Conto: A Chinela Turca
Machado de Assis
Vede o Bacharel Duarte. Acaba de compor o mais
teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe
a visita do Major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas.
Duarte estremeceu, e tinha duas razões para
isso. A primeira era ser o major, em qualquer ocasião, um dos mais enfadonhos
sujeitos do tempo. A segunda é que ele preparava-se justamente para ir ver, em
um baile, os mais finos cabelos loiros e os mais pensativos olhos azuis, que
este nossa clima, tão avaro deles, produzira. Datava de uma semana aquele
namoro. Seu coração deixando-se prender entre duas valsas, confiou aos olhos,
que eram castanhos, uma declaração em regra, que eles pontualmente transmitiram
à moça, dez minutos antes da ceia, recebendo favorável resposta logo depois do
chocolate. Três dias depois, estava a caminho a primeira carta, e pelo jeito
que levavam as cousas não era de admirar que, antes do fim do ano, estivessem
ambos a caminho da igreja. Nestas circunstâncias, a chegada de Lopo Alves era
uma verdadeira calamidade. Velho amigo da família, companheiro de seu finado
pai no exército, tinha jus o major a todos os respeitos. Impossível despedi-lo
ou tratá-lo com frieza. Havia felizmente uma circunstância atenuante; o major
era aparentado com Cecília, a moça dos olhos azuis; em caso de necessidade, era
um voto seguro. Duarte enfiou um chambre e dirigiu-se para a sala, onde Lopo
Alves, com um rolo debaixo do braço e os olhos fitos no ar, parecia totalmente
alheio à chegada do bacharel.
— Que bom vento o trouxe a Catumbi a semelhante
hora? Perguntou Duarte, dando à voz uma expressão de prazer, aconselhada não
menos pelo interesse que pelo bom-tom.
— Não
sei se o vento que me trouxe é bom ou mau, respondeu o major sorrindo por baixo
do espesso bigode grisalho; sei que foi um vento rijo. Vai sair?
— Vou ao Rio Comprido.
— Já sei; vai à casa da viúva Meneses. Minha
mulher e as pequenas já lá devem estar: eu irei mais tarde, se puder. Creio que
é cedo, não? Lopo Alves tirou o relógio e viu que eram nove horas e meia.
Passou a mão pelo bigode, levantou-se, deu alguns passos na sala, tornou a
sentar-se e disse:
— Dou-lhe uma notícia, que certamente não
espera. Saiba que fiz... Fiz um drama. — Um drama! Exclamou o bacharel.
— Que quer? Desde criança padeci destes
achaques literários. O serviço militar não foi remédio que me curasse, foi um
paliativo. A doença regressou com a força dos primeiros tempos. Já agora não há
mais remédio senão deixá-la, e ir simplesmente ajudando a natureza.
Duarte recordou-se de que efetivamente o major
falava noutro tempo de alguns discursos inaugurais, duas ou três nênias e boa
soma de artigos que escrevera acerca das campanhas do Rio da Prata. Havia porém
muitos anos que Lopo Alves deixara em paz os generais platinos e os defuntos;
nada fazia supor que a moléstia volvesse, sobretudo caracterizada por um drama.
Esta circunstância explicá-la-ia o bacharel, se soubesse que Lopo Alves algumas
semanas antes, assistira à representação de uma peça do gênero ultrarromântico,
obra que lhe agradou muito e lhe sugeriu a ideia de afrontar as luzes do
tablado. Não entrou o major nestas minusciosidades necessárias, e o bacharel
ficou sem conhecer o motivo da explosão dramática do militar. Nem o soube, nem
curou disso. Encareceu muito as faculdades mentais do major, manifestou
calorosamente a ambição que nutria de o ver sair triunfante naquela estreia,
prometeu que o recomendaria a alguns amigos que tinha no Correio Mercantil, e
só estacou e empalideceu quando viu o major, trêmulo de bem-aventurança, abrir
o rolo que trazia consigo.
