quarta-feira, 3 de agosto de 2022

TEXTO: O OLHAR TAMBÉM PRECISA APRENDER A ENXERGAR - CARLOS HEITOR CONY - COM GABARITO

 Texto: O olhar também precisa aprender a enxergar

Texto 1

    Durante muitos e muitos anos, o Aleijadinho era desdenhado pelas cultas gentes. Tratava-se de um ignorante, que fazia leões com corpo de cachorro e cara de macaco. Em 1902, um crítico de artes plásticas austríaco viu a estátua do profeta Daniel em Congonhas do Campo e ficou horrorizado. Registrou em seu diário: “Só um povo imbecilizado pela sífilis e pela malária consentiria que tal monstruosidade ficasse ao lado do profeta Daniel.” [...]

CONY, Carlos Heitor. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 abr. 2005. Opinião, p. A2.

Texto 2

        O olhar também precisa aprender a enxergar

        Há uma historinha adorável, contada por Eduardo Galeano, escritor uruguaio, que diz que um pai, morador lá do interior do país, levou seu filho até a beira do mar. O menino nunca tinha visto aquela massa de água infinita. Os dois pararam sobre um morro. O menino, segurando a mão do pai, disse a ele: “Pai, me ajuda a olhar”. Pode parecer uma espécie de fantasia, mas deve ser a exata verdade, representando a sensação de faltarem não só palavras, mas também capacidade para entender o que é que estava se passando ali.

        Agora imagine o que se passa quando qualquer um de nós para diante de uma grande obra de arte visual: como olhar para aquilo e construir seu sentido na nossa percepção? Só com auxílio mesmo. Não quer dizer que a gente não se emocione apenas por ser exposto a um clássico absoluto, um Picasso ou um Niemeyer ou um Caravaggio. Quer dizer apenas que a gente pode ver melhor se entender melhor a lógica da criação.

FISCHER, Luís Augusto. Folha de S. Paulo, São Paulo.

               Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 158.

Entendendo os textos:

01 – O que revela o trecho do texto 1, de Carlos Heitor Cony?

      A passagem revela a rejeição ao que é diferente, a relatividade do conceito de “belo”, intolerância por parte de um crítico estrangeiro, preconceito contra a arte e o povo brasileiro.

02 – Explique o sentido de olhar e enxergar no título do texto 2, de Luís Augusto Fischer.

      Refere-se a uma gravação de sentido: primeiro olhar, depois enxergar. Olhar tem o sentido de dirigir os olhos para alguém, para algo ou para si; mirar, contemplar. Enxergar tem a acepção de distinguir pela visão; sentir, deduzir, inferir, julgar e entender.

03 – Relacionando a história contada pelo escritor uruguaio com “o que se passa quando qualquer um de nós para diante de uma grande obra de arte visual”, registre no caderno a ideia defendida pelo autor do texto 2.

I.O belo natural e o belo artístico provocam distintas reações de nossa percepção.

II.A educação do olhar leva a uma percepção compreensiva das coisas belas.

III. O belo artístico é tanto mais intenso quanto mais espelhe o belo natural.

IV. A lógica da criação artística é a mesma que rege o funcionamento da natureza.

V. A educação do olhar devolve ao adulto a espontaneidade da percepção das crianças.

      Alternativa II. De acordo com o texto de Luís Augusto Fischer, o olhar pode ser educado e a percepção pode ser aguçada para admirar e fruir a beleza natural ou artística.

04 – Analise a construção do texto 2 e registre no caderno a alternativa que explicita sua estrutura textual.

I. Há paralelismo de ideias entre os dois parágrafos, como, por exemplo, o que ocorre entre a frase do menino e a frase “Só com auxílio mesmo”.

II. A expressão “espécie de fantasia”, que aparece no primeiro parágrafo, é retomada e traduzida em “lógica de criação”, no segundo parágrafo.

III. A expressão “Agora imagine” tem como função assinalar a inteira independência do segundo parágrafo em relação ao primeiro.

