quinta-feira, 3 de julho de 2025

CRÔNICA: A DESINVENÇÃO - ANTÔNIO PRATA - COM GABARITO

 Crônica: A desinvenção

              Antônio Prata

        Há no sertão do Ceará uma pequena cidade chamada Salitre. Salitre tem pouco mais de 5 mil habitantes, que dormem, comem e amam em pequenas casas caiadas das mais diversas cores. Na rua atrás da igreja, entre a casa azul, de seu Dedé, e a casa amarela, de Dona Lurdes, há uma casa roxa.

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        Na casa roxa mora o físico Anderson Motta do Nascimento. Desconhecido no Brasil, há poucas semanas Nascimento – como é chamado lá fora – vem causando calorosos debates na comunidade científica internacional, desde que apresentou sua tese no 28° Encontro Internacional de Física, na Bulgária. Anderson só conseguiu comparecer ao encontro graças à venda de três bodes, uma carroça e alguns sacos de feijão de corda, plantado nas últimas chuvas. No congresso, falando um russo fluente (coisa que mesmo os russos têm certa dificuldade em fazer), Anderson expôs sua invenção.

        Pelo que se tem comentado, trata-se da maior revolução tecnológica desde a invenção do pregador de roupas, e o brasileiro tem sido comparado a Sigmundo Bernstein, pai (e mãe) da tampa de rosca.

        Não é, na verdade, uma invenção, mas o contrário. Ele propôs, diante da plateia boquiaberta, nada menos que a desinvenção do carro. Segundo seu raciocínio, se o carro fosse desinventado, acabariam os acidentes de trânsito, uma vez que o próprio trânsito sumiria. Sem trânsito e sem a queima de combustíveis fósseis, o efeito estufa deixaria de existir, a poluição chegaria a níveis irrisórios (e risíveis) e o número de doenças pulmonares cairia drasticamente.

        Tendo que usar as pernas para a locomoção (coisa que, dizem alguns antropólogos, era costume em algumas tribos pouco desenvolvidas das Américas e da Polinésia), as pessoas seriam menos ansiosas, mais bonitas e saudáveis e o colesterol, numa visão otimista, também seria desinventado, ficando os enfartes, derrames e tromboses praticamente extintos.

        Sem a necessidade de asfalto por tudo que é lado, o solo poderia voltar a ser permeável e as enchentes nunca mais aconteceriam. A lista de benefícios que a desinvenção do automóvel traria é infinita, e não caberia num tratado, muito menos numa crônica.

        Empolgados com os estudos de nosso ilustre conterrâneo, cientistas já declaram estarmos vivendo uma mudança nos paradigmas da ciência. Entramos, segundo o historiador Eric Hobsbawn, na Era das Desinvenções – possível título de seu próximo livro.

        Boatos indicam que a NASA estaria estudando os impactos sociais da desinvenção do telefone, o que acabaria com a linha ocupada, os trotes, os enganos, as chamadas a cobrar e faria com que as pessoas, a cada vez que quisessem se falar, se encontrassem.

        Ninguém ousa ainda comentar o que acontecerá se as desinvenções forem levadas a cabo, mas em Salitre, Ceará, dentro das casas coloridas, onde os amigos e parentes de Anderson dormem, comem e amam, agora também se prepara muita buchada, jerimum e farofa para a chegada do filho pródigo na próxima semana. Pelo menos por ali, durante alguns dias, a rotina está sendo desinventada.

Antônio Prata.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 21-22.

Entendendo a crônica:

01 – Quem é Anderson Motta do Nascimento e qual a sua "invenção" apresentada na Bulgária?

      Anderson Motta do Nascimento é um físico desconhecido no Brasil, mas que ganhou notoriedade internacional ao apresentar, na Bulgária, a desinvenção do carro. Ele propôs que, se o carro fosse desinventado, uma série de problemas sociais e ambientais seriam resolvidos.

02 – Como Anderson Motta do Nascimento conseguiu financiar sua viagem ao congresso na Bulgária?

      Anderson só conseguiu comparecer ao encontro graças à venda de três bodes, uma carroça e alguns sacos de feijão de corda, que ele mesmo plantou. Isso ressalta a simplicidade e a origem humilde do personagem em contraste com a magnitude de sua ideia.

03 – Quais os principais benefícios que a desinvenção do carro traria, segundo o raciocínio de Anderson?

      A desinvenção do carro traria inúmeros benefícios, como o fim dos acidentes de trânsito e do próprio trânsito, a eliminação do efeito estufa e da poluição (com a queda drástica de doenças pulmonares), a melhora da saúde física e mental das pessoas (com a caminhada e a queda do colesterol) e a prevenção de enchentes (com o solo voltando a ser permeável).

04 – O que a menção a "Sigmundo Bernstein, pai (e mãe) da tampa de rosca" e ao "pregador de roupas" sugere sobre a "invenção" de Anderson?

      Essas comparações servem para exagerar, de forma bem-humorada, a grandiosidade e o impacto inesperado da "desinvenção". Assim como a tampa de rosca e o pregador de roupas foram inovações simples, mas revolucionárias, a ideia de Anderson, apesar de ser o oposto de uma invenção, é vista como algo de proporções igualmente transformadoras.

05 – Qual o novo "paradigma da ciência" que os estudos de Anderson Motta do Nascimento supostamente inauguraram?

      Os estudos de Anderson supostamente inauguraram a "Era das Desinvenções", um novo paradigma na ciência. Isso sugere uma mudança de foco da criação incessante para a reavaliação crítica e a possível eliminação de tecnologias que trouxeram mais problemas do que soluções.

06 – Que outros exemplos de "desinvenções" são citados ou especulados no texto?

