Conto: O perfume
Mia Couto
– Hoje vamos ao baile!
Justino assim se anunciou, estendendo
em suas mãos um embrulho cor de presente. Glória, sua esposa, nem soube
receber. Foi ele quem desatou os nós e fez despontar do papel colorido o
vestido não menos colorido. A mulher, subvivente, somava tanta espera que já
esquecera o que esperava. Justino guardava ferrovias, seu tempo se amalgava,
fumo dos fumos, ponteiro encravado em seu coração. Entre marido e mulher o
tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos. Sobrara o pasto dos
cansaços, desnamoros, ramerrames. O amor, afinal, que utilidade tem?
De onde o espanto de Glória, deixando
esparramejar o vestido sobre seu colo. Que esperava ela, por que não se
arranjava? O marido, parecia ter ensaiado brincadeira. Que lhe acontecera? O
homem sempre dela se ciumara, quase ela nem podia assomar à janela, quanto
mais. Glória se levantou, ela e o vestido se arrastaram mutuamente para o
quarto. Incrédula e sonambulenta, arrastou o pente pelo cabelo. Em vão. O
desleixo se antecipara fazendo definitivas tranças. Lembrou as palavras de sua
mãe: mulher preta livre é a que sabe o que fazer com o seu próprio cabelo. Mas
eu, mãe: primeiro, sou mulata. Segundo, nunca soube o que é isso de liberdade.
E riu-se: livre: Era palavra que parecia de outra língua. Só de a soletrar
sentia vergonha, o mesmo embaraço que experimentava em vestir a roupa que o
marido lhe trouxera. Abriu a gaveta, venceu a emperrada madeira. E segurou o
frasco de perfume, antigo, ainda embalado. Estava leve, o líquido havia
evaporado. Justino lhe havia dado o frasco, em inauguração do namoro, ainda ela
meninava. Em toda a vida, aquele fora o único presente. Só agora se somava o
vestido. Espremeu o vidro do cheiro, a ordenhar as últimas gotas. Perfumei o
quê com isto, se perguntou lançando o frasco no vazio da janela.
– Nem sei o gosto de um cheiro.
Escutou o velho vidro se estilhaçar no
passeio. Voltou à sala, vestido se desencontrando com o corpo. As bainhas do
pano namoriscavam os sapatos. Temia o comentário do marido sempre lhe apontando
ousadias. Desta vez, porém, ele lhe olhou de modo estranho, sem parecer crer.
Puxou-a para si e lhe ajeitou as formas, arrebitando o pano, avespando-lhe a
cintura. Depois, perguntou:
– Então não passa um arranjo no rosto?
– Um arranjo?
– Sim, uma cor, uma tinta.
Ela se assombrou. Virou as costas e
entrou na casa de banho, embasbocada. Que doença súbita dera nele? Onde diabo
parava esse bâton, havia anos que poeirava naquela prateleira? Encontrou-o,
minúsculo, gasto nas brincadeiras dos miúdos. Passou o lápis sobre os lábios.
Leve, uma penumbra de cor. Carregue mais, faça valer os vermelhos. Era o
marido, no espelho. Ela ergueu o rosto, desconhecida.
– Vamos ao baile, sim. Você não
costumava dançar, antes?
–
E os meninos?
– Já organizei com o vizinho, não se
preocupa.
E foram. Justino ainda teve que tchovar
a carrinha. Ela, como sempre, desceu para ajudar. Mas o marido recusou. Desta
vez, não. Ele sozinho empurrava, onde é que se vira?
Chegaram. Glória parecia não dar conta
da realidade. Se deixou no assento da velha carrinha. Justino cavalheirou, mão
pronta, gesto preso abrindo portas. O baile estava concorrido, cheio pelas
costuras. A música transpirava pelo salão, em tonturas de casais. Os dois se
sentaram numa mesa. Os olhos de Glória não exerciam. Apenas sombreavam pela
mesa, pré-colegiais.
Então, se aproximou um homem, em boa
postura, pedindo ao guarda-freio lhe desse licença de sua esposa para um passo
respeitoso. Os olhos aterrados dela esperaram cair a tempestade. Mas não.
Justino contemplou o moço e lhe fez amplo sinal de anuência. A esposa arguiu:
– Mas eu preferia dançar primeiro com
meu marido.
