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quinta-feira, 3 de julho de 2025

CRÔNICA: REENCONTRO - FRAGMENTO - DRAUZIO VARELLA - COM GABARITO

 Crônica: Reencontro – Fragmento

              Drauzio Varella

        Numa tarde chuvosa, tocou o telefone na Carceragem do Oito. Um funcionário atendeu e trouxe o recado em voz baixa para o seu Pires, o diretor do pavilhão:

        – Telefone para o seu Chico, é voz de moça.

        Como o regulamento proíbe ligações externas para detentos, o diretor foi ver quem era:

        – Quem quer falar com o seu Chico? Aqui não pode atender telefonema de fora!

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBZzFZrFaAemAga4389mIwQ03FwMLOx689Nk8EMBgeRss9skRNFF-wiwYJ1WG5qyJZ-JFYcvTBaZtAYhXBX-Cya9n5c-eKXoIlH83A05X34pJFdL4j8EMQYaNlQNQwHI8OoxEj-DWMcZsDEYZCHnCz3ytZnm4iCm4UYK1OQ6zvg8rN6matZurKE5fqlNc/s320/istockphoto-1225348239-612x612.jpg


        Do outro lado, ouviu uma voz tímida:

        – Meu senhor, me desculpa, eu tenho vinte anos, uma irmã de dezoito e meu irmão, dezessete. Somos filhos do seu Chico. A última vez que vi meu pai eu tinha cinco anos, e meu irmão era tão pequeno que nem lembra o rosto dele. A gente pensava que ele tinha morrido. Quando eu soube que não, reuni com os irmãos e o pastor da igreja sem minha mãe saber, e decidimos procurar o pai. Foi muito difícil falar aí, mas hoje consegui explicar direitinho para a telefonista, que ficou com dó da gente e permitiu.

        A voz vinha embargada de medo. O chefe mandou chamar seu Chico.

        Seu Chico entrou ressabiado na Carceragem. Deu uma olhada geral; tudo parecia na rotina, os funcionários e alguns presos dedicados ao trabalho burocrático; seu Pires, de cabelos grisalhos e um lápis atrás da orelha, lia um relatório na escrivaninha.

        De frente para a janela, de costas para os outros, seu Chico disse alô e ficou mudo, por muito tempo. De onde estava, seu Pires percebeu as lágrimas nos olhos do prisioneiro.

        Por vários dias o diretor do pavilhão observou o comportamento solitário do outro. Sem entender, os ladrões mantinham respeitosa distância do líder entristecido. Dias depois seu Chico o procurou em tom grave:

        – Seu Pires, quero pedir um favor que faço questão de jamais esquecer.

        Contou o drama daqueles anos todos, a vingança da mulher por causa da morte do irmão, as cartas devolvidas, morto para os filhos, e a conversa com a mais velha.

        – Queria que o senhor me autorizasse a encontrar com eles lá fora, no coreto da Divinéia. Não quero meus filhos dentro de uma cadeia.

        – Assim o senhor me complica. Imagina se os outros 7 mil me pedem a mesma coisa. Em todo caso, como é uma situação especial, depois de tantos anos, vou abrir uma exceção, mas o senhor não pode ficar mais de vinte minutos.

        Na tarde marcada, seu Chico dirigiu-se ao coreto com dois detentos carregando um tapete vermelho, um vaso de flores, dois litros de guaraná, bolachas, pastéis e uma mesinha com toalha xadrez.

        Tudo arrumado no coreto, o ex-marinheiro, com camisa de manga comprida para esconder a tatuagem, parou com os braços cruzados sobre o peito forte e esperou.

        Passaram-se duas horas e as crianças não chegaram. Quando seu Pires decidiu, enfim, recolhê-lo, encontrou-o sentado, cotovelos apoiados nas coxas e a cabeça afundada nas mãos. Os dois homens voltaram ao pavilhão sem trocar palavra.

        Na semana seguinte, no mesmo horário, novamente a telefonista: os filhos de seu Chico aguardavam na portaria. Tantos anos no presídio não impediram que seu Pires se emocionasse. Foi ele mesmo dar a notícia na marcenaria. Encontrou o prisioneiro serrando um banco, a serra cantando de ensurdecer. Desligou-a da tomada.

        – Seu Chico, se arruma para ver seus filhos.

        Quando os olhos incrédulos do detento fitaram os dele, descobriram um homem terno que seu Chico não conhecia. Por sua vez, os do diretor captaram no rosto anguloso do ex-marinheiro o olhar da criança que pegou um balão caído do céu.

        Encontraram-se no coreto adornado às pressas com o tapete vermelho, a mesa, o lanche e o vaso de flores retirados do altar da Nossa Senhora Aparecida, na capela do pavilhão. As duas mocinhas tinham tranças e vestidos compridos; o menino, terno azul, gravata e uma Bíblia. Abraçaram-se e choraram, os quatro, demoradamente. Repetidas vezes.

        Trinta minutos depois, o encarregado da Divinéia aproximou-se para levar seu Chico de volta para o pavilhão. Não teve coragem de interromper o encontro familiar e retornou da escadinha do coreto. O mesmo fez seu Pires, duas horas mais tarde.

        Meses depois do reencontro, numa revista incerta, os carcereiros encontraram no xadrez de seu Chico um arsenal de facas, entre elas uma enorme foice improvisada. A malandragem mais jovem nunca entendeu por que ele não escondia as armas em outro lugar:

        – O velho era sistemático, não adotava o método moderno, tinha que ser do jeito próprio que ele estava acostumado.

        Como punição seu Chico foi transferido para o interior. [...]

Drauzio Varella.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 200-201.

Entendendo a crônica:

01 – Por que o diretor do pavilhão, Seu Pires, hesita em permitir que Seu Chico atenda ao telefonema e encontre seus filhos?

      O regulamento da prisão proíbe ligações externas para detentos, e Seu Pires teme abrir um precedente caso os outros 7 mil presos façam o mesmo pedido.

02 – Qual é a razão para o longo afastamento entre Seu Chico e seus filhos?

      A mulher de Seu Chico se vingou dele por causa da morte do irmão, devolvendo as cartas que ele enviava e fazendo com que os filhos pensassem que ele havia morrido.

03 – Como Seu Chico se prepara para o primeiro encontro com seus filhos após tantos anos?

      Seu Chico prepara um cenário especial no coreto da Divinéia, com um tapete vermelho, um vaso de flores, guaraná, bolachas, pastéis e uma mesinha com toalha xadrez.

04 – O que acontece no primeiro encontro marcado entre Seu Chico e seus filhos?

      Os filhos não aparecem no primeiro encontro marcado, causando grande tristeza e decepção em Seu Chico.

05 – Como Seu Pires reage ao saber que os filhos de Seu Chico estão na portaria na semana seguinte?

      Seu Pires se emociona e vai pessoalmente dar a notícia a Seu Chico na marcenaria, mostrando um lado terno que o detento não conhecia.

06 – Como as filhas e o filho de Seu Chico se vestem para o reencontro com o pai?

      As filhas usam tranças e vestidos compridos, e o filho veste terno azul, gravata e carrega uma Bíblia.

07 – O que é encontrado no xadrez de Seu Chico meses depois do reencontro e qual é a possível explicação para isso?

      Um arsenal de facas, incluindo uma foice improvisada, é encontrado no xadrez de Seu Chico. A explicação dada é que ele era "sistemático" e preferia seu próprio método de esconder as armas, em vez de adotar métodos mais modernos.

 

CRÔNICA: PRIMEIRA CARTA - PAULO FREIRE - COM GABARITO

 Crônica: Primeira carta

               Paulo Freire

        Voltar-me sobre minha infância remota é um ato de curiosidade necessário.