      Além da desinvenção do carro, há boatos de que a NASA estaria estudando os impactos sociais da desinvenção do telefone. Essa "desinvenção" eliminaria problemas como linha ocupada e trotes, incentivando as pessoas a se encontrarem fisicamente para conversar.

07 – Como a rotina da cidade de Salitre se prepara para a chegada de Anderson, e o que isso simboliza no final da crônica?

      Em Salitre, amigos e parentes de Anderson se preparam com a organização de uma grande recepção, com buchada, jerimum e farofa. Isso simboliza que, mesmo antes da concretização das grandes "desinvenções", a própria rotina da cidade já está sendo "desinventada" por alguns dias, celebrando o retorno do "filho pródigo" e a esperança que sua ideia traz.

 

CRÔNICA: O PRAZER DA LEITURA - RUBEM ALVES - COM GABARITO

 Crônica: O prazer da leitura

               Rubem Alves

        Este texto, eu o dedico aos professores e professoras que fazem o que de mais importante existe na educação: seduzir as crianças para o prazer que mora nos livros.

        Alfabetizar é ensinar a ler. A palavra alfabetizar vem de "alfabeto". "Alfabeto" é o conjunto das letras de uma língua, colocadas numa certa ordem. É a mesma coisa que "abecedário". A palavra "alfabeto" é formada com as duas primeiras letras do alfabeto grego: "alfa" e "beta". E "abecedário", com a junção das quatro primeiras letras do nosso alfabeto: "a", "b", "c" e "d". Assim sendo, pensei a possibilidade engraçada de que "abecederizar", palavra inexistente, pudesse ser sinônima de "alfabetizar"...

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        "Alfabetizar", palavra aparentemente inocente, contém uma teoria de como se aprende a ler. Aprende-se a ler aprendendo-se as letras do alfabeto. Primeiro as letras. Depois, juntando-se as letras, as sílabas. Depois, juntando-se as sílabas, aparecem as palavras...

        E assim era. Lembro-me da criançada repetindo em coro, sob a regência da professora: "be-a-ba; be-e-be; be-i-bi; be-o-bo; be-u-bu"... Estou olhando para um cartão-postal, miniatura de um dos cartazes que antigamente se usavam como tema de redação: uma menina cacheada, deitada de bruços sobre um divã, queixo apoiado na mão, tendo à sua frente um livro aberto onde se vê "fa", "fe", "fi", "fo", "fu"... (Centro de Referência do Professor, Centro de Memória, Praça da Liberdade, Belo Horizonte, Minas Gerais).

        Se é assim que se ensina a ler, ensinando as letras, imagino que o ensino da música deveria se chamar "dorremizar": aprender o dó, o ré, o mi... Juntam-se as notas e a música aparece! Posso imaginar, então, uma aula de iniciação musical em que os alunos ficassem repetindo as notas, sob a regência da professora, na esperança de que, da repetição das notas, a música aparecesse...

        Todo mundo sabe que não é assim que se ensina música. A mãe pega o nenezinho e o embala, cantando uma canção de ninar. E o nenezinho entende a canção. O que o nenezinho ouve é a música e não cada nota, separadamente! E a evidência da sua compreensão está no fato de que ele se tranquiliza e dorme – mesmo nada sabendo sobre notas! Eu aprendi a gostar de música clássica muito antes de saber as notas: minha mãe as tocava ao piano e elas ficaram gravadas na minha cabeça. Somente depois, já fascinado pela música, fui aprender as notas – porque queria tocar piano. A aprendizagem da música começa como percepção de uma totalidade – e nunca com o conhecimento das partes.

        Isso é verdadeiro também sobre aprender a ler. Tudo começa quando a criança fica fascinada com as coisas maravilhosas que moram dentro do livro. Não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a história. A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras: quando alguém lê e a criança escuta com prazer. "Erotizada" – sim, erotizada! – pelas delícias da leitura ouvida, a criança se volta para aqueles sinais misteriosos chamados letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los – porque eles são a chave que abre o mundo das delícias que moram no livro! Deseja autonomia: ser capaz de chegar ao prazer do texto sem precisar da mediação da pessoa que o está lendo.

        No primeiro momento as delícias do texto se encontram na fala do professor. Usando uma sugestão de Melanie Klein, o professor, no ato de ler para os seus alunos, é o "seio bom", o mediador que liga o aluno ao prazer do texto. Confesso nunca ter tido prazer algum em aulas de gramática ou de análise sintática. Não foi nelas que aprendi as delícias da literatura. Mas me lembro com alegria das aulas de leitura. As aulas de leitura ninguém faltava; ninguém falava. Queríamos ouvir a professora lendo. Antes de ler Monteiro Lobato, eu o ouvi. E o bom era que não havia provas sobre aquelas aulas. Era prazer puro. Existe uma incompatibilidade total entre a experiência prazerosa de leitura – experiência vagabunda! – e a experiência de ler a fim de responder questionários de interpretação e compreensão. Era sempre uma tristeza quando a professora fechava o livro...

        Vejo, assim, a cena original: a mãe ou o pai, livro aberto, lendo para o filho... Essa experiência é o aperitivo que ficará para sempre guardado na memória afetiva da criança. Na ausência da mãe ou do pai a criança olhará para o livro com desejo e inveja. Desejo, porque ela quer experimentar as delícias que estão contidas nas palavras. E inveja, porque ela gostaria de ter o saber do pai e da mãe: eles são aqueles que têm a chave que abre as portas daquele mundo maravilhoso! Roland Barthes faz uso de uma linda metáfora poética para descrever o que ele desejava fazer, como professor maternagem: continuar a fazer aquilo que a mãe faz. É isso mesmo: na escola, o professor deverá continuar o processo de leitura afetuosa. Ele lê: a criança ouve, extasiada! Seduzida, ela pedirá: "Por favor, me ensine! Eu quero poder entrar no livro por conta própria...".