IV. A afirmação contida no título restringe-se aos casos dos artistas mencionados no final do texto.

V. As ocorrências da expressão “a gente” constituem traços da impessoalidade e da objetividade que marcam a linguagem do texto.

      Alternativa I. Assim como o filho necessita da mediação do pai para entender a grandeza do mar, o autor constata que “só com auxílio mesmo” podemos desenvolver nossa percepção estética. A palavra mesmo retoma a ideia expressa no primeiro parágrafo.

 

MINICONTO: A ÁRVORE QUE PENSAVA - OSWALDO FRANÇA JÚNIOR - COM GABARITO

 Miniconto: A árvore que pensava

                 Oswaldo França Júnior

        Houve uma árvore que pensava. E pensava muito. Um dia transpuseram-na para a praça no centro da cidade. Fez-lhe bem a deferência. Ela entusiasmou-se, cresceu, agigantou-se.

        Aí vieram os homens e podaram seus galhos. A árvore estranhou o fato e corrigiu seu crescimento, pensando estar na direção de seus galhos a causa da insatisfação dos homens. Mas quando ela novamente se agigantou os homens voltaram e novamente amputaram seus galhos.

        A árvore queria satisfazer aos homens por julgá-los seus benfeitores, e parou de crescer. E como ela não crescesse mais, os homens a arrancaram da praça e colocaram outra em seu lugar.

FRANÇA JR., Oswaldo. As laranjas iguais. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996. p. 17.

               Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 146-7.

Entendendo o miniconto:

01 – Você já viu ou ouviu falar na minissérie de TV intitulada Carga pesada?

      Resposta pessoal do aluno.

02 – Você sabia que ela foi baseada no romance Jorge, um brasileiro, de Oswaldo França Jr.?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – Você sabia que esse autor também se dedicou ao miniconto?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – O que o título do miniconto “A árvore que pensava” lhe sugere?

      Resposta pessoal do aluno.

05 – Qual é a principal figura de linguagem usada na construção do miniconto “A árvore que pensava?” Exemplifique.

      A personificação. Exemplos: “Houve uma árvore que pensava. E pensava muito.”; “Ela entusiasmou-se [...]”; “A árvore estranhou o fato [...]”, etc. O texto contém elementos de um apólogo: um ser vegetal age como se humano e a narrativa tem o objetivo de transmitir uma mensagem, um ensinamento para o leitor.

06 – Identifique e explique no caderno a alternativa que não se relaciona às características formais e temáticas desse miniconto.

I. Impossibilidade de captar a intenção do outro.

II. Dificuldade de agradar as pessoas.

III. Interesse dos homens em relação à natureza.

IV. Uso de linguagem metafórica e concisa.

V. Mescla de real e fantástico.

      Alternativa III. O texto denuncia a falta de respeito dos homens pela natureza.

07 – Como você explica o uso do pretérito perfeito do verbo haver no início do miniconto “A árvore que pensava?”

      No momento da narração, a árvore já não existia: houve (existiu/existia).

08 – Identifique em “A árvore que pensava” uma marca das narrativas orais e explique-a.

      Emprego do advérbio aí, nesse texto, expressa circunstância de tempo e não de lugar: “Ai vieram os homens e podaram seus galhos”: Algum tempo depois vieram os homens e podaram seus galhos.

09 – Explique o uso do substantivo deferência em:

        “Fez-lhe bem a deferência.”

       Árvore se sentiu homenageada.

PARÓDIA: CANÇÃO DO EXÍLIO - CENA 9 - FERNANDO BONASSI - COM GABARITO

 Paródia: Canção do exílio – Cena 9

                  Leia um capítulo que faz parte do conto “15 cenas de descobrimento de Brasis”, de Fernando Bonassi.

               Fernando Bonassi

        Minha terra tem campos de futebol onde cadáveres amanhecem emborcados pra atrapalhar os jogos. Tem uma pedrinha cor-de-bile que faz “tuim” na cabeça da gente. Tem também muros de bloco (sem pintura, é claro, que tinta é a maior frescura quando falta mistura), onde pousam cacos de vidro pra espantar malaco. Minha terra tem HK, AR15, M21, 45 e 38 (na minha terra, 32 é uma piada). As sirenes que aqui apitam, apitam de repente e sem hora marcada. Elas não são mais as das fábricas, que fecharam. São mesmo é dos camburões, que vêm fazer aleijados, trazer tranquilidade e aflição.