        Quanto mais me volto sobre a infância distante, tanto mais descubro que tenho sempre algo a aprender dela. Dela e da adolescência difícil. É que não faço este retorno como quem se embala sentimentalmente numa saudade piegas ou como quem tenta apresentar a infância e a adolescência pouco fáceis como uma espécie de salvo-conduto revolucionário. Esta seria, de resto, uma pretensão ridícula.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigacWfuYHbF0koV9NluOZGFjrNPBA4UhpEWULJ7wW94UV8tB0ajSqqzh0bm5TYor717kptvIRBpODj5BgTfJTIm8H9LqTSqbrUPNMAAzrYLTxZ0G2hjjNC2BiDQGLjkFH_v_zCw8hokPVUCavUwhPWXKZP3qcXopgyj0818CtIeg0FBvASnZOTsQl5oG4/s320/png-transparent-boy-child-infant-neonate-age-kindergarten-birth-mother.png 


        No meu caso, porém, as dificuldades que enfrentei, com minha família, na infância e na adolescência, forjaram em mim, ao contrário de uma postura acomodada diante do desafio, uma abertura curiosa e esperançosa diante do mundo, jamais me senti inclinado, mesmo quando me era ainda impossível compreender a origem de nossas dificuldades, a pensar que a vida era assim mesma, que o melhor a fazer diante dos obstáculos seria simplesmente aceitá-los como eram. Pelo contrário, em tenra idade, já pensava que o mundo teria de ser mudado. Que havia algo errado no mundo que não podia nem devia continuar. Talvez seja esta uma das positividades da negatividade do contexto real em que minha família se moveu. A de, submetido a certos rigores que outras crianças não sofriam, ter me tornado capaz de, pela comparação entre situações contrastantes, admitir que o mundo tivesse algo errado que precisava de conserto. Positividade que hoje veria em dois momentos significativos:

        * de, experimentando-me na carência, não ter caído no fatalismo;

        * de, nascido numa família de formação cristã, não ter me orientado rio sentido de aceitar a situação como sendo a expressão da vontade de Deus, entendendo, pelo contrário, que havia algo de errado no mundo e que este precisava de reparo.

        A minha posição, desde então, era a de otimismo crítico, isto é, a da esperança que inexiste fora do embate. Talvez venha daquela fase, a da infância remota, o hábito que me acompanha até hoje, o de entregar-me, de vez em quando, a um profundo recolhimento em mim mesmo, quase como se estivesse isolado do resto, das pessoas e das coisas que me cercam. Recolhido em mim mesmo, gosto de pensar, de me encontrar no jogo aparente de perder-me. Quase sempre me recolho assim, em indagações no sítio mais apropriado, meu gabinete de trabalho. Mas faço isso também em outros espaços e tempos.

        Assim, para mim, voltar-me, de vez em quando, sobre a infância remota é um ato de curiosidade necessário. Ao fazê-lo, tomo distância dela, objetivo-a, procurando a razão de ser dos fatos em que me envolvi e suas relações com a realidade social de que participei. Neste sentido é que a continuidade entre o menino de ontem e o homem de hoje se clarifica pelo esforço reflexivo que o homem de hoje exerce no sentido de compreender as formas como o menino de ontem, em suas relações no interior de sua família como na escola ou nas ruas, viveu a sua realidade. Mas, por outro lado, a experiência atribulada do menino de ontem e a atividade educativa, portanto, política, do homem de hoje não poderão ser compreendidas se tomadas como expressões de uma existência isolada, ainda quando não possamos negar a sua dimensão particular. Esta não é, porém, suficiente para explicar a significação mais profunda do meu quefazer. Experimentei-me, enquanto menino tanto quanto enquanto homem, socialmente e na história de uma sociedade dependente, participando, desde cedo, de sua terrível dramaticidade. Nesta, é bom sublinhar desde logo, é que se encontra a razão objetiva que explica a crescente radicalidade de minhas opções. Estariam equivocados, como de resto sempre estão, aquelas ou aqueles que procurassem ver nesta radicalidade, que jamais, porém, se alongou em sectarismo, a expressão traumática de um menino que se tivesse sentido desamado ou desesperadamente só.

        Desta forma, a minha radical rejeição à sociedade de classes, como uma sociedade necessariamente violenta, seria, para tais possíveis analistas, a maneira pela qual se estaria explicitando hoje o "desencontro" afetivo que eu teria vivido na infância.

        Na verdade, porém, não fui um menino desesperadamente só nem desamado. Jamais me senti ameaçado, sequer, pela dúvida em torno da afeição de meus pais entre si como de seu amor por nós, por meus irmãos, por minha irmã e por mim. E terá sido essa segurança o que nos ajudou a enfrentar, razoavelmente, o real problema que nos afligiu durante grande parte de minha infância e adolescência – o da fome. Fome real, concreta, sem data marcada para partir, mesmo que não tão rigorosa e agressiva quanto outras fomes que conhecia. De qualquer maneira, não a fome de quem faz operação de amígdalas ou a de quem faz dieta para ficar elegante. A nossa fome, pelo contrário, foi a que chegava sem pedir licença, a que se instala e se acomoda e vai ficando sem tempo certo para se despedir. Fome que, se não amenizada, como foi a nossa, vai tomando o corpo da gente, fazendo dele, às vezes, uma escultura arestosa, angulosa. Vai afinando as pernas, os braços, os dedos. Vai escavando as órbitas em que os olhos quase se perdem, como era a fome mais dura de muitos companheiros nossos e continua sendo a fome de milhões de brasileiros e brasileiras que dela morrem anualmente.

        Quantas vezes fui vencido por ela sem condições de resistir a sua força, a seus "ardis", enquanto procurava "fazer" os meus deveres escolares. Às vezes, me fazia dormir, debruçado sobre a mesa em que estudava, como se estivesse narcotizado. E quando, reagindo ao sono que me tentava dominar, escancarava os olhos que fixava com dificuldade sobre o texto de história ou de ciências naturais – “lições” de minha escola primária –, as palavras eram como se fossem pedaços de comida.

        Em outras ocasiões, à custa de tremendo esforço, me era possível realmente lê-las, uma a uma, mas nem sempre conseguia entender a significação do texto que elas compunham.

        Muito longe estava eu, naquela época, de participar de uma experiência educativa em que educandos e educadoras, enquanto leitores e leitoras, se soubessem produtores também da inteligência dos textos. Experiência educativa na qual a compreensão dos textos não estivesse depositada neles por seu autor ou autora à espera de que leitores a descobrissem. Entender um texto era sobretudo decorá-lo mecanicamente, e a capacidade de memoralizá-lo era vista como um sinal de inteligência. Quanto mais, então, me sentia incapaz de fazê-lo, tanto mais sofria pelo que me parecia ser a minha rudeza insuperável.

        Foi preciso que vivesse muitos momentos como aqueles, mas, sobretudo, que começasse a comer melhor e mais amiudadamente, a partir de certo tempo, para que percebesse que minha rudeza, afinal, não era tão grande quanto pensava. Ela era, pelo menos, menor do que a fome tanta que eu tinha.

        Anos mais tarde, como diretor da Divisão de Educação de uma instituição privada, no Recife, me seria fácil compreender quão difícil era para as meninas e meninos proletários, submetidos ao rigor de uma fome maior e mais sistemática do que a que eu tivera e sem nenhuma das vantagens de que desfrutara, como criança de classe média, alcançar um razoável índice de aprendizagem.

        Não precisava de consultar estudos científicos que tratassem das relações entre desnutrição e dificuldades de aprendizagem. Tinha um conhecimento de primeira mão, existencial, destas relações.

        Revia-me no perfil raquítico, nos olhos grandes e às vezes tristes, nos braços alongados, nas pernas finas de muitos deles. Neles, revia também alguns de meus companheiros de infância que, se vivos ainda hoje, possivelmente não lerão o livro que surgirá das cartas que lhe escrevo e não saberão que a eles agora me refiro com respeito e saudade. Toinho Morango, Baixa, Dourado, Reginaldo.

        Ao referir-me, porém, à relação entre condições concretas desfavoráveis e dificuldades de aprendizagem, devo deixar clara minha posição em face da questão. Em primeiro lugar, de maneira nenhuma aceito que estas condições sejam capazes de criar em quem as experimenta uma espécie de natureza incompatível com a capacidade de escolarização. O que vem ocorrendo é que, de modo geral, a escola autoritária e elitista que aí está não leva em consideração, na organização curricular e na maneira como trata os conteúdos programáticos, os saberes que vêm se gerando na cotidianidade dramática das classes sociais submetidas e exploradas. Passa-se por muito longe do fato de que as condições difíceis, por mais esmagadoras que sejam, geram nos e nas que as vivem saberes sem os quais não lhes seria possível sobreviver. No fundo, saberes e cultura das classes populares dominadas e que experimentam entre si níveis diferentes de exploração e de consciência da própria exploração. Saberes que, em última análise, são expressões de sua resistência.

        Estou convencido de que as dificuldades referidas diminuiriam se a escola levasse em consideração a cultura dos oprimidos, sua linguagem, sua forma de fazer contas, seu saber fragmentário do mundo de onde afinal transitariam até o saber mais sistematizado, que cabe à escola trabalhar. Obviamente, esta não é a tarefa a ser cumprida pela escola de classe dominante, mas tarefa para ser realizada na escola de classe dominante, entre nós, agora, por educadores e educadoras progressistas, que vivem a coerência entre seu discurso e sua prática.

        Muitas vezes, em minhas visitas constantes às escolas, quando conversava com uns e com outros e não apenas com as professoras, imaginava, de forma bastante realista, o quanto lhes estaria custando aprender suas lições, desafiados pela fome quantitativa e qualitativa que os consumia.