        Toda aprendizagem começa com um pedido. Se não houver o pedido, a aprendizagem não acontecerá. Há aquele velho ditado: "E fácil levar a égua até o meio do ribeirão. O difícil é convencer a égua a beber". Traduzido pela Adélia Prado: "Não quero faca nem queijo. Quero é fome". Metáfora para o professor: cozinheiro, Babette que serve o aperitivo para que a criança tenha fome e deseje comer o texto...

        Onde se encontra o prazer do texto? Onde se encontra o seu poder de seduzir? Tive a resposta para essa questão acidentalmente, sem que a tivesse procurado. Ele me disse que havia lido um lindo poema de Fernando Pessoa, e citou a primeira frase. Fiquei feliz porque eu também amava aquele poema. Aí ele começou a lê-lo. Estremeci. O poema – aquele poema que eu amava – estava horrível na sua leitura. As palavras que ele lia eram as palavras certas. Mas alguma coisa estava errada! A música estava errada! Todo texto tem dois elementos: as palavras, com o seu significado. E a música... Percebi, então, que todo texto literário se assemelha à música. Uma sonata de Mozart, por exemplo. A sua "letra" está gravada no papel: as notas. Mas, como partitura, a sonata não existe como experiência estética. Está morta. É preciso que um intérprete dê vida às notas mortas. Martha Argerich, pianista suprema (sua interpretação do concerto n.° 3 de Rachmaninoff me convenceu da superioridade das mulheres...), as toca: seus dedos deslizam leves, rápidos, vigorosos, vagarosos, suaves, nenhum deslize, nenhum tropeção: estamos possuídos pela beleza. A mesma partitura, as mesmas notas, nas mãos de um pianeiro: o toque é duro, sem leveza, tropeções, hesitações, esbarros, erros: é o horror, o desejo que o fim chegue logo.

        Todo texto literário é uma partitura musical. As palavras são as notas. Se aquele que lê é um artista, se ele domina a técnica, se ele surfa sobre as palavras – a beleza acontece. O texto se apossa do corpo de quem ouve. Mas se aquele que lê não domina a técnica, se ele luta com as palavras, se ele não desliza sobre elas em "fortes" e "pianos" – a leitura não produz prazer: queremos que ela termine logo. Assim, quem ensina a ler, isto é, aquele que lê para que seus alunos tenham prazer no texto, tem de ser um artista. Só deveria ler aquele que está possuído pelo texto que lê. Por isso eu acho que deveria ser estabelecida em nossas escolas a prática de "concertos de leitura". Se há concertos de música erudita, jazz e MPB – por que não concertos de leitura? Ouvindo, os alunos aprenderão a difícil e deliciosa arte de ler. E acontece, então, com a leitura, o mesmo que acontece com a música: depois de provar o seu gosto é impossível parar. Se os jovens não gostam de ler, a culpa não é deles. Foram forçados a aprender tantas coisas sobre os textos – gramática, usos da partícula "se", dígrafos, encontros consonantais, análise sintática – que não houve tempo para serem iniciados na única coisa que importa: a beleza musical do texto literário: o aprendizado da anatomia do texto impede que se aprenda a erótica do texto. E esse aprendizado se inicia antes que as crianças saibam as letras. Sem que saibam as letras o seu corpo já é sensível à beleza que mora nos livros...

        APERITIVOS

        -- A menininha de nove anos me explicou como as crianças na sua escola aprendiam a ler: "Aqui na Escola da Ponte não aprendemos letras e sílabas. Só aprendemos totalidades...".

        -- "Analfabeto não é a pessoa que não sabe ler. É a pessoa que, sabendo ler, não gosta de ler." (Quem foi que disse isso? Acho que foi o Mário Quintana.)

        -- Os compositores colocam em suas partituras indicações para orientar o intérprete: lento, presto, adagio, alegretto, forte, piano, ralentando. Os escritores deveriam fazer o mesmo com os seus textos. Há textos que devem ser lidos lentamente, expressivamente, tristemente. Outros que exigem leveza, rapidez, riso. O leitor experiente não precisa dessas indicações. Mas elas poderiam ajudar os principiantes.

        -- "Mais valem dois marimbondos voando que um na mão" (Almanak do aluá).

        -- Graciliano Ramos relata que, quando menino, na escola, lhe ensinaram um ditado: "Fale pouco e bem e ter-te-ão por alguém". Ele repetia o ditado mas ficava com uma dúvida: "Quem será esse 'Tertião'?".

Rubem Alves.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP - São Paulo – 2005. p. 17-20.

Entendendo a crônica:

01 – A quem Rubem Alves dedica este texto e qual é a principal tarefa que ele lhes atribui?

      Rubem Alves dedica o texto aos professores e professoras. A principal tarefa que ele lhes atribui é seduzir as crianças para o prazer que mora nos livros, enfatizando que essa é a coisa mais importante na educação.

02 – Qual a crítica do autor à forma tradicional de ensinar a ler, baseada no significado da palavra "alfabetizar"?

      O autor critica a forma tradicional de ensinar a ler que foca primeiro nas letras, depois nas sílabas e, por fim, nas palavras, baseando-se na etimologia de "alfabetizar" (aprender o alfabeto). Ele a compara ironicamente ao ensino de música focado apenas nas notas, sem a experiência da melodia, sugerindo que essa abordagem não gera prazer nem compreensão real.