— Agradeço-lhe as suas boas intenções, disse
Lopo Alves, e aceito o obséquio que me promete; antes dele, porém, desejo
outro. Sei que é inteligente e lido; há de me dizer francamente o que pensa
deste trabalho. Não lhe peço elogios, exijo franqueza e franqueza rude. Se
achar que não é bom, diga-o sem rebuço.
Duarte procurou desviar aquele cálix de
amargura; mas era difícil pedi-lo, e impossível alcançá-lo. Consultou
melancolicamente o relógio, que marcava nove horas e cinquenta e cinco minutos,
enquanto o major folheava paternalmente as cento e oitenta folhas do
manuscrito.
— Isto vai depressa, disse Lopo Alves; eu sei o
que são rapazes e o que são bailes. Descanse que ainda hoje dançará duas ou
três valsas com ela, se a tem, ou com elas. Não acha melhor irmos para o seu
gabinete?
Era indiferente, para o bacharel, o lugar do
suplício; acedeu ao desejo do hóspede. Este, com a liberdade que lhe davam as
relações, disse ao moleque que não deixasse entrar ninguém. O algoz não queria
testemunhas. A porta do gabinete fechou-se; Lopo Alves tomou lugar ao pé da
mesa, tendo em frente o bacharel, que mergulhou o corpo e o desespero numa
vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer palavra para ir mais depressa
ao termo.
O drama dividia-se em sete quadros. Esta
indicação produziu um calafrio no ouvinte. Nada havia de novo naquelas cento e
oitenta páginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres,
as ficelles, e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado.
Lopo Alves cuidava pôr por obra uma invenção, quando não fazia mais do que
alinhavar as suas reminiscências. Noutra ocasião, a obra seria um bom
passatempo. Havia logo no primeiro quadro, espécie de prólogo, uma criança
roubada à família, um envenenamento, dous embuçados, a ponta de um punhal e
quantidade de adjetivos não menos afiados que o punhal. No segundo quadro
dava-se conta da morte de um dos embuçados, que devia ressuscitar no terceiro,
para ser preso no quinto, e matar o tirano do sétimo. Além da morte aparente do
embuçado, havia no segundo quadro o rapto da menina, já então moça de dezessete
anos, um monólogo que parecia durar igual prazo, e o roubo de um testamento.
Eram quase onze horas quando acabou a leitura
deste segundo quadro. Duarte mal podia conter a cólera; era já impossível ir ao
Rio Comprido. Não é fora de propósito conjeturar que, se o major expirasse
naquele momento, Duarte agradecia a morte como um benefício da Providência. Os
sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a leitura de um
mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais espantosos. Acresce que,
enquanto aos olhos carnais do bacharel aparecia em toda a sua espessura a
grenha de Lopo Alves, fugiam-lhe ao espírito os fios de ouro que ornavam a
formosa cabeça de Cecília; via com os olhos azuis, a tez branca e rosada, o
gesto delicado e gracioso, dominando todas as demais damas que deviam estar no
salão da viúva Meneses. Via aquilo, e ouvia mentalmente a música, a palestra, o
soar dos passos, e o rugeruge das sedas; enquanto a voz rouquenha e sensaborona
de Lopo Alves ia desfiando os quadros e os diálogos, com a impassibilidade de
uma grande convicção.
Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta
dos quadros. Meia-noite soara desde muito; o baile estava perdido. De repente,
viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscrito, erguia-se, empertigava-se,
cravava nele uns olhos odientos e maus, e saía arrebatadamente do gabinete.
Duarte quis chamá-lo, mas o pasmo tolhera-lhe a voz e os movimentos. Quando
pôde dominar-se, ouviu o bater do tacão rijo e colérico do dramaturgo na pedra
da calçada.
Foi à janela; nada viu nem ouviu; autor e drama
tinham desaparecido.
— Por que não fez ele isso a mais tempo? Disse
o rapaz suspirando.