        Numa daquelas visitas, uma professora me falou, preocupada, de um deles. Discretamente, fez com que eu dirigisse minha atenção a uma figurinha miúda, que, num canto da sala, era como se estivesse ausente, distante do que se passava em seu redor. "Parte da manhã", disse ela, "ele leva dormindo. Seria uma violência acordá-lo, não acha? Que faço?"

        Pedrinho, soubemos mais tarde, era o terceiro filho de uma família numerosa. Seu pai, operário numa fábrica local, não ganhava o suficiente para oferecer à família um mínimo de condições materiais. Viviam em promiscuidade num mocambo precário. Pedrinho não apenas quase nada comia, mas também tinha de trabalhar para ajudar a sobrevivência da família. Vendia frutas pelas ruas, fazia mandados, carregava fretes na feira popular de seu bairro.

        A escola era, para ele, em última análise, um parêntese, um espaço-tempo em que repousava de sua canseira diária. Pedrinho não era uma exceção e havia situações piores que a dele. Mais dramáticas ainda.

        Ao olhá-los, ao conversar com eles e com elas, recordava o que também representara para mim estudar com fome. Lembrava-me do tempo que gastava dizendo e redizendo, olhos fechados, cadernos nas mãos: Inglaterra, capital Londres, França, capital Paris. Inglaterra, capital Londres. "Repete, repete que tu aprendes", era a sugestão mais ou menos generalizada no meu tempo de menino. Como aprender, porém, se a única geografia possível era a geografia de minha fome? A geografia dos quintais alheios, das fruteiras – mangueiras, jaqueiras, cajueiros, pitangueiras –, geografia que Temístocles – meu irmão imediatamente mais velho do que eu -e eu sabíamos, aquela sim, de cor, palmo a palmo. Conhecíamos os seus segredos e na memória tínhamos os caminhos mais fáceis que nos levavam às fruteiras melhores.

        Conhecíamos os lugares mais seguros, onde, cuidadosamente, entre folhas secas, acolhedoras, mornas, escondíamos as bananas que tirávamos ainda "em vez" e que assim "agasalhadas" amadureciam "resguardadas" de outras fomes, como, sobretudo, do "direito de propriedade" dos donos dos quintais.

        Um desses donos de quintais me flagrou um dia, manhã cedo, tentando furtar um lindo mamão em seu quintal. Apareceu inesperadamente em frente a mim, sem que eu tivesse tido a oportunidade de fugir. Devo ter empalidecido. A surpresa me desconcertou. Não sabia o que fazer de minhas mãos trêmulas, das quais mecanicamente tombou o mamão. Não sabia o que fazer do corpo todo – se ficava empertigado, se ficava relaxado, em face da figura sisuda e rígida, toda ela expressão de uma dura censura a meu ato.

        Apanhando a fruta, tão necessária a mim naquele instante, de forma significativamente possessiva, o homem me fez um sermão moralista que não tinha nada que ver com minha fome.

        Sem dizer palavra – sim, não, desculpe ou até logo – deixei o quintal e fui andando sumido, diminuído, achatado, para casa, metido na mais fundo de mim mesmo. O que eu queria naquele instante era um lugar em que nem eu mesmo pudesse me ver.

        Muitos anos depois, em circunstância distinta, experimentei novamente a estranha sensação de não saber o que fazer das mãos, do corpo todo: "Capitão, mais um passarinho pra gaiola", disse, debochadamente, no "corpo da guarda" de um quartel do Exército no Recife, depois do golpe de estado de 1° de abril de 1964, o polícia que me trouxera preso de casa. Os dois, o policial e o capitão, com riso desdenhoso e irônico, me olhavam a mim; em pé, frente a eles, sem saber de novo o que fazer de minhas mãos, de meu corpo todo.

        Uma coisa eu sabia – naquela vez não havia furtado nenhum mamão.

        Já não me lembro do que me terão "ensinado" na escola, no dia daquela manhã em que fui flagrado com o mamão do vizinho na mão. O que sei é que, se foi difícil resolver, na escola, certos problemas de aritmética, nenhuma dificuldade tive em aprender a calcular o tempo necessário para que as bananas amadurecessem em função do momento de maturação em que se encontravam quando as "agasalhávamos" em nossos secretos esconderijos.

        A nossa geografia imediata era, sem dúvida, para nós, não só uma geografia demasiado concreta, se posso falar assim, mas tinha um sentido especial. Nela se interpenetravam dois mundos, que vivíamos intensamente. O mundo do brinquedo em que, meninos, jogávamos futebol, nadávamos em rio, empinávamos papagaio e o mundo em que, enquanto meninos, éramos, porém, homens antecipados, às voltas com a nossa fome e a fome dos nossos.

        Tivemos companheiros em ambos esses mundos, entre os quais, porém, alguns jamais souberam, existencialmente, o que significava passar todo um dia a um pedaço de pão, a uma xícara de café, a um pouco de feijão com arroz, ou buscar, pelos quintais alheios, uma fruta disponível. E mesmo quando, entre eles, alguns participavam conosco de arremetidas a quintais alheios, o faziam por diferentes razões: por solidariedade ou pelo gosto da aventura. Em nosso caso, havia algo mais vital – a fome a amainar. Isto não significava, todavia, que não houvesse em nós também, ao lado da necessidade que nos movia, o prazer da aventura. No fundo, vivíamos, como já salientei, uma radical ambiguidade: éramos meninos antecipados em gente grande. A nossa meninice ficava espremida entre o brinquedo e o "trabalho", entre a liberdade e a necessidade.

        Aos onze anos eu tinha ciência das precárias condições financeiras da família mas não tinha como acudi-la através de um trabalho qualquer. Assim como meu pai não podia prescindir da gravata, que, mais do que pura expressão da moda masculina, era representação de classe, não podia permitir que eu, por exemplo, trabalhasse na feira semanal, carregando pacotes ou fosse serviçal de alguma casa.

        Nas sociedades altamente desenvolvidas é que membros da classe média podem, sobretudo em momentos difíceis, realizar tarefas consideradas subalternas sem que isto signifique ameaça ou real perda de status.

Paulo Freire.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 158-162.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o propósito do autor ao revisitar sua infância remota na crônica?

      O autor revisita sua infância remota como um ato de curiosidade necessário, buscando aprender com as dificuldades enfrentadas e compreender como elas forjaram sua postura curiosa e esperançosa diante do mundo, além de entender a origem de suas opções radicais e sua relação com a realidade social.

02 – Como as dificuldades da infância e adolescência moldaram a visão de mundo do autor?

      As dificuldades, em vez de levarem a uma postura acomodada, forjaram no autor uma abertura curiosa e esperançosa diante do mundo. Ele jamais aceitou que a vida "era assim mesmo" e, desde cedo, pensou que o mundo "teria de ser mudado", desenvolvendo um otimismo crítico e uma esperança que só existe no embate.

03 – O que o autor destaca como "positividades da negatividade" de seu contexto familiar e social?

      Ele destaca duas positividades: primeiro, não ter caído no fatalismo apesar de experimentar a carência; segundo, apesar de uma formação cristã, não ter aceitado a situação como vontade de Deus, mas sim ter entendido que havia algo errado no mundo que precisava de reparo.

04 – Qual foi o "problema real" que afligiu a família do autor durante grande parte de sua infância e adolescência?

      O problema real que afligiu a família do autor foi a fome, descrita como "real, concreta, sem data marcada para partir", que se instalava e permanecia, afetando fisicamente as pessoas.

05 – Como a fome afetava o desempenho escolar do jovem Paulo Freire?

      A fome o vencia "sem condições de resistir", fazendo-o dormir debruçado sobre os deveres escolares como se estivesse narcotizado. Mesmo quando conseguia ler, as palavras eram como "pedaços de comida", e ele tinha dificuldades em entender o significado dos textos, sentindo-se "rude" por não conseguir decorar mecanicamente.

06 – Qual é a principal crítica de Paulo Freire à escola "autoritária e elitista" em relação às crianças das classes populares?

      Sua principal crítica é que essa escola não leva em consideração os saberes que se geram na cotidianidade dramática das classes sociais submetidas e exploradas. Ela desconsidera a cultura, a linguagem e a forma de pensar dessas crianças, que são essenciais para sua sobrevivência e que deveriam ser a base para transitar para o saber mais sistematizado.

07 – O que representa o episódio em que o autor foi flagrado tentando furtar um mamão e como ele o compara a uma experiência posterior?

      O episódio do mamão representa a humilhação e a sensação de impotência diante da fome. O sermão moralista do dono do quintal, que ignorava sua real necessidade, o fez sentir-se "sumido, diminuído, achatado". Ele compara essa sensação àquela vivida anos depois, ao ser preso após o golpe de 1964, onde novamente se viu sem saber o que fazer do corpo, mas com a consciência de que, desta vez, "não havia furtado nenhum mamão", ou seja, não havia uma "justificativa" tão visceral para sua situação.