03 – Como Rubem Alves compara o aprendizado da leitura ao aprendizado da música?

      Ele compara o aprendizado da leitura ao da música, afirmando que ambos começam pela percepção de uma totalidade e não pelo conhecimento das partes. Assim como uma criança ouve e entende uma canção de ninar sem saber as notas, o prazer da leitura começa com a escuta fascinada da história, antes mesmo de conhecer as letras.

04 – O que o autor quer dizer com a expressão "Erotizada" pelas delícias da leitura ouvida?

      Com a expressão "Erotizada", o autor se refere à sensação de encantamento e atração intensa que a criança sente pelas histórias lidas em voz alta. Essa "erotização" é o desejo profundo de acessar o mundo de prazer que o livro oferece, levando a criança a querer decifrar as letras para ter autonomia na leitura.

05 – Qual o papel do professor como "seio bom" na visão do autor?

      O professor, no ato de ler para os alunos, atua como o "seio bom", uma metáfora de Melanie Klein. Isso significa que ele é o mediador inicial que conecta o aluno ao prazer do texto, nutrindo esse desejo pela leitura de forma afetiva e prazerosa, sem a imposição de avaliações.

06 – Qual a incompatibilidade que Rubem Alves aponta entre a leitura prazerosa e as práticas escolares comuns?

      O autor aponta uma incompatibilidade total entre a experiência prazerosa de leitura e a prática de ler para responder questionários de interpretação e compreensão. Para ele, a leitura para provas mata o prazer "vagabundo" (livre, descompromissado) da experiência literária.

07 – Segundo o autor, qual é o "aperitivo" essencial para despertar o desejo de ler nas crianças?

      O "aperitivo" essencial é a experiência original de um adulto (mãe, pai ou professor) lendo para a criança. Essa vivência afetiva e prazerosa de ouvir histórias cria um desejo e uma "fome" pela leitura, fazendo com que a criança queira, por si mesma, ter acesso a esse mundo.

08 – Como Rubem Alves explica a "música" presente em todo texto literário?

      Rubem Alves explica que todo texto literário tem dois elementos: as palavras (com seu significado) e a música. Ele compara o texto a uma partitura musical, onde as palavras são as notas. Para que o texto ganhe vida e produza prazer, é preciso que o leitor seja um "artista" que domine a técnica e "surfe" sobre as palavras, dando-lhes a melodia e a expressão adequadas.

09 – Qual a proposta do autor para ensinar a "difícil e deliciosa arte de ler"?

      O autor propõe o estabelecimento da prática de "concertos de leitura" nas escolas. Assim como há concertos de música, ele sugere que os alunos deveriam ouvir leituras artísticas e expressivas de textos literários. Através dessa audição prazerosa, os alunos seriam seduzidos e aprenderiam a "difícil e deliciosa arte de ler".

10 – Qual é a principal razão, segundo o autor, para que muitos jovens não gostem de ler?

      A principal razão, para Rubem Alves, é que os jovens foram forçados a aprender excessivamente sobre a "anatomia do texto" (gramática, análise sintática, etc.) em vez de serem iniciados na "beleza musical" ou na "erótica do texto". Essa abordagem excessivamente técnica impede o desenvolvimento do prazer pela leitura, que deveria começar antes mesmo do conhecimento das letras.

 

TEXTO: NOVOS CAMINHOS PARA A SUA FORMAÇÃO - IONE CARDOSO OLIVEIRA - COM GABARITO

 Texto: Novos caminhos para a sua formação

           Ione Cardoso Oliveira

         Dedico este texto a todos os professores que buscam novos caminhos para a sua formação.

        Caminhar e ver confunde-se nos emaranhados da lembrança: o tempo de lembrar se traduz enfim pelo tempo de aprender. Por isso, sem a memória do processo de construção de aprender, a narração perderia a sua qualidade. Eis porque o momento do registro investe sobre o sujeito e o transforma pelo ato de refletir. Escrever, registrar, relatar, descrever, estabelecer relações mantém o ato percentual em um ato presente. Cada ato de percepção é um ato novo que supõe outras experiências, outros movimentos – por isso, as vozes que traduzem os sentimentos e pensamentos dos educadores têm me encantado, momento singular do PROFA. Que esse movimento se amplie, gerando novas práticas.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg0NdbQIgk0riAXfAonRUpTuXAuIpsfHdECrYyIN0oEnRG6tQQi6NSHf9S1PERqAMqWBwKVj3BDFkP-tjMaG00nFPQQ_po_jnJIPe_-MdvhhgQbFpOjeQzi7kg0NFXtyqGV-NtFjFSb8RkLVu519C9eDNzaCVujCbbtgZ7-n10mR_HbAEWZCvahz-6w_V4/s320/23052025160223.jpg


        O registro historifica, solidifica os momentos de um grupo.

        A expressão dos silêncios...

        Das vozes inibidas dos professores

        Submissas

        Oprimidas

        Surgem vozes autorizadas

        pela experiência,

        pelo trabalho

        pela prática.

        Capacidade de refletir, expressar-se.

        Vozes silenciosas grávidas de significação.

        Emerge a esperança, visível, audível

        de uma escola séria e alegre.

        Uma escola renovada

        professor leitor,

        escritor,

        cidadão,

        educador.

        Ciente de seus limites.

        Seguro de seus conhecimentos.

        Viver a utopia, alegria, busca,

        reinventar o diálogo.

        Uma teia, tecida com fios sentidos da vida.

        Vozes em rede que

        registram, analisam e escrevem.

        Tarefa nada fácil! Como diz o poeta:

        “[...] A ciência das coisas se aprende na lida, sem dijutório.