BONASSI, Fernando. 15 cenas de descobrimento de Brasis. In: MORICONI, Ítalo (Org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio Janeiro: Objetiva, 2000. p. 607.

             Fonte: Livro Língua Portuguesa – Trilhas e Tramas – Volume 1 – Leya – São Paulo – 2ª edição – 2016. p. 123-4.

Entendendo a paródia:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Embarcado: colocado de bruços, de boca para baixo; despejado, tombado.

·        Cor-de-bile: esverdeado ou amarelado.

·        Frescura: gíria popular com o significado de coisa sem valor, dispensável.

·        Mistura: gíria popular indicando ingredientes para o almoço ou jantar (carne, verduras, legumes etc.).

·        Malaco: gíria com o significado de marginal, bandido, ladrão.

02 – Você acha possível alguém viver exilado em sua própria pátria ou em sua própria casa?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – Por que motivos isso ocorreria nos dias de hoje?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – Você já ouviu falar ou conhece alguma obra de Fernando Bonassi?

      Resposta pessoal do aluno.

05 – Esse texto dialoga diretamente com o poema “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Fernando Bonassi fez uma paródia ou uma paráfrase desse poema? Justifique.

      Fez uma paródia da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias. Em tom ufanista, o poema enaltece a natureza brasileira. O microconto de Bonassi, ao contrário, denuncia a realidade social das periferias urbanas do Brasil.

06 – Qual é o tema central desse microconto?

      A violência e a miséria.

07 – No caderno, registre falso ou verdadeiro para cada uma das alternativas a seguir:

a)   O texto de Bonassi dialoga com o noticiário policial. (Verdadeiro).

b)   A divisão em cenas – cena 9, por exemplo – remete à linguagem cinematográfica. (Verdadeiro).

c)   O autor denuncia o degredo de cidadãos brasileiros em solo pátrio. (Verdadeiro).

d)   Ele reafirma a visão ufanista do romântico Gonçalves Dias. (Falso).

08 – Explique no caderno as denúncias expressas em cada uma das seguintes passagens:

a)   Minha terra tem campos de futebol onde cadáveres amanhecem emborcados pra atrapalhar os jogos.

Chacinas, homicídios nos campos de futebol de várzea, nos morros e nas favelas.

b)   Tem uma pedrinha cor-de-bile que faz ‘tuim’ na cabeça da gente.

Tráfico e consumo de drogas, em particular de crack (“pedrinha cor-de-bile”).

c)   Tem também muros de bloco (sem pintura, é claro, que tinta é a maior frescura quando falta mistura), onde pousam cacos de vidro pra espantar malaco.

Moradias degradadas, carência alimentar, roubos, presença de marginais.

d)   [...] tem HK, AR15, M21, 45 e 38 (na minha terra, 32 é uma piada).

Uso de armas sofisticadas, importadas, potentes. Os números 45, 38 e 32 se referem ao calibre das armas.

e)   As sirenes [...] não são mais as das fábricas, que fecharam.

Fechamento de fábricas, desemprego.

f)    São mesmo é dos camburões, que vêm fazer aleijados, trazer tranquilidade e aflição.

Violência policial.

09 – A linguagem empregada nesse microconto está adequada? Explique.

      A linguagem está adequada a uma paródia, à aproximação com o noticiário policial, pela escolha das palavras e ao tom de crítica e de denúncia da violência na periferia urbana.

 

 

CONTO: O PERFUME - MIA COUTO - COM GABARITO

 Conto: O perfume

             Mia Couto

        – Hoje vamos ao baile!

        Justino assim se anunciou, estendendo em suas mãos um embrulho cor de presente. Glória, sua esposa, nem soube receber. Foi ele quem desatou os nós e fez despontar do papel colorido o vestido não menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que já esquecera o que esperava. Justino guardava ferrovias, seu tempo se amalgava, fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu coração. Entre marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?