 

CRÔNICA: LIMONADA - MIKHAÍL M. ZÓCHTCHENKO - COM GABARITO

 Crônica: Limonada

              Mikhaíl M. Zóchtchenko

        Eu, é claro, sou um homem que não bebe. Se uma vez ou outra tomo alguma coisa, é pouco – assim, por formalidade, ou para não quebrar uma boa companhia.

        Mais que duas garrafas de uma vez, já nem dá para eu consumir. A saúde não permite. Certa vez, lembro-me, no dia do meu antigo santo, cheguei a beber um quarto de garrafão. Mas isso foi nos meus anos de juventude e vigor, quando o coração palpitava furioso no peito e na cabeça pululava toda sorte de ideias.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhSBh12TN2abwOZjNFC83uk8I9KsQocGp_nGIrpNbZG6StBYQsUWvRF9Ouatz41kLNbVUtkaxXl2rqjlvhIw4A3u7rNPgAAOwpk3kxOKNPHBzLOJoKlZ3CoKPWgAC2LeYbOIvsP3MejpHkokAcxdk08TAfHTHvCy-2ZcQElCeY4uWBxbt1XtsuAPiwwylU/s1600/download.jpg


        Mas agora estou envelhecendo.

        Um prático veterinário conhecido meu, o camarada Ptítsin, me examinou outro dia e até ficou assustado, sabe. Estremeceu.

        – O senhor, disse ele, está com uma "depreciação" total. Não dá para saber onde se encontra o fígado, onde está a bexiga, nada. O senhor está muito desgastado.

        Fiquei com vontade de bater nesse prático, mas depois esfriei.

        "Me deixa primeiro visitar um bom médico, pensei, e me certificar bem das coisas."

        O médico não encontrou "depreciação" alguma.

        – Os seus órgãos se encontram em estado bastante razoável. E a sua bexiga, disse ele, está em ordem e não vaza. Quanto ao coração, está ótimo, está até mais largo que o necessário. Mas, o senhor tem que parar de beber; senão, pode acontecer que lhe sobrevenha a morte, simplesmente.

        Eu, é claro, não tenho vontade de morrer. Eu gosto de viver. Sou um homem ainda jovem. No começo do NEP eu só completei 43 anos. Pode-se dizer que estou em pleno florescimento do vigor e da saúde. E o coração no meu peito é largo. E a bexiga, é importante, não está vazando. Com uma bexiga dessa, é só viver e aproveitar. "Preciso, pensei comigo, realmente largar de beber". Resolvi e larguei.

        Não bebo e não bebo. Não bebo uma hora, não bebo duas. Às cinco horas da tarde, lá fui eu, é claro, almoçar no refeitório.

        Tomei uma sopa. Comecei a comer uma carne cozida, e aí me deu vontade de beber. "Em lugar das bebidas fortes, pensei, vou pedir alguma coisa mais suave – água mineral ou limonada." Chamo o rapaz.

        – Ei, você aí, digo, você que me serviu a comida. Me traga uma limonada, cara de bolacha.

        Trouxeram-me a limonada numa bandeja elegante, numa jarra. Encho o copinho.

        Bebo deste copinho, e sinto: parece vodca. Encho de novo. Palavra que é vodca! Que diabo é isto? Acabo de me servir do resto – é vodca da mais legítima.

        – Traga mais, grito para ele. "Esta aí, penso, veio a mim."

        Ele traz mais. Experimentei outra vez. Não ficou dúvida alguma: é vodca da mais natural.

        Depois, quando paguei a conta, acabei fazendo uma observação:

        – Eu pedi limonada, e você o que foi que me trouxe, ó seu cara de bolacha?

        Ele responde:

        – Isto aqui nós sempre chamamos de limonada. É uma palavra perfeitamente legal. Ainda dos tempos antigos... Quanto à limonada natural, desculpe, nós não temos: não há consumidores.

        – Traga aqui, mais uma, a última.

        E, assim, não deixei a bebida. Mas tive uma vontade sincera. Só que as circunstâncias não permitiram. Como se diz: a vida dita as suas próprias leis. A gente tem de se submeter.

              Mikhaíl M. Zóchtchenko.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 102-103.

Entendendo a crônica:

01 – Como o narrador se descreve em relação ao consumo de bebidas alcoólicas no início da crônica?

      O narrador se descreve como um homem que "não bebe", ou que, se o faz, é "pouco – assim, por formalidade, ou para não quebrar uma boa companhia", e que "mais que duas garrafas de uma vez, já nem dá para eu consumir".

02 – Qual foi o diagnóstico do prático veterinário Ptítsin sobre a saúde do narrador, e como ele reagiu a isso?

      O prático veterinário Ptítsin diagnosticou que o narrador estava com uma "depreciação total", sem conseguir distinguir órgãos como fígado e bexiga, e disse que ele estava "muito desgastado". O narrador, a princípio, sentiu vontade de bater no prático, mas depois resolveu procurar um médico para se certificar.

03 – O que o médico de verdade disse sobre a saúde do narrador e qual foi sua principal recomendação?

      O médico real tranquilizou o narrador, afirmando que seus órgãos estavam "em estado bastante razoável", que sua bexiga estava em ordem e não vazava, e que o coração estava ótimo, "até mais largo que o necessário". A principal recomendação do médico foi que ele parasse de beber, sob o risco de "sobrevenha a morte, simplesmente".

04 – Qual é a decisão do narrador após a consulta médica?

      Após a consulta médica e as boas notícias sobre sua saúde (com exceção da necessidade de parar de beber), o narrador decide sinceramente largar a bebida.

05 – O que o narrador pede para beber no refeitório, e o que ele realmente recebe?

      No refeitório, o narrador pede uma limonada para acompanhar sua refeição, mas o que ele realmente recebe (e bebe) é vodca da mais legítima.

06 – Como o garçom justifica o fato de ter servido vodca em vez de limonada?

      O garçom justifica que eles "sempre chamamos de limonada" o que foi servido, alegando ser uma "palavra perfeitamente legal" dos tempos antigos. Ele acrescenta que não têm limonada natural porque "não há consumidores".

07 – Apesar de sua intenção de parar de beber, o que o final da crônica revela sobre a atitude do narrador?

      O final da crônica revela a ironia de que, apesar de sua "vontade sincera" de largar a bebida, ele acaba consumindo vodca sem querer, e até pede mais. Sua atitude final é de conformidade, afirmando que "não deixei a bebida" porque "as circunstâncias não permitiram", e que "a vida dita as suas próprias leis. A gente tem de se submeter."

 

CONTO: A HORA DA ONÇA BEBER ÁGUA - THIAGO DE MELLO - COM GABARITO

 Conto: A hora da onça beber água

           Thiago de Mello

        A onça que se cuide. É na hora da sede que pode chegar sua vez. Porque o caçador escovado não conhece apenas o lugar onde ela gosta de beber água. Sabe principalmente que onça é bicho de hábitos desassombrados e de metabolismo admiravelmente regular: pra cada coisa ela tem seu instinto certo. Não chega à perfeição do Emanuel Kant, raro animal alemão, que saía de casa todos os dias, sempre à mesma hora e com tamanha pontualidade, que, ao passar a pé, a caminho da universidade, pela porta do relojoeiro da cidade, prontamente este conferia o relógio: era as nove em ponto da manhã. Não. Onça não precisa de relógio, e não me consta, embora não seja de todo inverossímil, que ela, lá nos seus silêncios de olhos imóveis, se dedique à crítica da razão pura. O fato é que o bom mateiro sabe que a onça espera a primeira claridade da manhã, aquele instante em que as estrelas se despedem dos pássaros noturnos, para então se levantar e sair, com sua macia solenidade felina, narinas crescidas farejando o vento, no rumo do riacho de água fresquinha. Rente à beira, ela pára, mas não vai bebendo logo, não. Primeiro ela bate a água de leve com a pata. Dizem alguns que é para sentir a temperatura da água; eu concordo é com a minha gente da floresta, que acha que ela quer ver é se tem poraquê, o peixe-elétrico, cuja vibração ela pressente na pele, ou se tem piranha fervilhando ali por perto (a onça não é besta: ela sabe que em rio que tem piranha até jacaré nada de costas). Aí, então, sim, ela bebe sua água do dia. Pois é bem nesse momento que lhe chega o balaço calibre 44, rifle de papo amarelo. É um tiro só, que o caboclo não falha na mira, feita sem afobação, lá do alto da forquilha da árvore, onde ele varou a noite de tocaia.