        Aprende-se nas conversas. Ouvido na escuta. Sem meeira

        Para correr os olhos nas escritas.

        Professor é a gente mesmo. Sabe-se escutando.

        É falando pouco, economizando palavras. Decifrando

        silêncios”.

        Professor, professora, queria lhe dizer:

        O que se espera é que esse movimento se amplie e tenha continuidade.

        Que outros professores registrem e analisem a sua prática para fazê-la avançar no sentido de construir uma nova didática.

        Muitos são os registros que refletem um caminho percorrido por vocês e seus alunos no sentido de tornarem-se interlocutores e parceiros na construção da escrita.

        Que esse movimento não se perca ao sabor dos ventos e das mudanças institucionais...

Ione Cardoso Oliveira.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 64-65.

Entendendo o texto:

01 – A quem o texto é dedicado e qual o tema central que ele aborda?

      O texto é dedicado a todos os professores que buscam novos caminhos para sua formação. O tema central é a importância do registro da experiência e da reflexão sobre a prática pedagógica como forma de aprendizado e transformação.

02 – Qual a importância do ato de registrar, segundo a autora?

      A autora enfatiza que escrever, registrar, relatar e descrever mantém o ato perceptivo presente, confunde-se com o tempo de aprender, solidifica os momentos de um grupo e, principalmente, transforma o sujeito pelo ato de refletir.

03 – Que tipo de transformação a autora observa nas vozes dos professores?

      A autora percebe que as vozes que antes eram "inibidas, submissas, oprimidas" agora surgem autorizadas pela experiência, pelo trabalho e pela prática. Isso significa que os professores, ao refletirem sobre sua atuação, ganham a capacidade de se expressar e a segurança de seus conhecimentos.

04 – Que tipo de escola a autora almeja, e quais as características do professor nessa escola?

      A autora vislumbra uma escola séria e alegre, uma escola renovada. Nessa escola, o professor ideal é um leitor, escritor, cidadão e educador, ciente de seus limites, mas seguro de seus conhecimentos, vivendo a utopia, a alegria e a busca constante.

05 – Qual a principal mensagem e o desejo da autora para o futuro da formação de professores?

      A principal mensagem é que o movimento de registro e análise da prática docente se amplie e tenha continuidade. A autora deseja que mais professores registrem e analisem sua atuação para construir uma nova didática e que esse movimento não se perca, solidificando o professor como interlocutor e parceiro na construção do conhecimento.

 

CONTO: A ARANHA - ÓRIGENES LESSA - COM GABARITO

 Conto: A ARANHA

           Orígenes Lessa

        -- Quer assunto para um conto? – perguntou o Eneias, cercando-me no corredor.

        Sorri.

        -- Não, obrigado.

        -- Mas é assunto ótimo, verdadeiro, vivido, acontecido, interessantíssimo!

        -- Não, não é preciso... Fica para outra vez...

        -- Você está com pressa?

        -- Muita!


Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgUm5NX2QpIFlFoKBobL7k58Z-R3Df3f_6ijJXFGLeY9TZIcTZmGHAku_BKTVaqBEF0J0Gbw6X706fZdpd5OZ63VrIun8A16Ys8ECSDccuZ91fEohG4ObARMv-gz41uSV1299_cWvp5EO_uHQAGkMDXqQIhWuL2dNghmBljL1mG4wEsH9k1zE_L4l_NRd4/s320/Phoneutria-nigriventer-Leo-Noronha_site.png

        -- Bem, de outra vez será. Dá um conto estupendo. E com esta vantagem: aconteceu... É só florear um pouco.

        -- Está bem... Então... até logo... Tenho que apanhar o elevador...

        Quando me despedia, surge um terceiro. Prendendo-me à prosa. Desmoralizando-me a pressa.

        -- Então, que há de novo?

        -- Estávamos batendo papo... Eu estava cedendo, de graça, um assunto notável para um conto. Tão bom, que até comecei a esboçá-lo, há tempos. Mas conto não é gênero meu – continuou o Eneias, os olhos muito azuis transbordando de generosidade.

        -- Sobre o quê? – perguntou o outro.

        Eu estava frio. Não havia remédio. Tinha que ouvir, mais uma vez, o assunto.

        -- Um caso passado. Conheceu o Melo, que foi dono de uma grande torrefação aqui em São Paulo, e tinha uma ou várias fazendas pelo interior?

        Pergunta dirigida a mim. Era mais fácil concordar:

        -- Conheci.

        -- Pois olhe. Foi com o Melo. Quem contou foi ele. Esse é o maior interesse do fato. Coisa vivida. Batata! Sem literatura. É só utilizar o material, e acrescentar uns floreios, para encher, ou para dar mais efeito. Eu ouvi a história, dele mesmo, certa noite, em casa do velho. Não sei se você sabe que o Melo é um violinista famoso. Um artista. Tenho conhecido poucos violões tão bem tocados quanto o dele. Só que ele não é profissional nem fez nunca muita questão de aparecer. Deve ter tocado em público poucas vezes. Uma ou duas, até, se não me engano, no Municipal. Mas o homem é um colosso. O filho está aí, confirmando o sangue... fazendo sucesso.

        -- Bem... eu vou indo... Tenho encontro marcado. Fica a história para outra ocasião. Não leve a mal.

        -- Você sabe: eu sou escravo.

        -- Ora essa! Claro! Até logo.

        Palmadinha no ombro dele. Palmadinha no meu. Chamei o elevador.