O suspiro mal teve tempo de abrir as asas e
sair pela janela fora, em demanda do Rio Comprido, quando o moleque do bacharel
veio anunciar-lhe a visita de um homem baixo e gordo.
— A esta hora? Exclamou Duarte.
— A esta hora, repetiu o homem baixo e gordo,
entrando na sala. A esta ou a qualquer hora, pode a polícia entrar na casa do
cidadão, uma vez que se trata de um delito grave.
— Um delito!
— Creio que me conhece...
— Não tenho essa honra.
— Sou empregado na polícia.
— Mas que tenho eu com o senhor? De que delito
se trata?
— Pouca cousa: um furto. O senhor é acusado de
ter subtraído uma chinela turca. Aparentemente não vale nada ou vale pouco a
tal chinela. Mas há chinela e chinela. Tudo depende das circunstâncias.
O homem disse isto com um riso sarcástico, e
cravando no bacharel uns olhos de inquisidor. Duarte não sabia sequer da
existência do objeto roubado. Concluiu que havia equívoco de nome, e não se
zangou com a injúria irrogada à sua pessoa, e de algum modo à sua classe,
atribuindo-se-lhe a ratonice. Isto mesmo disse ao empregado da polícia,
acrescentando que não era motivo, em todo caso, para incomodá-lo a semelhante
hora.
— Há de perdoar-me, disse o representante da
autoridade. A chinela de que se trata vale algumas dezenas de contos de réis; é
ornada de finíssimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é
turca só pela forma, mas também pela origem. A dona, que é uma de nossas
patrícias mais viajeiras, esteve, há cerca de três anos no Egito, onde a
comprou a um judeu. A história, que este aluno de Moisés referiu acerca daquele
produto da indústria muçulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir,
perfeitamente mentirosa. Mas não vem ao caso dizê-la. O que importa saber é que
ela foi roubada e que a polícia tem denúncia contra o senhor.
Neste ponto do discurso, chegara-se o homem à
janela; Duarte suspeitou que fosse um doudo ou um ladrão. Não teve tempo de
examinar a suspeita, porque dentro de alguns segundos, viu entrar cinco homens
armados, que lhe lançaram as mãos e o levaram, escada abaixo, sem embargo dos
gritos que soltava e dos movimentos desesperados que fazia. Na rua havia um
carro, onde o meteram à força. Já lá estava o homem baixo e gordo, e mais um
sujeito alto e magro, que o receberam e fizeram sentar no fundo do carro.
Ouviu-se estalar o chicote do cocheiro e o carro partiu à desfilada.
— Ah! Ah! Disse o homem gordo. Com que então
pensava que podia impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças louras,
casar talvez com elas... e rir ainda por cima do gênero humano.
Ouvindo aquela alusão à dama dos seus
pensamentos, Duarte teve um calafrio. Tratava-se, ao que parecia, de algum
desforço de rival suplantado. Ou a alusão seria casual e estranha à aventura?
Duarte perdeu-se num cipoal de conjeturas, enquanto o carro ia sempre andando a
todo galope. No fim de algum tempo, arriscou uma observação.
— Quaisquer que sejam os meus crimes, suponho
que a polícia...
— Nós não somos da polícia, interrompeu
friamente o homem magro.
— Ah!
— Este cavalheiro e eu fazemos um par. Ele, o
senhor e eu fazemos um terno. Ora, terno não é melhor que par; não é, não pode
ser. Um casal é o ideal. Provavelmente não me entendeu?
— Não, senhor.
— Há de entender logo mais.
Duarte resignou-se à espera, enfronhou-se no
silêncio, derreou o corpo, e deixou correr o carro e a aventura. Obra de cinco
minutos depois estacavam os cavalos.
— Chegamos, disse o homem gordo.