– Você sabe que eu nunca danço…
E como ela ainda hesitasse ele lhe
ordenou quase em sigilo de ternura: Vá, Glorinha, se divirta!
E ela foi, vagarosa, espantalhada.
Enquanto rodava ela fixava o seu homem sentado na mesa. Olhou fundo os seus
olhos e viu neles um abandono sem nome, como esse vapor que restara de seu
perfume. Então, entendeu: o marido estava a oferecê-la ao mundo. O baile,
aquele convite, eram uma despedida. Seu peito confirmou a suspeita quando viu o
marido se levantar e aprontar a saída. Ela interrompeu a dança e correu para
Justino.
– Onde vai, marido?
– Um amigo me chamou, lá fora. Já
volto.
– Vou consigo, Justino.
– Aquilo lá fora não é lugar das
mulheres. Fique, dance com o moço. Eu já venho.
Glória não voltou à dança. Sentada na
reservada mesa, levantou o copo do marido e nele deixou a marca de seu bâton. E
ficou a ver Justino se afastando entre a fumarada do salão, tudo se comportando
longe. Vezes sem conta ela vira esse afastamento, o marido anonimado entre as
neblinas dos comboios. Desta vez, porém, seu peito se agitou, em balanço de
soluço. No limiar da porta, Justino ainda virou o rosto e demorou nela um
último olhar. Com surpresa, ele viu a inédita lágrima, cintilando na face que
ela ocultava. A lágrima é água e só a água lava tristeza. Justino sentiu o
tropeço no peito, cinza virando brasa em seu coração. E fechou a noite, a porta
decepando aquela breve desordem. Glória colheu a lágrima com dobra do próprio
vestido. De quem, dentro dela mesma, ela se despedia?
Saiu
do baile, foi de encontro às trevas. Ainda procurou a velha carrinha. Ansiou
que ela anda ali estivesse, necessitada de empurro. Mas de Justino não restava
vestígio. Voltou a casa, sob o crepitar dos grilos. A meio do carreiro se
descalçou e seus pés receberam a carícia da areia quente. Olhou o estrelejo nos
céus. As estrelas são os olhos de quem morreu de amor. Ficam nos contemplando
de cima, a mostrar que só o amor concede eternidades.
Chegou a casa, cansada a ponto de nem
sentir cansaços. Por instantes, pensou encontrar sinais de Justino. Mas o
marido, se passara por ali, levara seu rastro. A Glória não lhe apeteceu a
casa, magoava-lhe o lar como retrato de ente falecido. Adormeceu nos degraus da
escada.
Acordou nas primeiras horas da manhã,
tonteando entre sono e sonho. Porque, dentro dela, em olfatos só da alma, ela
sentiu o perfume. Seria o quê? Eflúvios do velho frasco? Não, só podia ser um
novo presente, dádiva da paixão que regressava.
– Justino?!
Em sobressalto, correu para dentro da
casa. Foi quando pisou os vidros, estilhaçados no sopé de sua janela. Ainda
hoje restam, indeléveis pegadas de quando Glória estreou o sangue de sua felicidade.
COUTO, Mia. Estórias
abensonhadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 31-35.
Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na
língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição
– São Paulo, 2016 – Moderna – p. 17-19.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Ramerrames: (palavra onomatopaica) rotinas, repetições fastidiosas;
·
Assomar: aparecer, surgir;
·
Passeio: calçada;
·
Casa
de banho: banheiro;
·
Miúdos: crianças;
·
Tchovar: empurrar;
·
Carrinha: carro utilitário (caminhonete, perua);
·
Presto: rápido;
·
Guarda-freio: funcionário da estrada de ferro que checa e manobra os freios
do trem;
·
Anuência: aprovação;
·
Arguiu: retrucou;
·
Comboios: vagões, trem;
·
Apeteceu: agradou;
·
Eflúvios: aromas;
·
Indeléveis: que não podem ser apagados.
02 – O que chamou sua
atenção na linguagem utilizada por Mia Couto?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: A mistura da linguagem neologismos e coloquialismos,
desconstrói ditos populares, etc.
03 – O conto compõe a
coletânea intitulada Estórias abensonhadas. Alguns escritores diferenciam
estória (narrativa ficcional) de história (narrativa não ficcional). Relacione
essa diferença ao neologismo abensonhada e explique o título dessa coletânea de
Mia Couto.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: O título sugere que a obra composta de contos ficcionais,
inventadas (estórias); o adjetivo abensonhadas é uma fusão das palavras
abensonhadas e sonhadas.