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        Não é sempre, porém, que a hora de beber água traz à onça o último gole de vida. Um ditado já avisa que um dia é da caça, outro é do caçador. E é tolo quem se esquece de que, quando mais se tem precisão, mais o tiro sai pela culatra. E vezes há em que o tiro nem chega a sair. Como aconteceu com o Altamirano lá na boca do igarapé do Pucu. Vou contar como foi.

        Mas antes, faço questão de esclarecer que o Altamirano não era um desses que matam onça só pela cobiça do couro, que vale lá fora os olhos da cara. Não. O caso do Altamirano, uma flor de pessoa, a quem conheci nos anos 50, lá na Costa do Varre-Vento, foi um caso de vingança, que pode não ser um sentimento dos mais nobres, mas adianto que o caboclo teve os seus poderosos motivos. Chego mesmo, hoje, com o tempo bem andado, a achar que foi uma questão de amor.

        Altamirano tinha uma novilha branquinha, chamada Princesa, que era o xodó dele. Os dois se queriam tanto, que ele chegava de manhãzinha na cerca do curral e meigamente a chamava pelo nome:

        -- Prin-ce-sa!

        Pois não é que a vaquinha (eu vi, ninguém me contou) reconhecia o amigo? Lá de longe, ela lhe respondia com um mugido demorado de gosto que parecia uma canção:

        -- Hummmmm, Hummmmm...

        Pois sucedeu que um dia a Princesa amanheceu toda estraçalhada, o quarto dianteiro já arrancado, Altamirano não precisou adivinhar; mal olhou, ficou logo sabendo. Além do mais, lá estavam, na terra molhada de sereno, as enormes marcas das patas da onça: era uma das baitas. Diante dos restos da sua novilhinha, o caboclo se jurou: hoje eu dou fim nessa danada.

        Mal anoiteceu, saiu com sua espingarda e foi esperar a fera. Abrigou-se num vão da sacopema formada pelas raízes altas de uma mungubeira, e ali ficou de atalaia. Ah, mas ele estava possuído pela ira, e a ira é sentimento que pode privar o homem dos sentidos e da inteligência. Pois não foi o que o Altamirano se descuidou do vento? Escolheu um lugar entre a onça e o vento, vento que levou para o faro agudíssimo da fera o cheiro do Altamirano.

        Leitor, queres saber de uma coisa? Eu vou é encurtar a história, porque ela termina triste. A onça veio por detrás, matou o Altamirano e depois foi beber sua água.

        Na vida, por via das dúvidas, a gente precisa sempre levar em conta o jeito do vento, senão o vento, o vento que é tão bom, pode se transformar, de repente, num grande amigo da onça.

Thiago de Mello.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 42-43.

Entendendo o conto:

01 – Qual o principal objetivo do caçador "escovado" ao observar os hábitos da onça?

      O principal objetivo do caçador é aproveitar o momento em que a onça está mais vulnerável, ou seja, na hora em que ela vai beber água, para abatê-la com um tiro certeiro. Ele se baseia nos hábitos regulares do animal para prever seu comportamento.

02 – Que precauções a onça toma antes de beber água, e qual a crença popular sobre isso?

      Antes de beber água, a onça bate de leve na superfície com a pata. Alguns dizem que é para sentir a temperatura, mas a crença popular da floresta é que ela faz isso para verificar a presença de peixe-elétrico (poraquê) ou piranhas por perto, que poderiam representam um perigo para ela.

03 – Por que o caso do Altamirano é diferente dos caçadores comuns de onça?

      O conto esclarece que Altamirano não caçava onças pela cobiça do couro. Seu caso foi motivado por vingança e, posteriormente, interpretado como uma questão de amor, devido à morte de sua novilha Princesa, a quem ele tinha grande afeto.

04 – Quem era Princesa e qual a relação dela com Altamirano?

      Princesa era uma novilha branquinha, o grande xodó de Altamirano. Eles tinham uma relação de muito carinho e reconhecimento mútuo, com Altamirano a chamando e a novilha respondendo com um mugido.

05 – Qual foi o erro fatal de Altamirano ao armar a tocaia para a onça?

      O erro fatal de Altamirano foi se descuidar do vento. Ele escolheu um local onde o vento levava seu cheiro diretamente para a onça, que, com seu faro agudíssimo, conseguiu detectá-lo.

06 – Que ditado popular é mencionado no conto para ilustrar a imprevisibilidade da caça?

      O ditado popular mencionado é: "um dia é da caça, outro é do caçador". Isso ressalta que, apesar das estratégias, o resultado de uma caçada pode variar, e nem sempre o caçador sai vitorioso.

07 – Qual a principal lição ou moral que o narrador busca transmitir ao final do conto?

      A principal lição é a importância de se considerar os fatores externos, como o vento, em qualquer situação da vida. O narrador enfatiza que o que pode parecer inofensivo (o vento) pode se tornar um "grande amigo da onça" se não for levado em conta, levando a desfechos tristes e inesperados.

 

CONTO: LEVAR A VIDA NA FLAUTA - THIAGO MELLO - COM GABARITO

 Conto: Levar a vida na flauta

           Thiago Mello

        Acho uma grande injustiça dizer mal do meu amigo Belarmino, só porque ele leva a vida na flauta. Há quem o diga um pândego, senão um irresponsável. Nada disso. Belarmino não ama a folga, não vive de brisa e pega no batente. Compreendam o meu amigo; ele é simplesmente um homem de alma leve, para quem só o fato de estar vivo já é uma enorme graça. Nasceu com vocação da felicidade. Prefere enxergar sempre o lado bom das coisas, e principalmente o das pessoas. Das pessoas em geral, mas em particular daquelas com quem ele vive, cujos defeitos ele vê, mas faz de conta que não vê e, por puro instinto, sem qualquer cálculo, deles sabe se cuidar. Em compensação, enaltece encantado as virtudes dos amigos, porque amizade é para ele a fina flor da vida. Encontra prazer no lance mais trivial de cada dia: o passarinho cantando, a moça que passa, o cheiro denso do mar, o bife enrolado com farofa de ovo, um chorinho da velha guarda ou uma canção do Roberto Carlos.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiaIzw4sRdyZDxophKfM2O-Mqs1xWLNR64MFIXCjdqZKwYvZy8rbckgMk9HXi1DiDKziX8_XjSJgrS0pLDFkcrf-VNGZeHnOVQFRhVxW5-Zj2qEXXdk6YFkcVIqdjD85ZBLfrhKXI79fUpwsK7OvcPFFgY3e5Ep1HZaBh5UcT-_Z4Tn2Ue3g6euU7ODAhs/s1600/image-4.png


        Não estou dizendo que para ele tudo são flores e que a vida sempre lhe vai às mil maravilhas. Muito pelo contrário. Como todo mundo, de vez em quando ele sente o gosto amargo da vida, conhece contingências ásperas, o dinheirinho mingua, doença na família, o seu time perde, o carro deu o prego. Mas ele jamais dá com o rabo na cerca. A diferença é que ele possui um misterioso mecanismo, localizado suponho que no cerebelo e não-acionado pela vontade consciente, que não permite que as contrariedades e os desagrados jamais o apoquentem, além de determinado limite. Por isso é que o Belarmino nunca perde o aprumo, a serenidade nem o riso.

        Não, não vive rindo para as paredes. Sorri até mais do que ri, só que o seu riso transmite confiança e é sinal de uma indisfarçável alegria de viver. Curioso, não é um melódico, não tem a virtude musical da risada do Newton Freitas, a quem Rubem Braga chamou de Flauta da Noite. É a brandura do seu olhar que lembra a suavidade de certos fraseios da flauta conversando com a harpa, no concerto de Mozart.

        É possível que a leveza da vida de Belarmino lhe venha um pouco, ou mais do que um pouco, da mulher que ele tem: além de bonita e bondosa, vive para lhe fazer as vontades, que ele nem precisa manifestar, ela adivinha. Mas ninguém calcule que ele é desses para quem tudo está bom, do tanto faz como tanto fez. Tem opinião própria, reclama, discorda, mas sempre em termos, de modos amáveis.

        E, como todo bom filho de Deus, Belarmino também sofre neste mundo, mas sem permitir que a dor ultrapasse os limites da sua filosofia – “Deus dá o frio conforme o cobertor" – que aliás não é nem dele nem minha, mas do Adoniran Barbosa.

        Estive com meu amigo faz pouco tempo. Soube que ele acabara de perder um filho, logo o caçula; fui visitá-lo. Recebeu delicado o meu abraço comovido, e sabem o que ele fez? Me convidou para uma partida de xadrez. Jogava com os cotovelos na mesa, as mãos sustentando o rosto enfiado no tabuleiro, e assoviando baixinho. Já com boa hora da partida, eu aguardava de olhar fixo o lance do seu cavalo, quando vi uma lágrima grossa cair bem em cima da coroa do rei. Condoído, quis lhe dar alguma palavra, mas ele falou antes de mim:

        -- Está aí o teu xeque-mate.