Dizendo isto, tirou um lenço da algibeira e
ofereceu-o ao bacharel para que tapasse os olhos. Duarte recusou, mas o homem
magro observou-lhe que era mais prudente obedecer que resistir. Não resistiu o
bacharel; atou o lenço e apeou-se. Ouviu, daí a pouco, ranger uma porta; duas
pessoas, — provavelmente as mesmas que o acompanharam no carro, — seguraram-lhe
as mãos e o conduziram por uma infinidade de corredores e escadas. Andando,
ouvia o bacharel algumas vozes desconhecidas, palavras soltas, frases
truncadas. Afinal pararam; disseram-lhe que se sentasse e destapasse os olhos.
Duarte obedeceu; mas ao desvendar-se, não viu ninguém mais. Era uma sala vasta,
assaz iluminada, trastejada com elegância e opulência.
Era talvez sobreposse a variedade dos adornos;
contudo, a pessoa que os escolhera devia ter gosto apurado.
Os bronzes, charões, tapetes, espelhos, — a
cópia infinita de objetos que enchiam a sala, era tudo da melhor fábrica. A
vista daquilo restituiu a serenidade de ânimo ao bacharel; não era provável que
ali morassem ladrões.
Reclinou-se o moço indolentemente na otomana...
Na otomana! Esta circunstância trouxe à memória do rapaz o princípio da
aventura e o roubo da chinela. Alguns minutos de reflexão bastaram para ver que
a tal chinela era já agora mas que problemática. Cavando mais fundo no terreno
das conjeturas, pareceu-lhe achar uma explicação nova e definitiva. A chinela
vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de Cecília, que ele roubara,
delito de que o queria punir o já imaginado rival. A isto deviam ligar-se
naturalmente as palavras misteriosas do homem magro: o par é melhor que o
terno; um casal é o ideal.
— Há de ser isto, concluiu Duarte; mas quem
será esse pretendente derrotado?
Neste momento abriu-se uma porta do fundo da
sala e negrejou a batina de um padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como por
efeito de uma mola. O padre atravessou lentamente a sala, ao passar por ele
deitou-lhe a bênção, e foi sair por outra porta rasgada na parede fronteira. O
bacharel ficou sem movimento, a olhar para a porta, a olhar sem ver, estúpido
de todos os sentidos. O inesperado daquela aparição baralhou totalmente as ideias
anteriores a respeito da aventura. Não teve tempo, entretanto, de cogitar
alguma nova explicação, porque a primeira porta foi de novo aberta e entrou por
ela outra figura, desta vez o homem magro, que foi direito a ele e o convidou a
segui-lo. Duarte não opôs resistência. Saíram por uma terceira porta, e,
atravessados alguns corredores mais ou menos alumiados, foram dar a outra sala,
que só o era por duas velas postas em castiçais de prata. Os castiçais estavam
sobre uma mesa larga. Na cabeceira desta havia um homem velho que representava
ter cinquenta e cinco anos; era uma figura atlética, farta de cabelos na cabeça
e na cara.
— Conhece-me? Perguntou o velho, logo que
Duarte entrou na sala.
— Não, senhor.
— Nem é preciso. O que vamos fazer exclui
absolutamente a necessidade de qualquer apresentação. Saberá em primeiro lugar
que o roubo da chinela foi um simples pretexto...
— Oh! Decerto! Interrompeu Duarte.
— Um simples pretexto, continuou o velho, para
trazê-lo a esta nossa casa. A chinela não foi roubada; nunca saiu das mãos da
dona. João Rufino, vá buscar a chinela.
O homem magro saiu, e o velho declarou ao
bacharel que a famosa chinela não tinha nenhum diamante, nem fora comprada a
nenhum judeu do Egito; era, porém, turca, segundo se lhe disse, e um milagre de
pequenez. Duarte ouviu as explicações, e, reunindo todas as forças, perguntou
resolutamente:
— Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que
querem de mim e o que estou fazendo nesta casa?
— Vai sabê-lo, respondeu tranquilamente o
velho.