        De onde o espanto de Glória, deixando esparramejar o vestido sobre seu colo. Que esperava ela, por que não se arranjava? O marido, parecia ter ensaiado brincadeira. Que lhe acontecera? O homem sempre dela se ciumara, quase ela nem podia assomar à janela, quanto mais. Glória se levantou, ela e o vestido se arrastaram mutuamente para o quarto. Incrédula e sonambulenta, arrastou o pente pelo cabelo. Em vão. O desleixo se antecipara fazendo definitivas tranças. Lembrou as palavras de sua mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com o seu próprio cabelo. Mas eu, mãe: primeiro, sou mulata. Segundo, nunca soube o que é isso de liberdade. E riu-se: livre: Era palavra que parecia de outra língua. Só de a soletrar sentia vergonha, o mesmo embaraço que experimentava em vestir a roupa que o marido lhe trouxera. Abriu a gaveta, venceu a emperrada madeira. E segurou o frasco de perfume, antigo, ainda embalado. Estava leve, o líquido havia evaporado. Justino lhe havia dado o frasco, em inauguração do namoro, ainda ela meninava. Em toda a vida, aquele fora o único presente. Só agora se somava o vestido. Espremeu o vidro do cheiro, a ordenhar as últimas gotas. Perfumei o quê com isto, se perguntou lançando o frasco no vazio da janela.

        – Nem sei o gosto de um cheiro.

        Escutou o velho vidro se estilhaçar no passeio. Voltou à sala, vestido se desencontrando com o corpo. As bainhas do pano namoriscavam os sapatos. Temia o comentário do marido sempre lhe apontando ousadias. Desta vez, porém, ele lhe olhou de modo estranho, sem parecer crer. Puxou-a para si e lhe ajeitou as formas, arrebitando o pano, avespando-lhe a cintura. Depois, perguntou:

        – Então não passa um arranjo no rosto?

        – Um arranjo?

        – Sim, uma cor, uma tinta.

        Ela se assombrou. Virou as costas e entrou na casa de banho, embasbocada. Que doença súbita dera nele? Onde diabo parava esse bâton, havia anos que poeirava naquela prateleira? Encontrou-o, minúsculo, gasto nas brincadeiras dos miúdos. Passou o lápis sobre os lábios. Leve, uma penumbra de cor. Carregue mais, faça valer os vermelhos. Era o marido, no espelho. Ela ergueu o rosto, desconhecida.

        – Vamos ao baile, sim. Você não costumava dançar, antes?

        – E os meninos?

        – Já organizei com o vizinho, não se preocupa.

        E foram. Justino ainda teve que tchovar a carrinha. Ela, como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou. Desta vez, não. Ele sozinho empurrava, onde é que se vira?

        Chegaram. Glória parecia não dar conta da realidade. Se deixou no assento da velha carrinha. Justino cavalheirou, mão pronta, gesto preso abrindo portas. O baile estava concorrido, cheio pelas costuras. A música transpirava pelo salão, em tonturas de casais. Os dois se sentaram numa mesa. Os olhos de Glória não exerciam. Apenas sombreavam pela mesa, pré-colegiais.

        Então, se aproximou um homem, em boa postura, pedindo ao guarda-freio lhe desse licença de sua esposa para um passo respeitoso. Os olhos aterrados dela esperaram cair a tempestade. Mas não. Justino contemplou o moço e lhe fez amplo sinal de anuência. A esposa arguiu:

        – Mas eu preferia dançar primeiro com meu marido.

        – Você sabe que eu nunca danço…

        E como ela ainda hesitasse ele lhe ordenou quase em sigilo de ternura: Vá, Glorinha, se divirta!

        E ela foi, vagarosa, espantalhada. Enquanto rodava ela fixava o seu homem sentado na mesa. Olhou fundo os seus olhos e viu neles um abandono sem nome, como esse vapor que restara de seu perfume. Então, entendeu: o marido estava a oferecê-la ao mundo. O baile, aquele convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita quando viu o marido se levantar e aprontar a saída. Ela interrompeu a dança e correu para Justino.