        -- É um caso único no gênero – continuou Eneias para o companheiro. – O Melo tinha uma fazenda, creio que na Alta Paulista. Passava lá enormes temporadas, sozinho, num casarão desolador. Era um verdadeiro deserto. E como era natural, distração dele era o violão velho de guerra. Hora livre, pinho no braço, dedada nas cordas. No fundo, um romântico, um sentimental. O pinho dele soluça mesmo. Geme de doer. Corta a alma. É contagiante, envolvente, de machucar. Ouvi-o tocar várias vezes. “A Madrugada que Passou”, “O Luar do Sertão”, e tudo quanto é modinha sentida que há por aí tira até lágrima da gente, quando o Melo toca...

        -- Completo! – gritou o ascensorista, de dentro do elevador, que não parou, carregado com gente que vinha do décimo andar, acotovelando-se de fome.

        Apertei três ou quatro vezes a campainha, para assegurar o meu direito à viagem seguinte.

        Enéias continuava:

        -- E não é só modinha... Os clássicos. Música no duro... Ele tira Chopin e até Beethoven. A “Tarantela” de Liszt é qualquer coisa, interpretada pelo Melo... Pois bem... (Isto foi contado por ele, hein! Não estou inventando. Eu passo a coisa como recebi.) Uma noite, sozinho na sala de jantar, Melo puxou o violão, meio triste, e começou a tocar. Tocou sei lá o quê. Qualquer coisa. Sei que era uma toada melancólica. Acho que havia luar, ele não disse. Mas quem fizer o conto pode pôr luar. Carregando, mesmo. Sempre dá mais efeito. Dá ambiente.

        O elevador abriu-se. Quis entrar.

        -- Sobe!

        Recuei.

        -- Você sabe: nessa história de literatura, o que dá vida é o enchimento, a paisagem. Um tostão de lua, duzentão de palmeira, quatrocentos de vento sibilando na copa das árvores, é barato e agrada sempre... De modo que quem fizer o conto deve botar um pouco de tudo isso. Eu dou só o esqueleto. Quem quiser que aproveite...

        -- O Melo estava tocando. Luz, isso ele contou, fraca. Produzida na própria fazenda. Você conhece iluminação de motor. Pisca-pisca. Luz alaranjada.

        -- A luz alaranjada não é do motor, é do...

        -- Bem, isso não vem ao caso... Luz vagabunda. Fraquinha...

        -- Desce!

        Dois sujeitos, que esperavam também, precipitaram-se para o elevador.

        -- Completo!

        -- O Melo estava tocando... Inteiramente longe da vida. De repente, olhou para o chão. Poucos passos adiante, enorme, cabeluda, uma aranha caranguejeira. Ele sentiu um arrepio. Era um bicho horrível. Parou o violão para dar um golpe na bruta. Mal parou, porém, a aranha, com uma rapidez incrível, fugiu, penetrando numa frincha da parede, entre o rodapé e o soalho. O Melo ficou frio de horror. Nunca tinha visto aranha tão grande, tão monstruosa. Encostou o violão. Procurou um pau, para maior garantia, e ficou esperando. Nada. A bicha não saía. Armou-se de coragem. Aproximou-se da parede, meio de lado, começou a bater na entrada da fresta, para ver se atraía a bichona. Era preciso matá-la. Mas a danada era sabida. Não saiu. Esperou ainda uns quinze minutos. Como não vinha mesmo, voltou para a rede, pôs-se a tocar outra vez a mesma toada triste. Não demorou, a pernona cabeluda da aranha apontou na frincha...

        O elevador abriu-se com violência, despejando três ou quatro passageiros, fechou-se outra vez, subiu.

        O Enéias continuava.

        -- Apareceu a pernona, a bruta foi chegando. Veio vindo. O Melo parou o violão, para novo golpe. Mas a aranha, depois de uma ligeira hesitação, antes que o homem se aproximasse, afundou outra vez no buraco. “Ora essa!” Ele ficou intrigado. Esperou mais um pouco, recomeçou a tocar. E quatro ou cinco minutos depois, a cena se repetiu. Timidamente, devargazinho, a aranha apontou, foi saindo da fresta. Avançava lentamente, como fascinada. Apesar de enorme e cabeluda, tinha um ar pacífico, familiar. O Melo teve uma ideia. “Será por causa da música?” Parou, espreitou. A aranha avançaria uns dois palmos...

        -- Desce!

        -- Eu vou na outra viagem.

        -- Dito e feito... – continuou Enéias. – A bicha ficou titubeante, como tonta. Depois, moveu-se lentamente, indo se esconder outra vez. Quando ele recomeçou a tocar, já foi com intuito de experiência. Para ver se ela voltava. E voltou. No duro. Três ou quatro vezes a cena se repetiu. A aranha vinha, a aranha voltava. Três ou mais vezes. Até que ele resolveu ir dormir, não sei com que estranha coragem, porque um sujeito saber que tem dentro de casa um bicho desses, venenoso e agressivo, sem procurar liquidá-lo, é preciso ter sangue! No dia seguinte, passou o dia inteiro excitadíssimo. Isto sim, dava um capítulo formidável. Naquela angústia, naquela preocupação. “Será que a aranha volta? Não seria tudo pura coincidência?” Ele estava ocupadíssimo com a colheita. Só à noite voltaria para o casarão da fazenda. Teve que almoçar com os colonos, no cafezal. Andou a cavalo o dia inteiro. E sempre pensando na aranha. O sujeito que fizer o conto pode tecer uma porção de coisas em torno dessa expectativa. À noite, quando se viu livre, voltou para casa. Jantou às pressas. Foi correndo buscar o violão. Estava nervoso. “Será que a bicha vem?” Nem por sombras pensou no perigo que havia ter em casa um animal daqueles. Queria saber se “ela” voltava. Começou a tocar como quem se apresenta em público pela primeira vez. Coração batendo. Tocou. O olho na fresta. Qual não foi a alegria dele quando, quinze ou vinte minutos depois, como um viajante que avista terra, depois de uma longa viagem, percebeu que era ela... o pernão cabeludo, o vulto escuro no canto mal iluminado.