04 – Ainda que o narrador
não tenha caracterizado os personagens diretamente, podemos inferir informações
sobre o perfil psicológico deles. Descreva Justino e Glória com base nas
informações do texto e em seu conhecimento de mundo.
Justino trabalha
na ferrovia como guarda-freio e mantém com Glória um casamento marcado pelo
tédio, pelo cansaço e pelo desânimo. Ele tem ciúme da esposa e a impede de ser
livre, acusando-a de ousada. Glória é uma mulher sofrida que leva uma vida
difícil, sem liberdade e sem sonhos, como o esposo. Vítima do imenso ciúme de
Justino, parece ter perdido a vaidade: veste-se de maneira discreta, não usa
maquiagens ou perfumes e não se relaciona com outros homens.
05 – No segundo parágrafo, o
narrador dá informações importantes para o desenrolar do texto.
a)
Que ditado popular é citado pelo narrador?
O dito popular “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”.
b)
Esse ditado mantém o sentido em que é usualmente
empregado? Explique.
Não. Esse dito popular aparecerá no conto com outro sentido: “Entre
marido e mulher o tempo metera a colher”. O tempo, e não um terceiro, será
responsável pelo “ranço”, pelo “cansaço”, pelos “desnamoros”, pelos
“ramerrames” que caracterizam a relação entre Justino e Glória.
c)
A progressão textual é um processo pelo qual
o texto é construído com o acréscimo de novos dados ligados àqueles que já
haviam sido introduzidos. Explique como se dá a progressão textual no conto
citando os elementos que comprovam o dito popular mencionado no segundo
parágrafo pelo narrador.
O dito popular, ressignificado no conto como “Entre marido e mulher
o tempo metera a colher”, será retomado de diferentes formas ao longo do texto
e contribuirá para sua progressão. O tempo, “roubador de espantos”, provocará o
afastamento gradual de Justino e Glória e “resfriará” o casamento deles. Além
disso, fará com que Glória não saiba mais receber um presente do marido e será
responsável também pelas “definitivas tranças” no cabelo de Glória, emperrará a
madeira da gaveta, símbolo do esquecimento do perfume, evaporará o perfume “antigo”,
produzirá “miúdos” que gastarão o batom em brincadeiras, transformará Glorinha
em Glória e mudará o olhar de Justino.
06 – O perfume é peça
importante para a construção do sentido do texto.
a)
Relacione as ações de Glória aos momentos em
que ele é citado.
O perfume é citado no texto em quatro momentos: quando abre a gaveta
e percebe que o líquido evaporou; quando ela quebra o vidro; quando, após o
baile, a personagem acorda, entre “sono e sonho”, e sente o cheiro do perfume;
e, quando fere os pés com o vidro estilhaçado.
b)
Que sentido metafórico o perfume tem em cada
uma das passagens?
Na primeira passagem, a evaporação do perfume sugere que o amor de
Glória também já se dissipou em um relacionamento desgastado pelo tempo. Na
segunda, a personagem mostra-se irada com a percepção de que seu casamento nem
sequer garantiu a ela “o gosto de um cheiro”. Na terceira passagem, a mulher já
sabe que não mais terá o marido e percebe que seu amor por ele voltou em
virtude de sua mudança de comportamento. Na quarta, quando Glória pisa nos
cacos de vidro e corre para dentro, imprime as pegadas ensanguentadas no
assoalho, que permanecem ali até o presente, como que marcando a estreia de uma
nova vida.
c)
Explique como é possível Glória sentir o
cheiro do perfume mesmo depois de evaporado seu líquido e estilhaçado seu
frasco.
O perfume é, ao mesmo tempo, símbolo de amor / desamor / retomada do
amor. A busca do perfume e a descoberta de sua evaporação sugerem a atual falta
de cuidado que um dia, ainda que de maneira tímida, Justino teve com Glória.
Entretanto, a generosidade mostrada pelo marido no episódio do baile – que
abrange o vestido dado de presente, a maquiagem exigida, a licença para a
esposa dançar com um homem de “boa postura” – faz Glória retomar seu amor
perdido, o que justifica que ela sinta metaforicamente o agradável cheiro do
perfume que Justino lhe deu de presente no início do namoro deles. Esse cheiro
simboliza a “paixão que regressava” ao coração de Glória.