        – Onde vai, marido?

        – Um amigo me chamou, lá fora. Já volto.

        – Vou consigo, Justino.

        – Aquilo lá fora não é lugar das mulheres. Fique, dance com o moço. Eu já venho.

        Glória não voltou à dança. Sentada na reservada mesa, levantou o copo do marido e nele deixou a marca de seu bâton. E ficou a ver Justino se afastando entre a fumarada do salão, tudo se comportando longe. Vezes sem conta ela vira esse afastamento, o marido anonimado entre as neblinas dos comboios. Desta vez, porém, seu peito se agitou, em balanço de soluço. No limiar da porta, Justino ainda virou o rosto e demorou nela um último olhar. Com surpresa, ele viu a inédita lágrima, cintilando na face que ela ocultava. A lágrima é água e só a água lava tristeza. Justino sentiu o tropeço no peito, cinza virando brasa em seu coração. E fechou a noite, a porta decepando aquela breve desordem. Glória colheu a lágrima com dobra do próprio vestido. De quem, dentro dela mesma, ela se despedia?

        Saiu do baile, foi de encontro às trevas. Ainda procurou a velha carrinha. Ansiou que ela anda ali estivesse, necessitada de empurro. Mas de Justino não restava vestígio. Voltou a casa, sob o crepitar dos grilos. A meio do carreiro se descalçou e seus pés receberam a carícia da areia quente. Olhou o estrelejo nos céus. As estrelas são os olhos de quem morreu de amor. Ficam nos contemplando de cima, a mostrar que só o amor concede eternidades.

        Chegou a casa, cansada a ponto de nem sentir cansaços. Por instantes, pensou encontrar sinais de Justino. Mas o marido, se passara por ali, levara seu rastro. A Glória não lhe apeteceu a casa, magoava-lhe o lar como retrato de ente falecido. Adormeceu nos degraus da escada.

        Acordou nas primeiras horas da manhã, tonteando entre sono e sonho. Porque, dentro dela, em olfatos só da alma, ela sentiu o perfume. Seria o quê? Eflúvios do velho frasco? Não, só podia ser um novo presente, dádiva da paixão que regressava.

        – Justino?!

        Em sobressalto, correu para dentro da casa. Foi quando pisou os vidros, estilhaçados no sopé de sua janela. Ainda hoje restam, indeléveis pegadas de quando Glória estreou o sangue de sua felicidade.

COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 31-35.

      Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 17-19.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Ramerrames: (palavra onomatopaica) rotinas, repetições fastidiosas;

·        Assomar: aparecer, surgir;

·        Passeio: calçada;

·        Casa de banho: banheiro;

·        Miúdos: crianças;

·        Tchovar: empurrar;

·        Carrinha: carro utilitário (caminhonete, perua);

·        Presto: rápido;

·        Guarda-freio: funcionário da estrada de ferro que checa e manobra os freios do trem;

·        Anuência: aprovação;

·        Arguiu: retrucou;

·        Comboios: vagões, trem;

·        Apeteceu: agradou;

·        Eflúvios: aromas;

·        Indeléveis: que não podem ser apagados.

02 – O que chamou sua atenção na linguagem utilizada por Mia Couto?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A mistura da linguagem neologismos e coloquialismos, desconstrói ditos populares, etc.

03 – O conto compõe a coletânea intitulada Estórias abensonhadas. Alguns escritores diferenciam estória (narrativa ficcional) de história (narrativa não ficcional). Relacione essa diferença ao neologismo abensonhada e explique o título dessa coletânea de Mia Couto.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O título sugere que a obra composta de contos ficcionais, inventadas (estórias); o adjetivo abensonhadas é uma fusão das palavras abensonhadas e sonhadas.

04 – Ainda que o narrador não tenha caracterizado os personagens diretamente, podemos inferir informações sobre o perfil psicológico deles. Descreva Justino e Glória com base nas informações do texto e em seu conhecimento de mundo.