        -- Desce!

        -- Sobe!

        -- Desce!

        -- Sobe!

        -- A aranha surgiu de todo. O mesmo jeito estonteado, hesitante, o mesmo ar arrastado. Parou a meia distância. Estava escutando. Evidentemente, estava. Aí, ele quis completar a experiência. Deixou de tocar. E como na véspera, quando o silêncio se prolongou, a caranguejeira começou a se mover pouco a pouco, como quem se desencanta, para se esconder novamente. É escusado dizer que a cena se repetiu nesse mesmo ritmo uma porção de vezes. E para encurtar a história, a aranha ficou famosa. O Melo passou o caso adiante. Começou a vir gente da vizinhança, para ver a aranha amiga da música. Todas as noites era aquela romaria. Amigos, empregados, o administrador, gente da cidade, todos queriam conhecer a cabeluda fã de “O Luar do Sertão”, e de outras modinhas. E até de música boa. Chopin... Eu não sei qual é... Mas havia um noturno de Chopin que era infalível. Mesmo depois de acabado, ele ainda ficava como que amolentada, ouvindo ainda. E tinha uma predileção especial pela “Gavota”, ela surgia. O curioso é que o Melo tocava todas as noites. Havia ocasiões em que custava a aparecer. Mas era só tocar a “Gavota”, ela surgia. O curioso é que o Melo se tomou de amores pela aranha. Ficou sendo a distração, a companheira e Ela, com E grande. Chegou até a pôr-lhe nome, não me lembro qual. E ele conta que, desde então, não sentiu mais a solidão incrível da fazenda. Os dois se compreendiam, se irmanavam. Ele sentia quais as músicas que mais tocavam a sensibilidade “dela”... E insistia, nessas, para agradar a inesperada companheira de noitadas. Chegou mesmo a dizer que, após dois ou três meses daquela comunhão – o caso já não despertava interesse, os amigos já haviam desertado – ele começava a pensar, com pena, que tinha de voltar para São Paulo. Como ficaria a coitada? Que seria dela, sem o seu violão? Como abandonar uma companheira tão fiel? Sim, porque trazê-la para São Paulo, isso não seria fácil!... Pois bem, uma noite, apareceu um camarada de fora, que não sabia da história. Creio que um viajante, um representante qualquer de uma casa comissária de Santos. Hospedou-se com ele. Cheio de prosa, de novidades. Os dois ficaram conversando longamente, inesperada palestra de cidade naqueles fundos de sertão. Negócios, safras, cotações, mexericos. Às tantas, esquecido até da velha amiga, o Melo tomou do violão, velho hábito que era um prolongamento de sua vida. Começou a tocar, distraído. Não se lembrou de avisar o amigo. A aranha quotidiana apareceu. O amigo escutava. De repente, seus olhos a viram. Arrepiou-se de espanto. E, num salto violento, sem perceber o grito desesperado com que o procurava deter o hospedeiro, caiu sobre a aranha, esmagando-a com o sapatão cheio de lama. O Melo soltou um grito de dor. O rapaz olhou-o. Sem compreender, comentou:

        -- Que perigo, hein?

        O outro não respondeu logo. Estava pálido, numa angústia mortal nos olhos.

        -- E justamente quando eu tocava a “Gavota de Tárrega”, a que ela preferia, coitadinha...

        -- Mas o que há? Eu não compreendo...

        E vocês não imaginam o desapontamento, a humilhação com que ele ouviu toda essa história que eu contei agora...

        -- Desce!

        Desci.

Para gostar de ler. São Paulo, Ática, 1991, p. 16-22.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a situação inicial do narrador e por que ele reluta em ouvir a história de Eneias?

      No início do conto, o narrador está com muita pressa e tenta a todo custo evitar Eneias, que insiste em lhe contar uma história para um conto. Ele reluta porque tem um encontro marcado e não quer se demorar.

02 – Quem é o personagem central da história que Eneias quer contar, e qual é a sua principal característica além de ser empresário?

      O personagem central da história é Melo, um antigo dono de torrefação em São Paulo e fazendeiro. Sua principal característica, além de empresário, é ser um violinista famoso e um artista talentoso, embora não profissional.

03 – Onde e como Melo passa suas temporadas, e qual é sua principal distração nesse local?

      Melo passa enormes temporadas sozinho em uma fazenda na Alta Paulista, em um "casarão desolador", que ele descreve como um "verdadeiro deserto". Sua principal distração e companheira nesse ambiente solitário é o seu violão velho de guerra.

04 – Qual é o primeiro encontro de Melo com a aranha caranguejeira e como ele reage?

      Melo está tocando violão uma noite quando vê uma enorme e cabeluda aranha caranguejeira no chão. Ele sente um arrepio e para de tocar para tentar matá-la. No entanto, a aranha foge para uma frincha na parede. Melo, assustado, procura um pau e tenta atraí-la para fora, mas ela não sai.

05 – Como Melo descobre a "relação" da aranha com a música?

      Melo resolve voltar a tocar a toada triste depois que a aranha não sai da fresta. Não demora muito, a aranha reaparece. Ele percebe que ao parar de tocar, ela se esconde novamente, e ao recomeçar, ela volta. Ele testa essa hipótese várias vezes, confirmando que a aranha era atraída pela música do violão.

06 – Que tipo de música a aranha demonstrava apreciar, segundo Eneias?