A porta abriu-se e apareceu o homem magro com a
chinela na mão. Duarte, convidado a aproximar-se da luz, teve ocasião de
verificar que a pequenez era realmente miraculosa. A chinela era de marroquim
finíssimo; no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul, rutilavam
duas letras bordadas a ouro.
— Chinela de criança, não lhe parece? Disse o
velho.
— Suponho que sim.
— Pois supõe mal; é chinela de moça.
— Será; nada tenho com isso.
— Perdão! Tem muito, porque vai casar com a
dona.
— Casar! Exclamou Duarte.
— Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da
chinela.
Saiu o homem magro, e voltou logo depois.
Assomando à porta, levantou o reposteiro e deu entrada a uma mulher, que
caminhou para o centro da sala. Não era mulher, era uma sílfide, uma visão de
poeta, uma criatura divina.
Era loura; tinha os olhos azuis, como os de
Cecília, extáticos, uns olhos que buscavam o céu ou pareciam viver dele. Os
cabelos, desleixadamente penteados, faziam-lhe em volta da cabeça um como
resplendor de santa; santa somente, não mártir, porque o sorriso que lhe
desabrochava os lábios, era um sorriso de bem aventurança, como raras vezes há
de ter tido a terra.
Um vestido branco, de finíssima cambraia,
envolvia-lhe castamente o corpo, cujas formas aliás desenhava, pouco para os
olhos, mas muito para a imaginação.
Um rapaz, como o bacharel, não perde o
sentimento da elegância, ainda em lances daqueles. Duarte, ao ver a moça,
compôs o chambre, apalpou a gravata e fez uma cerimoniosa cortesia, a que ela
correspondeu com tamanha gentileza e graça, que a aventura começou a parecer
muito menos aterradora.
— Meu caro doutor, esta é a noiva. A moça
abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de casar.
— Três cousas vai o senhor fazer agora mesmo,
continuou impassivelmente o velho: a primeira, é casar; a segunda, escrever o
seu testamento; a terceira engolir droga do Levante...
— Veneno! Interrompeu Duarte.
— Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro:
passaporte do céu.
Duarte estava pálido e frio. Quis falar, não
pôde; um gemido, sequer, não lhe saiu do peito. Rolaria ao chão, se não
houvesse ali perto uma cadeira em que se deixou cair.
— O senhor, continuou o velho, tem uma
fortunazinha de cento e cinquenta contos. Esta pérola será a sua herdeira
universal. João Rufino, vá buscar o padre.
O padre entrou, o mesmo padre calvo que
abençoara o bacharel pouco antes; entrou e foi direto ao moço, engrolando
sonolentamente um trecho de Neemias ou qualquer outro profeta menos; travou-lhe
da mão e disse:
— Levante-se!
— Não! Não quero! Não me casarei!
— E isto? Disse da mesa o velho, apontando-lhe
uma pistola.
— Mas então é um assassinato?
— É; a diferença está no gênero de morte: ou
violenta com isto, ou suave com a droga. Escolha! Duarte suava e tremia. Quis
levantar-se e não pôde. Os joelhos batiam um contra o outro. O padre
chegou-se-lhe ao ouvido, e disse baixinho:
— Quer fugir?
— Oh! Sim! Exclamou, não com os lábios, que
podia ser ouvido, mas com os olhos em que pôs toda a vida que lhe restava.
— Vê aquela janela? Está aberta; embaixo fica
um jardim. Atire-se dali sem medo.
— Oh! Padre! Disse baixinho o bacharel.
— Não sou padre, sou tenente do exército. Não
diga nada.
A janela estava apenas cerrada; via-se pela
fresta uma nesga do céu, já meio claro. Duarte não hesitou, coligiu todas as
forças, deu um pulo do lugar onde estava e atirou-se a Deus misericórdia por
ali abaixo. Não era grande altura, a queda foi pequena; ergueu-se o moço
rapidamente, mas o homem gordo, que estava no jardim, tomou-lhe o passo.
— Que é isso? Perguntou ele rindo.
