Conto: O PIROTÉCNICO ZACARIAS Murilo Rubião
E se levantará pela tarde sobre ti
uma luz como a do meio-dia; e quando te julgares consumido, nascerás como a
estrela-d’alva. (Jó, xi, 17).
Raras são as vezes que, nas conversas
de amigos meus, ou de pessoas das minhas relações, não surja esta pergunta.
Teria morrido o pirotécnico Zacarias?
A esse respeito as opiniões são
divergentes. Uns acham que estou vivo — o morto tinha apenas alguma
semelhança comigo. Outros, mais supersticiosos, acreditam que a minha morte
pertence ao rol dos fatos consumados e o indivíduo a quem andam chamando
Zacarias não passa de uma alma penada, envolvida por um pobre invólucro
humano. Ainda há os que afirmam de maneira categórica o meu falecimento e não
aceitam o cidadão existente como sendo Zacarias, o artista pirotécnico, mas
alguém muito parecido com o finado.
Uma coisa ninguém discute: se
Zacarias morreu, o seu corpo não foi enterrado.
A única pessoa que poderia dar
informações certas sobre o assunto sou eu. Porém estou impedido de fazê-lo
porque os meus companheiros fogem de mim, tão logo me avistam pela frente.
Quando apanhados de surpresa, ficam estarrecidos e não conseguem articular
uma palavra.
Em verdade morri, o que vem ao
encontro da versão dos que creem na minha morte. Por outro lado, também não
estou morto, pois faço tudo o que antes fazia e, devo dizer, com mais agrado
do que anteriormente.
A princípio foi azul, depois verde,
amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho
15 compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso com
pigmentos amarelados, de um amarelo esverdeado, tênue, quase sem cor.
Quando tudo começava a ficar branco,
veio um automóvel e me matou.
— Simplício Santana de Alvarenga!
— Presente!
Senti rodar-me a cabeça, o corpo
balançar, como se me faltasse o apoio do solo. Em seguida fui arrastado por
uma força poderosa, irresistível. Tentei agarrar-me às árvores, cujas
ramagens retorcidas, puxadas para cima, escapavam aos meus dedos. Alcancei
mais adiante, com as mãos, uma roda de fogo, que se pôs a girar com grande
velocidade por entre elas, sem queimá-las, todavia.
— “Meus senhores: na luta vence o
mais forte e o momento é de decisões supremas. Os que desejarem sobreviver ao
tempo tirem os seus chapéus!”
(Ao meu lado dançavam fogos de
artifício, logo devorados pelo arco-íris.)
— Simplício Santana de Alvarenga!
— Não está?
— Tire a mão da boca, Zacarias!
— Quantos são os continentes?
— E a Oceania?
Dos mares da China não mais virão as
quinquilharias.
A professora magra, esquelética, os
olhos vidrados, empunhava na mão direita uma dúzia de foguetes. As varetas
eram compridas, tão longas que obrigavam dona Josefina a ter os pés
distanciados uns dois metros do assoalho e a cabeça, coberta por fios de
barbante, quase encostada no teto.
— Simplício Santana de Alvarenga!
— Meninos, amai a verdade!
A noite estava escura. Melhor, negra.
Os filamentos brancos não tardariam a cobrir o céu.
Caminhava pela estrada. Estrada do
Acaba Mundo: algumas curvas, silêncio, mais sombras que silêncio.
O automóvel não buzinou de longe. E nem
quando já se encontrava perto de mim, enxerguei os seus faróis. Simplesmente
porque não seria naquela noite que o branco desceria até a terra.
As moças que vinham no carro deram gritos
histéricos e não se demoraram a desmaiar. Os rapazes falaram baixo,
curaram-se instantaneamente da bebedeira e se puseram a discutir qual o
melhor destino a ser dado ao cadáver.
A princípio foi azul, depois verde,
amarelo e negro. Um negro espesso, cheio de listras vermelhas, de um vermelho
compacto, semelhante a densas fitas de sangue. Sangue pastoso, com pigmentos
amarelados, de um amarelo esverdeado, quase sem cor. Sem cor jamais quis
viver. Viver, cansar bem os músculos, andando pelas ruas cheias de gente,
ausentes de homens.
Havia silêncio, mais sombras que
silêncio, porque os rapazes não mais discutiam baixinho. Falavam com
naturalidade, dosando a gíria.
Também o ambiente repousava na mesma
calma e o cadáver — o meu ensanguentado cadáver — não protestava contra o fim
que os moços lhe desejavam dar.
A ideia inicial, logo rejeitada,
consistia em me transportar para a cidade, onde me deixariam no necrotério.
Após breve discussão, todos os argumentos analisados com frieza, prevaleceu a
opinião de que meu corpo poderia sujar o carro. E havia ainda o inconveniente
das moças não se conformarem em viajar ao lado de um defunto. (Nesse ponto
eles estavam redondamente enganados, como explicarei mais tarde.)
