Crônica: Cantadores de viola
Viriato Corrêa
No povoado, a festa mais bonita do
Natal era no sítio do João Raimundo, o lavrador que fazia anualmente a maior
colheita de algodão.
Festa de papouco. Brincava-se,
cantava-se e dançava-se dois dias e duas noites.
Nos lugarejos da roça, o Natal é a grande
quadra dos "sambas". Em toda palhoça uma festa. Violas, sanfonas e
cavaquinhos enchem de música todos os terreiros.
O "samba" do João Raimundo
começava ao amanhecer de 24 de dezembro. Mal o sol ia apontando no céu quando
as ronqueiras estrondeavam nos ares.
Quando a manhã nascia, o terreiro
estava todo plantado de arírís, enfeitado de arcos de píndoba e bandeirolas de
papel. No centro, um grande mastro com a figura do menino Deus pregada na
bandeira que tremulava no alto.
Junto à casa — a latada coberta de
murta e palmas verdes. Era debaixo da latada que se dançava.
A festa do João Raimundo tinha fama por
aquelas redondezas.
Convidavam-se os melhores tocadores de
viola. Apareciam dois ou quatro cantadores para o "desafio". As mais
queridas dançadeiras de chorado não deixavam de vir dançar. Havia comida para
se botar fora.
Os convidados iam chegando pela manhã.
E, logo que entrava o primeiro tocador de sanfona ou de viola, começavam as
danças.
Nós,
as crianças, íamos para a sombra das jaqueiras brincar o dia inteiro.
À noite é que a festa crescia e ficava
bonita. Nada menos de seis, oito violas, três ou quatro cavaquinhos, rabecas,
flautas e pandeiros.
Na latada e na varanda, dançava um
mundo de gente. No terreiro, lavado de luar, estrondeavam de quando em quando
as ronqueiras.
Devia ser meia-noite e eu já cochilava
no regaço de minha mãe, quando o Manduca me veio prevenir que o
"desafio" não tardaria a começar.
Corri
à latada. Dançava-se vivamente.
Para a gente matuta, não há nada mais
importante numa festa do que o "desafio" entre dois famosos
cantadores de viola. Suspendem-se as danças para que todo mundo os ouça em
silêncio.
Os cantadores que se iam medir aquela
noite, eram o José Firmino e o Pedro Jeju, os mais festejados daquela beirada
de rio. Ninguém queria perder uma palavra da luta que eles iam travar em
versos.
O João Raimundo bateu palmas no meio da
latada impondo silêncio:
— Minha gente, vamos ouvir estes dois
"turunas".
Zoou no ar um quente repinicado de
primas e bordões de violas. Os dois cantadores sentaram-se frente a frente.
Versos de cá, versos de lá, a
cruzarem-se. Um improvisava uma quadra ou uma sextilha ou uma oitava e o outro
imediatamente respondia com uma oitava ou uma quadra ou uma sextilha.
No começo, cada um deles disse, em
versos, quem era, como nascera, de onde tinha vindo. Cinco minutos depois,
começaram a gabar-se de feitos maravilhosos.
O Pedro Jeju, dedilhando assanhadamente
as cordas da viola, soltou a primeira gabolice:
— José
Firmino acredite,
Não gosto de
me gabar,
Mas
quando pego a viola,
Quando
começo a cantar,
Saem da cova os defuntos,
Os peixes
saem do mar,
Os
anjos descem do céu,
E tudo vem
me escutar.
O José Firmino quase não deixou que o
companheiro acabasse o último verso, e cantou de viola estendida no peito:
— Eu
não tenho inveja disso,
Sou valente,
valentão,
Canguçu é meu
cavalo,
Cascavel meu
cinturão,
Eu engulo brasa
viva,
Pego corisco com
a mão,
Um empurrão do
meu dedo
Bota dez morros
no chão.
O Pedro Jeju respondeu:
— Você
pode ser valente,
Habilidoso não é.
Eu calço
chinelo em cobra,
Boto guizo em
jacaré,
Asso manteiga
no espeto,
Faço o tempo andar à ré,
Carrego água
em peneira,
Dou beijos em
busca-pé.
O povo aplaudia com palmas e gritos.
José Firmino olhou o cantador de alto a baixo e improvisou:
— Isso
tudo não é nada,
Não me pode
amedrontar:
Paro o vento
quando quero,
Já fiz o sol
esfriar,
Bebo chumbo
derretido,
Sem o chumbo
me queimar,
Seguro as
onças no mato,
Para meu
filho mamar.
O outro acelerou os dedos nas cordas da
viola e respondeu:
— Se eu for contar minhas artes
Não acabo
nunca mais;
Para apagar
os incêndios
Uso breu e
aguarrás,
Eu ponho
luneta em pulga,
E gravata em
Satanás,
Eu faço gelo
com brasa,
Coisa que
você não faz,
Faço o carro
andar na frente,
Faço o boi
andar atrás.
E ergueu-se. José Firmino ergueu-se
também. Eram ambos fortes no desafio. Não haveria vencido nem vencedor. Não
valia a pena teimar.
Viriato
Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Qual é o cenário
principal da festa de Natal descrita na crônica?
A festa de Natal
acontece no sítio do lavrador João Raimundo, onde ocorre a maior colheita de
algodão.
02 – Como se caracteriza a
festa de Natal no povoado descrito na crônica?
A festa é
animada, com brincadeiras, danças e música, principalmente com a presença de
violas, sanfonas e cavaquinhos.
03 – Quem eram os cantadores
famosos convidados para o "desafio" na festa?
José Firmino e
Pedro Jeju eram os cantadores famosos convidados para o desafio na festa.
04 – O que caracteriza a
importância do "desafio" entre os cantadores na festa?
O
"desafio" entre os cantadores é considerado muito importante, a ponto
de suspenderem as danças para que todos possam ouvi-los em silêncio.
05 – Quais são algumas das
habilidades mencionadas pelos cantadores durante o "desafio"?
Os cantadores
mencionam habilidades como parar o vento, fazer o sol esfriar, beber chumbo
derretido, entre outras.
06 – Como o povo reage ao
"desafio" entre José Firmino e Pedro Jeju?
O povo aplaude
com palmas e gritos durante o "desafio" entre José Firmino e Pedro
Jeju.
07 – Qual é o desfecho do
"desafio" entre José Firmino e Pedro Jeju?
Não houve vencedor no
"desafio". Ambos os cantadores mostraram-se fortes, e a crônica
sugere que não valia a pena insistir na busca de um vencedor.