-se de coragem.
Aproximou-se da parede, meio de lado, começou a bater na entrada da fresta,
para ver se atraía a bichona. Era preciso matá-la. Mas a danada era sabida. Não
saiu. Esperou ainda uns quinze minutos. Como não vinha mesmo, voltou para a
rede, pôs-se a tocar outra vez a mesma toada triste. Não demorou, a pernona
cabeluda da aranha apontou na frincha...
O elevador abriu-se com violência,
despejando três ou quatro passageiros, fechou-se outra vez, subiu.
O Enéias continuava.
-- Apareceu a pernona, a bruta foi
chegando. Veio vindo. O Melo parou o violão, para novo golpe. Mas a aranha,
depois de uma ligeira hesitação, antes que o homem se aproximasse, afundou
outra vez no buraco. “Ora essa!” Ele ficou intrigado. Esperou mais um pouco,
recomeçou a tocar. E quatro ou cinco minutos depois, a cena se repetiu.
Timidamente, devargazinho, a aranha apontou, foi saindo da fresta. Avançava
lentamente, como fascinada. Apesar de enorme e cabeluda, tinha um ar pacífico,
familiar. O Melo teve uma ideia. “Será por causa da música?” Parou, espreitou.
A aranha avançaria uns dois palmos...
-- Desce!
-- Eu vou na outra viagem.
-- Dito e feito... – continuou Enéias. –
A bicha ficou titubeante, como tonta. Depois, moveu-se lentamente, indo se
esconder outra vez. Quando ele recomeçou a tocar, já foi com intuito de
experiência. Para ver se ela voltava. E voltou. No duro. Três ou quatro vezes a
cena se repetiu. A aranha vinha, a aranha voltava. Três ou mais vezes. Até que
ele resolveu ir dormir, não sei com que estranha coragem, porque um sujeito
saber que tem dentro de casa um bicho desses, venenoso e agressivo, sem procurar
liquidá-lo, é preciso ter sangue! No dia seguinte, passou o dia inteiro
excitadíssimo. Isto sim, dava um capítulo formidável. Naquela angústia, naquela
preocupação. “Será que a aranha volta? Não seria tudo pura coincidência?” Ele
estava ocupadíssimo com a colheita. Só à noite voltaria para o casarão da
fazenda. Teve que almoçar com os colonos, no cafezal. Andou a cavalo o dia
inteiro. E sempre pensando na aranha. O sujeito que fizer o conto pode tecer
uma porção de coisas em torno dessa expectativa. À noite, quando se viu livre,
voltou para casa. Jantou às pressas. Foi correndo buscar o violão. Estava
nervoso. “Será que a bicha vem?” Nem por sombras pensou no perigo que havia ter
em casa um animal daqueles. Queria saber se “ela” voltava. Começou a tocar como
quem se apresenta em público pela primeira vez. Coração batendo. Tocou. O olho
na fresta. Qual não foi a alegria dele quando, quinze ou vinte minutos depois,
como um viajante que avista terra, depois de uma longa viagem, percebeu que era
ela... o pernão cabeludo, o vulto escuro no canto mal iluminado.
-- Desce!
-- Sobe!
-- Desce!
-- Sobe!
-- A aranha surgiu de todo. O mesmo
jeito estonteado, hesitante, o mesmo ar arrastado. Parou a meia distância.
Estava escutando. Evidentemente, estava. Aí, ele quis completar a experiência.
Deixou de tocar. E como na véspera, quando o silêncio se prolongou, a
caranguejeira começou a se mover pouco a pouco, como quem se desencanta, para
se esconder novamente. É escusado dizer que a cena se repetiu nesse mesmo ritmo
uma porção de vezes. E para encurtar a história, a aranha ficou famosa. O Melo
passou o caso adiante. Começou a vir gente da vizinhança, para ver a aranha
amiga da música. Todas as noites era aquela romaria. Amigos, empregados, o
administrador, gente da cidade, todos queriam conhecer a cabeluda fã de “O Luar
do Sertão”, e de outras modinhas. E até de música boa. Chopin... Eu não sei
qual é... Mas havia um noturno de Chopin que era infalível. Mesmo depois de
acabado, ele ainda ficava como que amolentada, ouvindo ainda. E tinha uma
predileção especial pela “Gavota”, ela surgia. O curioso é que o Melo tocava
todas as noites. Havia ocasiões em que custava a aparecer. Mas era só tocar a
“Gavota”, ela surgia. O curioso é que o Melo se tomou de amores pela aranha.