Um dos moços, rapazola forte e imberbe
— o único que se impressionara com o acidente e permanecera calado e aflito
no decorrer dos acontecimentos —, propôs que se deixassem as garotas na
estrada e me levassem para o cemitério. Os companheiros não deram importância
à proposta. Limitaram-se a condenar o mau gosto de Jorginho — assim lhe
chamavam — e a sua insensatez em interessar-se mais pelo destino do cadáver
do que pelas lindas pequenas que os acompanhavam.
O rapazola notou a bobagem que
acabara de proferir e, sem encarar de frente os componentes da roda, pôs-se a
assoviar, visivelmente encabulado.
Não pude evitar a minha imediata
simpatia por ele, em virtude da sua razoável sugestão, debilmente formulada
aos que decidiam a minha sorte. Afinal, as longas caminhadas cansam
indistintamente defuntos e vivos. (Esse argumento não me ocorreu no momento.)
Discutiram em seguida outras soluções
e, por fim, consideraram que me lançar ao precipício, um fundo precipício,
que margeava a estrada, limpar o chão manchado de sangue, lavar
cuidadosamente o carro, quando chegassem a casa, seria o alvitre mais
adequado ao caso e o que melhor conviria a possíveis complicações com a
polícia, sempre ávida de achar mistério onde nada existe de misterioso.
Mas aquele seria um dos poucos
desfechos que não me interessavam. Ficar jogado em um buraco, no meio de
pedras e ervas, tornava-se para mim uma ideia insuportável. E ainda: o meu
corpo poderia, ao rolar pelo barranco abaixo, ficar escondido entre a
vegetação, terra e pedregulhos. Se tal acontecesse, jamais seria descoberto
no seu improvisado túmulo e o meu nome não ocuparia as manchetes dos jornais.
Não, eles não podiam roubar-me nem
que fosse um pequeno necrológio no principal matutino da cidade. Precisava
agir rápido e decidido:
— Alto lá! Também quero ser ouvido.
Jorginho empalideceu, soltou um grito
surdo, tombando desmaiado, enquanto os seus amigos, algo admirados por verem
um cadáver falar, se dispunham a ouvir-me.
Sempre tive confiança na minha
faculdade de convencer os adversários, em meio às discussões. Não sei se pela
força da lógica ou se por um dom natural, a verdade é que, em vida, eu vencia
qualquer disputa dependente de argumentação segura e irretorquível.
A morte não extinguira essa
faculdade. E a ela os meus matadores fizeram justiça. Após curto debate, no
qual expus com clareza os meus argumentos, os rapazes ficaram indecisos, sem
encontrar uma saída que atendesse, a contento, às minhas razões e ao programa
da noite, a exigir prosseguimento. Para tornar mais confusa a situação,
sentiam a impossibilidade de dar rumo a um defunto que não perdera nenhum dos
predicados geralmente atribuídos aos vivos.
Se a um deles não ocorresse uma
sugestão, imediatamente aprovada, teríamos permanecido no impasse. Propunha incluir-me
no grupo e, juntos, terminarmos a farra, interrompida com o meu
atropelamento.
Entretanto, outro obstáculo nos
conteve: as moças eram somente três, isto é, em número igual ao de rapazes.
Faltava uma para mim e eu não aceitava fazer parte da turma desacompanhado. O
mesmo rapaz que aconselhara a minha inclusão no grupo encontrou a fórmula
conciliatória, sugerindo que abandonassem o colega desmaiado na estrada. Para
melhorar o meu aspecto, concluiu, bastaria trocar as minhas roupas pelas de
Jorginho, o que me prontifiquei a fazer rapidamente.
Depois de certa relutância em
abandonar o companheiro, concordaram todos (homens e mulheres, estas já
restabelecidas do primitivo desmaio) que ele fora fraco e não soubera
enfrentar com dignidade a situação. Portanto, era pouco razoável que se
perdesse tempo fazendo considerações sentimentais em torno da sua pessoa.
Do que aconteceu em seguida não
guardo recordações muito nítidas. A bebida, que antes da minha morte pouco me
afetava, teve sobre o meu corpo defunto uma ação surpreendente. Pelos meus
olhos entravam estrelas, luzes cujas cores ignorava, triângulos absurdos,
cones e esferas de marfim, rosas negras, cravos em forma de lírios, lírios
transformados em mãos. E a ruiva, que me fora destinada, enlaçando-me o
pescoço com o corpo transmudado em longo braço metálico.
Ao clarear o dia, saí da semiletargia
em que me encontrava. Alguém me perguntava onde eu desejava ficar. Recordo-me
que insisti em descer no cemitério, ao que me responderam ser impossível,
pois àquela hora ele se encontrava fechado. Repeti diversas vezes a palavra
cemitério. (Quem sabe nem chegasse a repeti-la, mas somente movesse os
lábios, procurando ligar as palavras às sensações longínquas do meu delírio
policrômico.)
Por muito tempo se prolongou em mim o
desequilíbrio entre o mundo exterior e os meus olhos, que não se acomodavam
ao colorido das paisagens estendidas na minha frente. Havia ainda o medo que
sentia, desde aquela madrugada, quando constatei que a morte penetrara no meu
corpo.