        Meu amigo é assim. Pelo requinte com que ele assovia um choro de Pixinguinha, desconfio que o nosso Belarmino poderia perfeitamente ganhar a vida na flauta.

Thiago de Mello.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 44-45.

Entendendo o conto:

01 – Como o narrador descreve a personalidade de Belarmino, contestando as opiniões de terceiros?

      O narrador defende Belarmino, afirmando que ele não é um pândego ou irresponsável, mas sim um homem de alma leve com vocação para a felicidade. Ele trabalha, não vive de folga, e possui uma capacidade inata de enxergar o lado bom das coisas e das pessoas.

02 – De que forma Belarmino lida com os defeitos das pessoas ao seu redor?

      Belarmino vê os defeitos, mas faz de conta que não vê. Ele se cuida deles por instinto, sem cálculo, e, em vez disso, enaltece as virtudes dos amigos, pois para ele a amizade é a "fina flor da vida".

03 – O que proporciona prazer a Belarmino no cotidiano?

      Belarmino encontra prazer em lances triviais do dia a dia, como o canto de um passarinho, a moça que passa, o cheiro do mar, um bife enrolado com farofa de ovo, um chorinho da velha guarda ou uma canção de Roberto Carlos.

04 – Qual o "misterioso mecanismo" que impede Belarmino de ser totalmente abatido pelas adversidades?

      Belarmino possui um misterioso mecanismo, localizado no cerebelo e não acionado pela vontade consciente, que não permite que as contrariedades e desagrados o apoquentem além de um certo limite. Isso o faz nunca perder o aprumo, a serenidade nem o riso.

05 – Qual a influência da esposa de Belarmino em sua leveza de vida?

      A esposa de Belarmino, além de bonita e bondosa, vive para lhe fazer as vontades, adivinhando-as sem que ele precise manifestá-las. O narrador sugere que essa relação contribui "mais do que um pouco" para a leveza da vida de Belarmino.

06 – Que filosofia Belarmino adota para lidar com a dor e o sofrimento?

      Belarmino adota a filosofia do Adoniran Barbosa: "Deus dá o frio conforme o cobertor". Essa crença o ajuda a não permitir que a dor ultrapasse os limites de sua resiliência.

07 – Qual a cena final do conto que demonstra a capacidade de Belarmino de "levar a vida na flauta" mesmo em meio à dor?

      Ao perder seu filho caçula, Belarmino recebe o narrador com delicadeza e o convida para uma partida de xadrez. Durante o jogo, ele assovia baixinho, e embora uma lágrima caia em seu rei, ele a disfarça prontamente, anunciando o xeque-mate. Essa atitude final sublinha sua capacidade de lidar com a dor sem perder a compostura e a alegria de viver.

 

ARTIGO DE OPINIÃO: MINHA HISTÓRIA COMO PROFESSORA - ROSA MARIA MONSANTO GLÓRIA - COM GABARITO

 Artigo de opinião: Minha história como professora

                Rosa Maria Monsanto Glória

        A todos os professores deste enorme país, por tudo que representam para os seus alunos, especialmente aqueles que conseguem perceber a relevância do seu papel. A todos que de um modo ou de outro contribuíram para que a cada dia eu me tornasse mais o que sou hoje: PROFESSORA

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj5gKYgUkpEU6kPcsEbj_pTgknIdFNJPA6k13_V1HOJzzNLi2Q6xqVPXUF3FsGlAxmtdSXDUP41Mo_7G05xVxknmjZEXjQmT4ogAe8wlElJh7Xtj5hq1v9ahDq2zLYCkzvlrnoa7xXhbH5u-X8LLej2YH5C6XkHoB3RlnK2gzgJjdmnXOLw0eMUT_TfWpg/s320/professora-lousa-quadro-negro.jpg


        É engraçado como a escola sempre esteve muito presente na minha vida. Parando agora para refletir melhor, já nem sei se ela não tem sido minha própria vida. Bem, nem quero me aprofundar nisso, para não correr o risco de fazer com que pensem (ou que os que me conhecem, confirmem) que eu seja maluca...

        Pra começo de conversa, vou contar como começou esta obsessão, penso, como para a maioria das crianças pequenas e sem muitos recursos financeiros (para não dizer pobres) da minha geração.

        As escolas de educação infantil eram "artigo de luxo". As públicas eram poucas e muito concorridas e as particulares eram para os ricos ou para os filhos de mães que trabalhavam fora, coisa que, pelo menos perto de onde eu morava, não era muito comum. Lembro-me de que na rua onde eu morava nenhuma mãe trabalhava fora. Portanto, como eu não atendia a nenhum desses critérios, nem era rica, nem minha mãe trabalhava fora, não fui para o "Jardim" – era assim que se dizia na época. Porém, vocês nem podem imaginar como eu sonhava em ir para a escola, na verdade eu queria mesmo era ir para o "Grupo" – como se chamavam as escolas de Ensino Fundamental –, as escolas de verdade, onde a gente aprendia a ler e a escrever.

        Na rua onde morava e moro até hoje, havia meninas mais velhas que eu, que já iam para a escola de uniforme e "mala", enquanto eu, criancinha, como elas diziam, ficava em casa sonhando com o dia em que pudesse ir também.

        Tenho a nítida lembrança do dia em que minha mãe foi fazer a matrícula no 1° ano e começou então a providenciar as coisas para que eu fosse para a escola. Ela mesma costurou minha saia com tecido xadrezinho de preto e branco com uma prega na frente e minhas camisas branquinhas com gola e bolso com o distintivo do Grupo. Também havia os sapatos tipo colegial preto e as meias brancas até os joelhos. Mas o que mais me fascinou, o que mais me encantou foi a mala preta que ganhei do meu avô. Ela era maravilhosa, tinha um cheirinho bom de couro, dentro dela cabia um mundo de coisas: os cadernos novos, o estojo, os livros que com certeza a professora pediria para comprar, enfim, tudo que fosse preciso para uma menina que queria muito ir para a escola.

        Chegou o grande dia, nem dormi direito, tamanha era a minha ansiedade. Quando deu a hora de ir para a escola, tenho certeza de que se não fosse pelo fato de minha mãe me levar pela mão, o que as pessoas veriam pela rua seria uma meninazinha de laço na cabeça – a única de uniforme no primeiro dia de aula – flutuando até chegar à porta da escola, sendo ancorada por uma grande mala preta, levando ali todos os seus sonhos.

        A vida seguiu em frente, eu adorava a escola, as professoras, os colegas de classe. Ia para lá num período e no outro brincava de escola e de outras coisas também. Durante todo o primário não tive nenhuma falta, ia todos os dias, chovesse ou fizesse sol. Não suportava a ideia de ter de faltar por qualquer que fosse o motivo, nem mesmo quando nasceu minha irmãzinha e era emenda de feriado. Quando chegavam as férias, que naquele tempo eram muito mais longas, principalmente se a gente fechasse as notas, eu ficava eufórica nos primeiros dias, até mesmo meio exibida, pois sempre fechava as notas com médias altas e era muito elogiada por isso – porém depois de uma ou duas semanas o que eu mais queria era que elas acabassem. Morria de saudades de tudo, até mesmo da merendeira que era muito ranzinza e brigava se a gente deixasse uma gotinha de sopa no prato... Da professora, então, nem se fale! E para passar o tempo eu engraxava minha mala e deixava tudo arrumado lá dentro, tornando a fazer isso muitas vezes durante as férias. Agora, adulta, penso que a escola cumpria, para mim e para as outras crianças, um papel extremamente importante: ela era o principal espaço de convivência social que tínhamos; nós de fato frequentávamos a escola, alguns de nós frequentavam a igreja, brincávamos juntos e nada mais, pelo menos para mim era assim. Não tinha shopping, festinhas, balé, natação, judô, inglês...Tinha a escola.

        Cresci mais e ela continuou sendo minha fiel companheira, fazia parte da fanfarra, do grupo de teatro, do coral, ia às aulas de educação física no período oposto ao da aula regular. Se tinha gincana, lá estava eu. Arrecadar prendas para a festa junina era uma farra. Dos desfiles cívicos, eu participava também. No campeonato de handebol entre as escolas do bairro, é claro que eu ia, mas só para torcer, pois era péssima atleta.

        Já não levava minha malinha preta, afinal no ginásio não ficava bem, o que os meninos iriam pensar?! Mas os sonhos continuavam comigo e a escola ainda fazia parte deles. Estava definido: seria professora.