      Justino trabalha na ferrovia como guarda-freio e mantém com Glória um casamento marcado pelo tédio, pelo cansaço e pelo desânimo. Ele tem ciúme da esposa e a impede de ser livre, acusando-a de ousada. Glória é uma mulher sofrida que leva uma vida difícil, sem liberdade e sem sonhos, como o esposo. Vítima do imenso ciúme de Justino, parece ter perdido a vaidade: veste-se de maneira discreta, não usa maquiagens ou perfumes e não se relaciona com outros homens.

05 – No segundo parágrafo, o narrador dá informações importantes para o desenrolar do texto.

a)   Que ditado popular é citado pelo narrador?

O dito popular “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.

b)   Esse ditado mantém o sentido em que é usualmente empregado? Explique.

Não. Esse dito popular aparecerá no conto com outro sentido: “Entre marido e mulher o tempo metera a colher”. O tempo, e não um terceiro, será responsável pelo “ranço”, pelo “cansaço”, pelos “desnamoros”, pelos “ramerrames” que caracterizam a relação entre Justino e Glória.

c)   A progressão textual é um processo pelo qual o texto é construído com o acréscimo de novos dados ligados àqueles que já haviam sido introduzidos. Explique como se dá a progressão textual no conto citando os elementos que comprovam o dito popular mencionado no segundo parágrafo pelo narrador.

O dito popular, ressignificado no conto como “Entre marido e mulher o tempo metera a colher”, será retomado de diferentes formas ao longo do texto e contribuirá para sua progressão. O tempo, “roubador de espantos”, provocará o afastamento gradual de Justino e Glória e “resfriará” o casamento deles. Além disso, fará com que Glória não saiba mais receber um presente do marido e será responsável também pelas “definitivas tranças” no cabelo de Glória, emperrará a madeira da gaveta, símbolo do esquecimento do perfume, evaporará o perfume “antigo”, produzirá “miúdos” que gastarão o batom em brincadeiras, transformará Glorinha em Glória e mudará o olhar de Justino.

06 – O perfume é peça importante para a construção do sentido do texto.

a)   Relacione as ações de Glória aos momentos em que ele é citado.

O perfume é citado no texto em quatro momentos: quando abre a gaveta e percebe que o líquido evaporou; quando ela quebra o vidro; quando, após o baile, a personagem acorda, entre “sono e sonho”, e sente o cheiro do perfume; e, quando fere os pés com o vidro estilhaçado.

b)   Que sentido metafórico o perfume tem em cada uma das passagens?

Na primeira passagem, a evaporação do perfume sugere que o amor de Glória também já se dissipou em um relacionamento desgastado pelo tempo. Na segunda, a personagem mostra-se irada com a percepção de que seu casamento nem sequer garantiu a ela “o gosto de um cheiro”. Na terceira passagem, a mulher já sabe que não mais terá o marido e percebe que seu amor por ele voltou em virtude de sua mudança de comportamento. Na quarta, quando Glória pisa nos cacos de vidro e corre para dentro, imprime as pegadas ensanguentadas no assoalho, que permanecem ali até o presente, como que marcando a estreia de uma nova vida.

c)   Explique como é possível Glória sentir o cheiro do perfume mesmo depois de evaporado seu líquido e estilhaçado seu frasco.

O perfume é, ao mesmo tempo, símbolo de amor / desamor / retomada do amor. A busca do perfume e a descoberta de sua evaporação sugerem a atual falta de cuidado que um dia, ainda que de maneira tímida, Justino teve com Glória. Entretanto, a generosidade mostrada pelo marido no episódio do baile – que abrange o vestido dado de presente, a maquiagem exigida, a licença para a esposa dançar com um homem de “boa postura” – faz Glória retomar seu amor perdido, o que justifica que ela sinta metaforicamente o agradável cheiro do perfume que Justino lhe deu de presente no início do namoro deles. Esse cheiro simboliza a “paixão que regressava” ao coração de Glória.

 

CONTO: PASSEI POR UM SONHO - JOSÉ EDUARDO AGUALUSA - COM GABARITO

 Conto: Passei por um sonho

            José Eduardo Agualusa.