Não fosse o ceticismo dos homens,
recusando-se aceitar-me vivo ou morto, eu poderia abrigar a ambição de
construir uma nova existência.
Tinha ainda que lutar contra o
desatino que, às vezes, se tornava senhor dos meus atos e obrigava-me a
buscar, ansioso, nos jornais, qualquer notícia que elucidasse o mistério que
cercava o meu falecimento.
Fiz várias tentativas para
estabelecer contato com meus companheiros da noite fatal e o resultado foi desencorajador.
E eles eram a esperança que me restava para provar quão real fora a minha
morte.
No passar dos meses, tornou-se menos
intenso o meu sofrimento e menor a minha frustração ante a dificuldade de
convencer os amigos de que o Zacarias que anda pelas ruas da cidade é o mesmo
artista pirotécnico de outros tempos, com a diferença de que aquele era vivo
e este, um defunto.
Só um pensamento me oprime: que
acontecimentos o destino reservará a um morto se os vivos respiram uma vida
agonizante? E a minha angústia cresce ao sentir, na sua plenitude, que a
minha capacidade de amar, discernir as coisas, é bem superior à dos seres que
por mim passam assustados.
Amanhã o dia poderá nascer claro, o
sol brilhando como nunca brilhou. Nessa hora os homens compreenderão que,
mesmo à margem da vida, ainda vivo, porque a minha existência se transmudou
em cores e o branco já se aproxima da terra para exclusiva ternura dos meus
olhos.
Murilo Rubião
Entendendo o conto:
01 – Com base na leitura e
análise do conto O Pirotécnico Zacarias, classifique as afirmações seguintes
de verdadeiras ou falsas:
a)
(F) O conto é narrado na terceira pessoa; o
narrador é, pois, onisciente e não participa da história.
b)
(V) O narrador tem visão limitada dos fatos que
narra.
c) (F) O narrador detém-se nos caracteres físicos
das personagens, valorizando cabelos, olhos, cor de pele, estatura.
d) (V) Zacarias é personagem densa, esférica, como
perfil psicológico delineado.
e) (F) Em todo o conto, Zacarias não consegue
comunicar-se com os vivos, advindo daí sua angústia principal.
02 – Com base na leitura e
análise do conto O Pirotécnico Zacarias, classifique as afirmações seguintes
de verdadeiras ou falsas:
a)
(F) A relação de Zacarias com os vivos, apesar
dos desajustes iniciais, normalizou-se com o tempo.
b)
(F) As únicas pessoas com quem Zacarias conseguia
comunicar-se eram as moças e os rapazes que o atropelaram.
c)
(F) A vida que Zacarias levava depois da morte
era inferior à de quando estava vivo, pois as percepções ficaram embaçadas.
d)
(F) O autor cria um ambiente utópico em que vivos
e ex-vivos convivem sem discriminação.
e)
(F) Zacarias assistiu ao próprio enterro,
presenciando a despedida de amigos e parentes ao seu cadáver.
03 – No conto O
Pirotécnico Zacarias, Murilo Rubião:
a)
Valoriza o Realismo
Fantástico, criando uma atmosfera em que a vida, depois da morte, só não
segue normal por causa da discriminação dos vivos.
b)
Cria um cenário policrômico,
descrevendo com muitos detalhes o ambiente citadino.
c)
Dá ênfase aos espetáculos em que
Zacarias, quando vivo, exibia suas habilidades com o fogo.
d)
Descreve os horrores por que os mortos
têm que passar quando não conseguem livrar-se do mundo dos vivos.
e)
Mostra que os mortos podem ajudar a
desvendar crimes, desde que os vivos acreditem nisso.
04 – Depois do
atropelamento, o corpo de Zacarias:
a)
Foi levado para o necrotério da
cidade.
b)
Foi entregue à polícia.
c)
Foi jogado em um precipício, à beira
da estrada.
d)
Foi levado direto para o cemitério e,
ali, abandonado.
e)
Por sugestão de um dos
rapazes, passou a fazer parte do grupo.
05 – Depois de morto;
a)
O álcool, antes danoso à saúde de
Zacarias, não surtia mais nenhum efeito.
b)
A percepção sensorial de
Zacarias, incluindo a capacidade de amar, melhorou sensivelmente.
c)
Zacarias voltou a trabalhar em um
circo, fazendo coisas que, quando vivo, eram impossível de realizar.
d)
Zacarias passou a ser visto apenas
pelo grupo de moas e rapazes que o atropelou.
e)
Zacarias voltou para os seus
familiares, embora ninguém acreditasse que aquele fosse realmente Zacarias e,
sim, uma pessoa muito parecida com o finado.
06 – No conto O
Pirotécnico Zacarias, a linguagem de Murilo Rubião:
a)
É prolixa, com excesso de adjetivos e
com descrições cansativas.
b)
É extremamente coloquial, com erros
gramaticais.
c)
É sóbria, concisa, direta,
beirando a gramática culta.
d)
É romântica, com descrições
exageradas.
e)
É técnica, com excesso de termos
científicos.
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