      A aranha demonstrava apreciar tanto, modinhas sentidas (como "A Madrugada que Passou" e "O Luar do Sertão") quanto música clássica, incluindo peças de Chopin (especialmente um noturno que era "infalível") e a "Gavota", que a fazia surgir sempre que era tocada.

07 – Como a relação de Melo com a aranha evolui ao longo do tempo?

      Melo se "tomou de amores" pela aranha, que se tornou sua distração e companheira, aliviando a solidão da fazenda. Ele a via como "Ela, com E grande", e até lhe deu um nome (não lembrado no conto). Eles pareciam se compreender, e Melo buscava tocar as músicas que mais a agradavam.

08 – Qual é o dilema de Melo ao pensar em voltar para São Paulo?

      O dilema de Melo era como abandonar a aranha ao voltar para São Paulo. Ele sentia pena dela, preocupado com o que seria da "coitada" sem seu violão e como ele poderia deixar uma companheira "tão fiel", uma vez que levá-la para a cidade não seria fácil.

09 – Quem é o personagem que acidentalmente mata a aranha e como Melo reage a isso?

      A aranha é acidentalmente morta por um viajante/representante de Santos que se hospeda com Melo. O homem, sem saber da relação entre Melo e a aranha, a vê e, assustado, a esmagada com o sapatão. Melo solta um grito de dor e fica pálido, com uma angústia mortal nos olhos, evidenciando seu profundo desapontamento e sofrimento pela perda.

10 – Qual é o sentimento final de Melo e como isso é interpretado pelo narrador?

      Melo expressa sua dor ao dizer que a aranha foi morta justamente quando ele tocava a "Gavota de Tárrega", a que ela preferia. O narrador finaliza o conto descrevendo o "desapontamento" e a "humilhação" com que Melo ouviu a história que ele próprio havia contado, sublinhando a tragédia e o impacto emocional da perda daquela companheira inusitada.

 

POEMA: A CIDADE - DONIZETE GALVÃO - COM GABARITO

 Poema: A cidade

            Donizete Galvão

Por mais que insistas em recusar,

está é, sim, a tua cidade concreta

onde tantos te ofereceram amizade

e o amigo partiu pela porta secreta.

 

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiWr6t3ee0SjQYM20lVesmyeKQLQCgyp2RUCGoWvQPmZDpcRFEqBScsVc224OM5JlInp3Fr9FQCnmP4C5IdcIPAqzgu6B2w19sZvH8AHOcXPg2k4URQWrJZdBzLJNof7msQZ9Sb9SV5QOeam6sro1LzEtTWXgvTwEkfzYmm-C2EMT-mtp8EKPzQMapczsQ/s320/buser_buser_image_990.jpeg

Andaste cabisbaixo pelas calçadas

remoendo as humilhações do trabalho.

Marcaste este chão com teus passos,

dores recolhidas como um rebotalho.

 

Aqui nasceram os filhos, a epifania

das infâncias que sumiram passageiras.

Abriste envelopes com muito medo,

receoso daquelas notícias derradeiras.

 

Tu que amas a simetria permanente

viste a barriga da cidade arregaçada.

Como nas telas de Anselm Kiefer,

tens nela tuas perplexidades retratadas.

Donizete Galvão. O homem inacabado. São Paulo: Portal, 2010. p. 59.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 3ª Série – Ensino Médio – William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 9ª ed. – São Paulo: Saraiva Editora, 2013. p. 372.

Entendendo o poema: 

01 – Como o poema descreve a relação do eu-lírico com a cidade?

      O poema descreve uma relação intrínseca e inegável do eu-lírico com a cidade, mesmo que ele tente recusá-la. A cidade é apresentada como um espaço de experiências profundas e contrastantes: de amizades e perdas, de humilhações e nascimentos, de medos e de epifanias. Ela é uma parte indelével da sua existência.

02 – Quais eventos da vida do eu-lírico estão explicitamente ligados à cidade?

      Diversos eventos marcantes da vida do eu-lírico estão ligados à cidade, como a oferta de amizade e a partida de um amigo, as humilhações sofridas no trabalho (que marcaram o chão com seus passos), o nascimento dos filhos e as "epifanias das infâncias", e o receio de notícias derradeiras ao abrir envelopes.

03 – O que a expressão "barriga da cidade arregaçada" sugere sobre a percepção do eu-lírico em relação ao lugar?

      A expressão "barriga da cidade arregaçada" sugere uma visão de desordem, ferida ou exposição da cidade, que contrasta diretamente com o amor do eu-lírico pela "simetria permanente". Essa imagem pode indicar a violência, a decadência ou a revelação de aspectos cruéis e caóticos do ambiente urbano, que abalam suas expectativas de ordem.

04 – De que forma as "dores recolhidas como um rebotalho" se manifestam no poema?

      As "dores recolhidas como um rebotalho" manifestam-se através do ato de andar cabisbaixo pelas calçadas, remoendo as humilhações do trabalho. O "rebotalho" sugere algo descartado, sem valor, indicando como as dores foram acumuladas e sentidas, como se fossem resíduos desprezíveis, mas que ainda assim marcam profundamente o eu-lírico e o chão da cidade.

05 – Qual a relevância da citação a Anselm Kiefer no final do poema?

      A citação a Anselm Kiefer, conhecido por suas obras que abordam temas de ruína, história, memória e destruição, sugere que as "perplexidades" do eu-lírico em relação à cidade são tão profundas e complexas quanto as representadas nas telas do artista. A cidade, assim como a arte de Kiefer, se torna um espelho das dores, da destruição e das questões existenciais do eu-lírico, com uma beleza melancólica e impactante.