        Começou com um sonho. Afinal, é como começa quase tudo. Justo Santana, enfermeiro de profissão, sonhou um pássaro.

        – Passei por um sonho – disse à mulher quando esta acordou –, e vi um pássaro.

        A mulher quis saber que espécie de pássaro, mas Justo Santana não foi capaz de precisar. Era um pássaro grande, grave, branco como um ferro incandescente, e com umas asas ainda mais brilhosas, que o dito pássaro usava sempre abertas, de tal maneira que fazia lembrar Jesus Cristo pregado na cruz.

        – Fui sonhado por ti – disse-lhe o pássaro – com o fim de esclarecer o espírito dos homens e de trazer a liberdade a este pobre país.

        0 discurso do pássaro assustou o enfermeiro, homem simples, tímido, avesso a confrontos, e sem qualquer vocação para a política.

        – Foi apenas um sonho – disse à mulher –, um sonho estúpido.

        Na noite seguinte, porém, o pássaro voltou a aparecer-lhe. Estava ainda mais branco, mais trágico, e parecia aborrecido com o desinteresse do enfermeiro:

        – Ordeno-te que vás por esse país fora e digas a todos os homens que se preparem para um mundo novo. Os brancos vão partir e os pretos ocuparão as casas, os palácios, as igrejas e os quartéis, e a liberdade há de reinar para sempre.

        Dizendo isto sacudiu as asas e as suas penas espalharam-se pelo quarto:

        – Com estas minhas penas hás de curar os enfermos – disse o pássaro –, e assim até os mais incrédulos acreditarão em ti e seguirão os teus passos.

        Quando Justo Santana despertou, o quarto brilhava com o esplendor das penas. Na manhã desse mesmo dia o enfermeiro serviu-se de uma delas para curar um homem com elefantíase e à tardinha devolveu a vista a um cego. Passado apenas um mês a sua fama de santo e milagreiro já se espalhara muito para além das margens do Rio Zaire e à porta da sua casa ia crescendo uma multidão de padecentes. Alguns tinham vindo de muito longe, a pé, ou em improvisadas padiolas, e chegavam cobertos por uma idêntica poeira vermelha – bonecos de barro à espera de um sopro divino.

        Justo Santana colocava na boca dos enfermes uma pena do pássaro, como se fosse uma hóstia, e estes imediatamente ganhavam renovado alento. Enquanto fazia isto o enfermeiro repetia os discursos do pássaro, incapaz de compreender a fúria daquelas palavras e o alcance delas. Todas as noites sonhava com a ave e todas as noites esta o forçava a decorar um discurso novo, após o que sacudia as asas, espalhando pelo ar morto do quarto as penas milagrosas.

        – Se esse pássaro continuar assim tão generoso – disse Justo Santana à mulher – ainda o veremos transformado numa alma despenada.

        Isto durou um ano. Então, numa manhã de cacimbo, apareceram quatro soldados à porta da casa, afastaram com rancor a multidão de desvalidos, e levaram Justo Santana. O infeliz foi acusado de fomentar o terrorismo e a sublevação, e desterrado para uma praia remota, em pleno deserto do Namibe, onde passou a exercer o ofício de faroleiro.

        Quando o encontrei, muitos anos depois, em Luanda, ele falou-me desse desterro com nostalgia:

        – Foi a melhor época da minha vida.

        Encontrei-o doente, estendido numa larga cama de ferro, sob lençóis muito brancos. No quarto havia apenas a cama e um pequeno crucifixo preso à parede. Na sala ao lado os devotos rezavam murmurosas ladainhas. Aquela era a sede da Igreja do Divino Espírito. Não tinha sido nada fácil chegar até junto do enfermeiro: os seus seguidores guardavam-no corno a uma relíquia – na verdade mantinham-no preso ali, naquele quarto, quase isolado do mundo, desde 1975.