        Fui para o curso de magistério, numa das escolas mais concorridas da minha cidade, depois de ter sofrido a espera da segunda chamada do exame "vestibulinho". Estava radiante e orgulhosa de mim mesma, afinal não era nada fácil entrar para aquela escola (pública) – mesmo que tivesse conseguido a vaga na segunda lista, ainda assim era motivo de glória. Fui para o primeiro dia de aula na escola nova com o coração aos pulos, como quando tinha sete anos, ia de uniforme e minha malinha agora se transformara numa bolsa esportiva – Tiger –, como era moda na época, novamente presente do meu avô. Na "mala", caderno universitário, estojinho, carteira com alguns trocados, passe escolar e a certeza de que seguia pelo caminho certo, seria professora, a melhor que pudesse ser.

        Os quatro anos que passei naquela escola foram "os melhores da minha vida", pelo menos é o que eu pensava na época. Tinha aulas pela manhã, e quase todas as tardes ficava por lá também, um dia era educação física, no outro, estágio, nos outros eram trabalhos na biblioteca (a mais amada que eu já frequentei) ou na sala de estágio, outro espaço maravilhoso da escola que chegava a causar uma pontinha de inveja aos outros alunos dos outros cursos, afinal só as professoras e as "meninas do magistério" tinham uma sala para trabalhos e reuniões. Ali vivi muitas coisas importantes da minha vida, conheci muitas pessoas, tive professores que me fizeram ver a vida de outra forma e acreditar ainda mais nesta profissão, fiz amizades duradouras, o primeiro namorado, ri, chorei, cantei, dancei, amei, vivi... Estar ali naquela escola, utilizar todos aqueles espaços, participar de tudo que me fosse possível, viver intensamente aquele lugar era tudo que eu sempre sonhei, era a escola que cabia na minha malinha de sonhos.

        O curso acabou: estava formada, era professora. Na cabeça o sonho realizado e a certeza de continuar vivendo a escola todos os dias. Nas mãos, não mais uma malinha, mas uma sacola cheia de materiais e livros que certamente seriam úteis no meu trabalho com os meus alunos. Meu Deus, como era lindo me ouvir dizer: meus alunos!

        Começou então outra etapa da minha vida. Agora era adulta, professora formada, como diziam meus pais, mas como deixar de ser aluna? Não podia, isso seria insuportável. Então lecionava durante o dia e fazia pedagogia à noite – perfeito, era professora, mas era também aluna.

        Com a primeira escola, vieram muitas alegrias, mas também muitas decepções. Lutei muito contra o desânimo, a acomodação e a hostilidade dos que pensavam que escola era lugar apenas de se cumprir horário e programa de ensino, que só mesmo na cabecinha de uma recém-formada caberia a ideia que "aqueles alunos" teriam jeito. Como podem imaginar, estava eu numa escola de periferia, com uma classe de alunos repetentes por muitos anos porque não sabiam ler e escrever, levava comigo muita vontade e uma sacola cheia de materiais bonitinhos, feitos por minhas próprias mãos, que animavam os alunos pela sua beleza e os fazia sentir-se "cuidados" pela sua professora, o que era bom, mas que pouco contribuía para que aprendessem mais. Durante aquele ano, o conteúdo da mala variou muito: a incerteza quase sempre estava presente, assim como a força de vontade e a insistência que partilhavam espaço com livrinhos de história, a cartilha da pipoca, alguns joguinhos para trabalhar matemática e às vezes alguns docinhos, brinquedinhos e roupas para as crianças.

        Já no curso de pedagogia, tudo era muito diferente do que eu tinha vivido na escola. Havia muitas pessoas numa sala, quase todos os alunos eram mais velhos que eu e as relações eram mais superficiais. Os professores também eram diferentes, eles falavam para grandes massas de alunos, a maioria de nós não tinha nome para eles, mas eles falavam de coisas que eu achava muito interessantes e anotava tudo no caderno. Descobri que a faculdade era uma escola muito diferente da escola que eu queria para viver, embora aprendesse muito nela e tivesse algumas gostosuras: as paqueras, os bate-papos com alguns colegas, o bolinho de queijo da cantina e a sexta-feira...

        Esse ano, o primeiro como professora, foi definitivo para o meu "casamento" com a escola. Nele tive a oportunidade de experimentar pela primeira vez na vida o que é "quebrar a cara". Cheguei cheia de sonhos e boa vontade, sabia que estava fazendo diferença para aqueles alunos, pois me empenhava muito para isso, mas descobri também que, só com isso na minha malinha, pouco poderia contribuir para de alguma forma "ajudar a mudar seus destinos", fadados ao fracasso. Pobres e fracassados – parece que era isso que queriam escrever nas linhas de suas mãos e eu pouco podia, pouco sabia fazer para ajudá-los a fugir deste destino. Não pensem que só chorei durante esse ano, também sorri e cantei com minha turma, fui dura, brava algumas vezes, afinal queria muito que aprendessem, vibrei com suas conquistas e me senti parte de suas vidas. E no final do ano muitos deles estavam diferentes e sabiam ler e escrever.

        Depois disso, muitos outros vieram, muitos outros alunos, crianças e adultos povoaram minha vida. Outras escolas se sucederam à primeira – não muitas, pois fui aprendendo a ganhar raízes, também fui encontrando parceiros mais interessantes e interessados em melhorar suas práticas, tanto nas escolas estaduais como nas municipais por onde passei. E, sendo assim, fui cada vez mais acreditando que aquele era meu lugar. E pela minha inseparável malinha – que ora era uma sacola, ora era o próprio porta-malas do carro – passaram muitas coisas diferentes: livros, jogos, tesoura, cola, papéis, cadernos (muitos), sucatas, rótulos, sementes, fitas K7, fitas de vídeo... e muitos, muitos textos, alguns tão difíceis que eu começava a ler e os deixava de lado, outros que eu devorava com minhas parceiras, outros ainda que eu achava impossível serem de fato sérios... Só sei que, ao lado disso tudo, dentro da malinha compartilhavam do mesmo espaço coisas materiais e muitas coisas nem sempre palpáveis: dúvidas, certezas, conflitos, alegrias, descontentamento, euforia, paixão, satisfação e muita busca.

        Cada vez sabia mais que o que me movia era estar dentro da escola, não importava muito se de educação infantil, 1ª a 4ª série ou se de jovens e adultos: aquele espaço de convivência intensa entre as pessoas e das pessoas com o conhecimento é o que me satisfazia. Até que um dia surge uma oportunidade – única, é o que diziam as pessoas de modo geral. Estava eu, pela primeira vez na vida, frente a frente com a possibilidade de sair da escola que até então, com maior ou menor intensidade, sempre tinha sido o único "palco por onde andei". Havia a chance de integrar a equipe técnica da Secretaria de Educação, que era muito respeitada pela maioria dos professores da rede municipal. Fiquei numa dúvida cruel: por um lado estava tendo uma possibilidade de crescer na carreira dentro de uma rede pública de que eu gostava muito e me orgulhava de fazer parte, por outro teria de abrir mão do "aconchego reconfortante" da escola e me atirar rumo ao desconhecido.

        Demorei muito a me decidir. Nunca imaginei que fosse tão sofrido ter de tomar decisões. Como eu poderia ser tão ingrata e abandonar quem sempre me acolheu tão bem, como seria capaz de viver sem aquele burburinho gostoso de escola quando tem gente, quando tem vida? Mas também, como perder essa oportunidade – única – que acenava para mim como uma chance de conhecer mais, estudar mais... Optei, então, depois de muitas noites sem dormir, muito choro e dores de cabeça, por entrar por essa nova porta que se abria a minha frente, porém não poderia imaginar minha vida sem alunos, e assim continuei sendo professora de jovens e adultos no período noturno.

        Outra etapa da minha vida se iniciava. Estava diante de uma nova função nunca antes por mim vivida, que só conhecia do lado de cá, o de professora que observava de longe o que faziam as pessoas da equipe técnica. O início não foi nada fácil. O primeiro dia novamente parecia com aquele, daquela meninazinha de laço no cabelo que deixava o conforto do lar para aventurar-se num mar de incertezas, levando em sua malinha agora um coração apertado, mas também ansioso pela novidade que se mostrava fascinante, pois acenava com a possibilidade do convívio com outras pessoas e outros saberes. Tinha então novos afazeres, graças a Deus, todos relacionados à escola.

         No primeiro ano, penso que engordei "uma tonelada", tamanha era minha ansiedade em fazer tudo da melhor forma possível. Sentia um medo enorme de não "dar conta do recado", de não ser capaz de contribuir de fato para que os outros professores pudessem trabalhar melhor... De verdade eu acreditava que se eu fizesse tudo direitinho, todos iriam gostar de estudar e procurar mudar suas práticas (quanta pretensão!). Minha mala agora tinha ficado superchique, parecia uma executiva, com pasta de pelica bege, presente não mais do meu avô, que infelizmente já havia partido, mas de minha mãe, que estava muito orgulhosa da sua jovem filha. Dentro dela? Proposta curricular, textos e mais textos teóricos, os mais recentes que conseguia, para serem fartamente distribuídos aos professores, durante minhas visitas às escolas.