Duarte não respondeu, fechou os punhos, bateu
com eles violentamente nos peitos do homem e deitou a correr pelo jardim fora.
O homem não caiu; sentiu apenas um grande abalo; e, uma vez passada a
impressão, seguiu no encalço do fugitivo. Começou então uma carreira
vertiginosa. Duarte ia saltando cercas e muros, calcando canteiros, esbarrando
árvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente. Escorria-lhe o suor em
bica, alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco a pouco; tinha
uma das mãos feridas, a camisa salpicada do orvalho das folhas, duas vezes
esteve a ponto de ser apanhado, o chambre pegara-se-lhe em uma cerca de
espinhos. Enfim, cansado, ferido, ofegante, caiu nos degraus de pedra de uma
casa, que havia no meio do último jardim que atravessara.
Olhou para trás; não viu ninguém, o perseguidor
não o acompanhara até ali. Podia vir, entretanto; Duarte ergueu-se a custo,
subiu os quatro degraus que lhe faltavam, e entrou na casa, cuja porta, aberta,
dava para uma sala pequena e baixa.
Um homem que ali estava, lendo um número do
Jornal do Comércio, pareceu não o ter visto entrar. Duarte caiu numa cadeira.
Fitou os olhos no homem. Era o Major Lopo Alves.
O major, empunhando a folha, cujas dimensões
iam-se tornando extremamente exíguas, exclamou repentinamente:
— Anjo do céu, estás vingado! Fim do último
quadro.
Duarte olhou para ele, para a mesa, para as
paredes, esfregou os olhos, respirou à larga.
— Então!
Que tal lhe pareceu?
— Ah! Excelente! Respondeu o bacharel,
levantando-se.
— Paixões fortes, não?
— Fortíssimas. Que horas são?
— Deram duas agora mesmo. Duarte acompanhou o
major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpouse, foi até à janela.
Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um quarto
de hora, eis o que ele dizia consigo: — Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e
fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me
o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição:
provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco.
FIM
Entendendo o texto
01. Quem é
o protagonista do conto?
O protagonista do conto é o Bacharel
Duarte.
02. Por
que Duarte estava se arrumando no início do conto? Duarte
estava se arrumando porque estava se preparando para ir a um baile onde
encontraria uma moça com quem estava se relacionando.
03. Por
que a visita do Major Lopo Alves incomoda Duarte?
A visita do Major Lopo Alves incomoda
Duarte porque ele estava se preparando para encontrar uma moça de quem estava
apaixonado, e a presença do Major atrapalharia seus planos.
04. Qual é
o certo "crime" de Duarte no conto?
O certo "crime" de Duarte
no conto é o roubo de uma chinela turca valiosa.
05. Quem é
a verdadeira dona da chinela turca?
A verdadeira dona da chinela turca é a noiva que foi
apresentada a Duarte.
06. Qual é
o verdadeiro propósito da visita do Major Lopo Alves? O verdadeiro propósito
da visita do Major Lopo Alves era distrair e pregar uma peça em Duarte,
envolvendo-o em uma narrativa fantástica.
07. O que
o Major Lopo Alves revela a Duarte no final do conto? No
final do conto, o Major revela que toda a situação foi uma encenação eletrônica
para entreter Duarte e fazer com que ele vivesse uma experiência emocional
intensa.
08. O que
o Major Lopo Alves afirma ser o "melhor drama"?
O Major Lopo Alves afirma que o
"melhor drama" está no espectador, ou seja, nas emoções e reações do
público diante de uma história.
09. Como o
conto "A Chinela Turca" se desenrola em relação à realidade e à
imaginação?
O conto se desenrola misturando
elementos da realidade e da imaginação. O encontro do protagonista com o Major
e a narrativa do drama fantástico acontecem na realidade, enquanto o final
revela que tudo foi uma representação fictícia orquestrada para mexer com as
emoções de Duarte.
10.
Cite a moral da história.
Mantenha a porta da sua casa igual seu coração,
trancado.