        A melhor época da vida de Justo Santana terminou de forma trágica, numa noite de tempestade, quando um bando de aves migratórias caiu sobre o farol. Enlouquecidas pela luz, as avezinhas batiam contra o cristal até quebrarem as asas, sendo depois arrastadas pelo vento. Isto está sempre a acontecer. Milhares de aves migratórias morrem todos os anos traídas pelo fulgor dos faróis. Naquela noite, desrespeitando as normas, Justo Santana foi em socorro das aves e desligou o farol. Teve pouca sorte: um barco com tropas, de regresso à metrópole, perdeu-se na escuridão e encalhou na praia. Dessa vez o enfermeiro foi julgado, condenado a quinze anos de prisão, e enviado para o Tarrafal, em Cabo Verde. Foi solto com a Revolução de Abril e regressou a Angola.

        Quando o visitei, antes de me ir embora, quis saber se o pássaro ainda lhe frequentava os sonhos. Ele olhou em redor para se certificar de que estávamos sozinhos:

        – Estrangulei-o – segredou com um sorriso cúmplice –, mas enquanto eu for vivo não conte isto a ninguém.

José Eduardo Agualusa. Passei por um sonho. In: CHAVES, Rita (Sel. E org.). Contos Africanos dos países de língua portuguesa. São Paulo: Ática, 2009. p. 106-110. (Para gostar de Ler, v. 44).

     Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 111-3.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Grave: notável.

·        Padecentes: doentes.

·        Padiolas: camas de lona portáteis, macas.

·        Alento: vigor, entusiasmo.

·        Cacimbo: névoa.

·        Fomentar: estimular.

·        Sublevação: revolta, rebeldia.

·        Desterrado: exilado.

·        Cristal: vidro.

·        Fulgor: brilho.

·        Metrópole: refere-se a Portugal.

02 – Que sonho Justo Santana relata à esposa?

      Justo relata haver sonhado com um pássaro “grande, grave, branco”, que, em sua interpretação, remetia à imagem de Jesus Cristo crucificado. Essa ave apresentava a ele um discurso relacionado à liberdade, à paz de seu país e ao “esclarecimento do espírito dos homens”.

03 – O que pretendia o pássaro do sonho do protagonista?

      Ordenar a Justo que dissesse a todos os homens de seu país que se preparassem para o surgimento de um “mundo novo”.

04 – No texto lido, elementos ficcionais se misturam à história de Angola, país africano que foi colônia de Portugal até 1975. Ao longo do século XX, organizações como o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (Unita) estiveram em luta contra a metrópole. Explique de que modo essa informação histórica pode ser relacionada à seguinte passagem do conto:

        “– Ordeno-te que vás por esse país fora e digas a todos os homens que se preparem para um mundo novo. Os brancos vão partir e os pretos ocuparão as casas, os palácios, as igrejas e os quartéis, e a liberdade há de reinar para sempre.”

      O “mundo novo” referido pelo pássaro alude a uma Angola livre. Os “brancos” citados seriam os portugueses, e os “pretos” seriam os angolanos, que retomariam casas, palácios, igrejas e quartéis, tornando-se libertos de Portugal, o que ocorreu em 1975.

05 – Em sua opinião, o que simboliza o pássaro do sonho de Justo Santana?

      O pássaro simboliza o desejo de liberdade do povo angolano.

06 – Após ser acusado de “fomentar o terrorismo e a sublevação”, Justo é mandado para uma praia remota, onde passa a exercer o ofício de faroleiro. Que relação pode ser estabelecida entre a situação vivida pelo protagonista no episódio do desligamento do farol e aquela experimentada por ele no sonho?

      Em ambas as situações há a presença de pássaros e Justo auxilia uma coletividade. No episódio do sonho, ele atende ao pedido de uma ave divina e passa a ajudar os necessitados e a doutrina-los politicamente por meio dos discursos que lhe são transmitidos. Isso faz com que ele seja condenado ao desterro. No episódio do farol, por sua vez, Justo apaga a luz do local para socorrer as aves migratórias; com isso, causa um acidente com um “arco com tropas” e acaba condenado à prisão.

07 – O conto de Agualusa apresenta um final bastante simbólico, aberto a diferentes interpretações. Para você, por que Justo teria estrangulado o pássaro do sonho?

      Resposta pessoal do aluno.