        Além disso, tinha outro ponto, que era ao mesmo tempo um alento e um desafio: fazer parte de uma equipe composta de professoras que, como eu, eram novas nessa função e por isso também estavam construindo seu papel e seu lugar no grupo. Isso era bom porque estávamos "buscando nosso lugar ao sol" e por isso tínhamos de nos ajudar mutuamente – e o único jeito que conhecíamos para fazer isso era estudando. Mas, por outro lado, todas sabíamos que para nos tornarmos uma equipe não bastava compartilhar a mesma sala e os mesmo problemas a resolver... Era preciso muito mais. E todas, de modo geral, se esforçavam para isso, o que também foi um aprendizado. Embora muitas vezes tivesse pensado no quanto tinha sido uma idiota em deixar o "conforto pobrezinho do meu lar" para me arriscar por "mares nunca dantes navegados", de certa forma tudo isso me seduzia e, como também não sou de "abandonar o barco", segui em frente. Foram anos de estudo e desafios e minha malinha, fiel escudeira, que me acompanhava de porta em porta, de escola em escola, carregou uma variedade imensa de papéis, registros, relatórios, ideias, projetos, observações... Fui aprendendo – pelo menos creio que sim – a contribuir um pouco mais com o trabalho dos meus colegas professores, tentei ser parceira deles e, nesse caminhar, nunca deixei de respirar escola. Fui aprendendo, nesses anos de trabalho, assim como minhas colegas de equipe, a definir melhor o meu papel. Já sei que, para que a educação se transforme, não basta apenas distribuir aos professores uma infinidade de textos de fundamentação teórica: para que os textos façam sentido, é preciso um trabalho de formação contínua, de discussão real sobre a prática pedagógica.

        Recebi, então, recentemente, um convite maravilhoso, o mais sedutor de toda a minha vida profissional, que tinha como ingredientes: escola, professores, alunos e formadores. Além disso, poderia conciliar esta ação com o trabalho que vinha fazendo com as escolas de meu município. Então, continuando a acreditar que a escola é por excelência o lugar em que as grandes mudanças na vida dos alunos acontecem, eu e minha malinha nos aventuramos por outros mares – claro que sem deixar de retornar ao porto seguro, onde eu fiz minha morada que é a secretaria onde trabalho. Comecei então a trabalhar com formação de professores. Na mala – agora de viagem, com rodinhas para facilitar o transporte "do peso do saber" – carregava algumas roupas, que variavam conforme a estação; muitos livros, literários e teóricos; fitas de vídeo, cadernos para as anotações, uma pauta a ser discutida e uma imensa vontade de contribuir de alguma forma com o trabalho dos professores deste país. Esta possibilidade me encantou e mudou radicalmente meu jeito de pensar a escola. Estava vivendo um momento único e, com ele, a possibilidade de conhecer pessoas – as mais diferentes, com as mais diferentes experiências – e fazer parte de um trabalho coletivo de fato, estudar e aprender...

        Isso tudo me parecia o paraíso, era muito mais do que um dia eu havia sonhado...

        Mas, quem foi que disse que os sonhos não se tornam realidade e podem ser mais maravilhosos ainda?

        Na sequência desse convite, na verdade como consequência dele, recebi outro. Agora sim, um convite que aquela meninazinha, que nem sequer frequentou o jardim, não poderia jamais imaginar. Participar da equipe pedagógica do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores! Esse era o presente mais lindo que um dia alguém poderia me dar. Agora teria de me afastar um pouco do meu porto seguro, visto que a viagem era longa – a princípio isto me assustou, mas agora, já mais experiente, tenho certeza de que "navegar é preciso" e que quando eu voltar trarei na mala muitas coisas boas para compartilhar com os companheiros em terra.

        Estou aqui então, carregando nas mãos uma mala cheia de bons sonhos, sonhados e construídos a muitas mãos e cabeças, por um grupo de professoras que acredita que é possível pensar e fazer educação neste país. Nesta mala estão depositadas muitas esperanças, não de milagres ou mágicas, visto que o que carrega é conhecimento, mas de possibilidades de mudança. E eu? Aprendi que a escola com certeza é minha vida e que quero viver ainda muito, até que um dia, bem velhinha, possa abrir minha malinha e olhar lá dentro todas as recordações boas que esta profissão me deu de presente.

Rosa Maria Monsanto Glória.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 47-53.

Entendendo o artigo:

01 – Qual a principal motivação da autora para querer ir à escola na infância, considerando sua condição socioeconômica?

      Para a autora e a maioria das crianças de sua geração sem muitos recursos, a escola de educação infantil era "artigo de luxo". Sua principal motivação para querer ir à escola, especificamente ao "Grupo" (Ensino Fundamental), era o desejo de aprender a ler e a escrever, algo que ela observava nas meninas mais velhas.

02 – Qual objeto se tornou um símbolo da ansiedade e dos sonhos da autora em seu primeiro dia de aula, e por quê?

      A mala preta que ganhou de seu avô foi o objeto mais fascinante. Ela representava um "mundo de coisas" que caberiam dentro dela – cadernos, estojos, livros – e era o âncora de todos os seus sonhos de menina que ansiava por ir à escola.

03 – Como a autora se sentia durante as férias escolares, e o que essa atitude revela sobre sua relação com a escola?

      Nos primeiros dias de férias, a autora ficava eufórica, mas após uma ou duas semanas, sentia muita saudade da escola. Ela passava o tempo engraxando sua mala e arrumando suas coisas, o que revela o quanto a escola era um espaço vital e central em sua vida, não apenas para o aprendizado, mas para a convivência social.

04 – Qual foi a decisão de carreira da autora na adolescência e como ela se sentiu ao ser aprovada para o curso de Magistério?

      Na adolescência, ela definiu que seria professora. Ao ser aprovada no "vestibulinho" para o curso de Magistério, mesmo na segunda chamada, ela se sentiu radiante e orgulhosa, pois era difícil ingressar naquela escola pública concorrida.

05 – Descreva a importância da escola durante os anos de Magistério da autora.

      Os quatro anos de Magistério foram descritos como "os melhores da minha vida". A escola foi um espaço onde ela viveu intensamente, participando de atividades extracurriculares, utilizando diversos espaços (como a biblioteca e a sala de estágio), fazendo amizades duradouras e tendo professores que a fizeram acreditar ainda mais na profissão.

06 – Qual foi a principal "decepção" e aprendizado da autora em seu primeiro ano como professora em uma escola de periferia?

      A autora enfrentou a hostilidade e o desânimo de colegas que não acreditavam no potencial dos alunos repetentes. Ela descobriu que apenas sua boa vontade e materiais bonitos eram insuficientes para "ajudar a mudar seus destinos", percebendo que a transformação exigia mais do que isso. Apesar das dificuldades, muitos de seus alunos aprenderam a ler e escrever.

07 – De que forma o curso de Pedagogia se diferenciava da experiência escolar que a autora almejava para sua vida?

      No curso de Pedagogia, a autora encontrou um ambiente com muitas pessoas, relações mais superficiais e professores que falavam para "grandes massas", sem conhecer os alunos individualmente. Embora aprendesse muito, ela percebeu que a faculdade era "uma escola muito diferente da escola que eu queria para viver".

08 – Qual foi a "dúvida cruel" que a autora enfrentou ao receber o convite para a Secretaria de Educação?

      Ela ficou dividida entre a possibilidade de crescer na carreira em uma rede pública que ela admirava e a necessidade de abrir mão do "aconchego reconfortante" da escola, o "burburinho gostoso" dos alunos e a convivência que tanto a satisfazia.

09 – Como a autora conciliava sua nova função na Secretaria de Educação com sua paixão por lecionar?

      Mesmo assumindo a nova função na equipe técnica da Secretaria de Educação, a autora não abriu mão de ser professora. Ela continuou lecionando para jovens e adultos no período noturno, garantindo que sua vida ainda tivesse a presença e o convívio com alunos.

10 – O que o último convite recebido pela autora (para o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores) simboliza para ela e para sua "malinha"?

      Esse convite é o "presente mais lindo", algo que a "meninazinha que nem sequer frequentou o jardim" jamais poderia imaginar. Simboliza a concretização de seus sonhos em uma escala maior. Sua "malinha", agora de viagem com rodinhas, passa a carregar não apenas materiais e livros, mas muitas esperanças e possibilidades de mudança, representando sua contínua busca por contribuir com a educação do país.