Ficou sendo a distração, a companheira e Ela, com E grande. Chegou até a
pôr-lhe nome, não me lembro qual. E ele conta que, desde então, não sentiu mais
a solidão incrível da fazenda. Os dois se compreendiam, se irmanavam. Ele
sentia quais as músicas que mais tocavam a sensibilidade “dela”... E insistia,
nessas, para agradar a inesperada companheira de noitadas. Chegou mesmo a dizer
que, após dois ou três meses daquela comunhão – o caso já não despertava
interesse, os amigos já haviam desertado – ele começava a pensar, com pena, que
tinha de voltar para São Paulo. Como ficaria a coitada? Que seria dela, sem o
seu violão? Como abandonar uma companheira tão fiel? Sim, porque trazê-la para
São Paulo, isso não seria fácil!... Pois bem, uma noite, apareceu um camarada
de fora, que não sabia da história. Creio que um viajante, um representante
qualquer de uma casa comissária de Santos. Hospedou-se com ele. Cheio de prosa,
de novidades. Os dois ficaram conversando longamente, inesperada palestra de
cidade naqueles fundos de sertão. Negócios, safras, cotações, mexericos. Às
tantas, esquecido até da velha amiga, o Melo tomou do violão, velho hábito que
era um prolongamento de sua vida. Começou a tocar, distraído. Não se lembrou de
avisar o amigo. A aranha quotidiana apareceu. O amigo escutava. De repente,
seus olhos a viram. Arrepiou-se de espanto. E, num salto violento, sem perceber
o grito desesperado com que o procurava deter o hospedeiro, caiu sobre a
aranha, esmagando-a com o sapatão cheio de lama. O Melo soltou um grito de dor.
O rapaz olhou-o. Sem compreender, comentou:
-- Que perigo, hein?
O outro não respondeu logo. Estava
pálido, numa angústia mortal nos olhos.
-- E justamente quando eu tocava a “Gavota
de Tárrega”, a que ela preferia, coitadinha...
-- Mas o que há? Eu não compreendo...
E vocês não imaginam o desapontamento,
a humilhação com que ele ouviu toda essa história que eu contei agora...
-- Desce!
Desci.
Para gostar de ler. São
Paulo, Ática, 1991, p. 16-22.
Entendendo o conto:
01 – Qual é a situação inicial
do narrador e por que ele reluta em ouvir a história de Eneias?
No início do
conto, o narrador está com muita pressa e tenta a todo custo evitar Eneias, que
insiste em lhe contar uma história para um conto. Ele reluta porque tem um
encontro marcado e não quer se demorar.
02 – Quem é o personagem
central da história que Eneias quer contar, e qual é a sua principal
característica além de ser empresário?
O personagem
central da história é Melo, um antigo dono de torrefação em São Paulo e
fazendeiro. Sua principal característica, além de empresário, é ser um
violinista famoso e um artista talentoso, embora não profissional.
03 – Onde e como Melo passa
suas temporadas, e qual é sua principal distração nesse local?
Melo passa
enormes temporadas sozinho em uma fazenda na Alta Paulista, em um "casarão
desolador", que ele descreve como um "verdadeiro deserto". Sua
principal distração e companheira nesse ambiente solitário é o seu violão velho
de guerra.
04 – Qual é o primeiro
encontro de Melo com a aranha caranguejeira e como ele reage?
Melo está tocando
violão uma noite quando vê uma enorme e cabeluda aranha caranguejeira no chão.
Ele sente um arrepio e para de tocar para tentar matá-la. No entanto, a aranha
foge para uma frincha na parede. Melo, assustado, procura um pau e tenta
atraí-la para fora, mas ela não sai.
05 – Como Melo descobre a
"relação" da aranha com a música?
Melo resolve
voltar a tocar a toada triste depois que a aranha não sai da fresta. Não demora
muito, a aranha reaparece. Ele percebe que ao parar de tocar, ela se esconde
novamente, e ao recomeçar, ela volta. Ele testa essa hipótese várias vezes,
confirmando que a aranha era atraída pela música do violão.
06 – Que tipo de música a
aranha demonstrava apreciar, segundo Eneias?
A aranha
demonstrava apreciar tanto, modinhas sentidas (como "A Madrugada que
Passou" e "O Luar do Sertão") quanto música clássica, incluindo
peças de Chopin (especialmente um noturno que era "infalível") e a
"Gavota", que a fazia surgir sempre que era tocada.
07 – Como a relação de Melo
com a aranha evolui ao longo do tempo?
Melo se
"tomou de amores" pela aranha, que se tornou sua distração e
companheira, aliviando a solidão da fazenda. Ele a via como "Ela, com E
grande", e até lhe deu um nome (não lembrado no conto). Eles pareciam se
compreender, e Melo buscava tocar as músicas que mais a agradavam.
08 – Qual é o dilema de Melo
ao pensar em voltar para São Paulo?
O dilema de Melo
era como abandonar a aranha ao voltar para São Paulo. Ele sentia pena dela,
preocupado com o que seria da "coitada" sem seu violão e como ele
poderia deixar uma companheira "tão fiel", uma vez que levá-la para a
cidade não seria fácil.
09 – Quem é o personagem que
acidentalmente mata a aranha e como Melo reage a isso?
A aranha é
acidentalmente morta por um viajante/representante de Santos que se hospeda com
Melo. O homem, sem saber da relação entre Melo e a aranha, a vê e, assustado, a
esmagada com o sapatão. Melo solta um grito de dor e fica pálido, com uma
angústia mortal nos olhos, evidenciando seu profundo desapontamento e
sofrimento pela perda.
10 – Qual é o sentimento final
de Melo e como isso é interpretado pelo narrador?
Melo expressa sua
dor ao dizer que a aranha foi morta justamente quando ele tocava a "Gavota
de Tárrega", a que ela preferia. O narrador finaliza o conto descrevendo o
"desapontamento" e a "humilhação" com que Melo ouviu a
história que ele próprio havia contado, sublinhando a tragédia e o impacto
emocional da perda daquela companheira inusitada.