Crônica: Pequenos Abusos
Walcyr Carrasco
ACONTECEU EM UM SÁBADO, a uma da manhã. Eu
havia saído com alguns amigos. A carona me deixou em frente o meu prédio, onde
há uma banca de revistas. Estava aberta. Aproveitei para entrar. E uma banca
grande, com caixa e até máquina que preenche cheque. Espantei-me ao ver,
espalhados sobre o balcão, vários montinhos de dinheiro, alguns de moedas.
Troco pequeno: notas de um, dois reais. O caixa contava o total. Ao lado, um
engraxate. Moleque. Na idade em que já deveria estar em casa, e não solto pelas
ruas do centro da cidade. Trouxera a féria do dia, em dinheiro picadinho, para
trocar por notas de maior valor.
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjs7T5_yZlyDWYRF2Z2uoXYowJlK-GQLyiqyEDrAr7MgFUxXbZP2KkI6Wf-B40QOwvbXwrrf76-6lu6fl7XhmhahTweAumxFuuFc0fWDHK3ebQQ3iviWnxgEStIr42JQJPT7ryAF8l6gWe7mwVFgplFUQpmE0WnZvlcZ2Da9TtWELgbUdC2WvYJCHohLH8/s320/ENGRAXATE.jpg
Nesse instante, um policial entrou na banca.
Alto, fardado. Olhou para o garoto. Estendeu o pé, mostrando o sapato. O garoto
quis explicar.
— Estou sem material para engraxar.
— Lustre — ordenou o policial.
Confesso que fiquei chocado. Ninguém é obrigado
a trabalhar à uma hora da manhã. Ainda mais de graça. Obviamente, o policial
nem sequer cogitava pagar. Também, confesso, fiquei sem ação. O garoto, já
acostumado à dura vida na rua, ajoelhou-se. Tirou um pano da caixa de
engraxate. Lustrou ambos os sapatos. Mas, ao abrir a caixa, subiu um cheiro de
cola no ar.
—
É cola? — disse o policial.
Percebi uma acusação a caminho. Lembrei-me dos
meus tempos de criança, quando havia um sapateiro perto de casa. Às vezes a
sola do meu sapato soltava, e ele colava novamente. Não sou ingênuo a ponto de
achar que o garoto fosse completamente inocente. Mas, segundo acredito, até
qualquer prova em contrário ninguém é culpado. Talvez carregar cola fosse
normal para um engraxate.
Comentei:
-— A cola pode servir para consertar uma sola
solta, por exemplo.
O policial me encarou e não respondeu. Olhou o
garoto, ameaçador. Decidi permanecer na banca. A vítima ali era o garoto. Por
que motivo um policial acha que tem o direito de usufruir trabalho gratuito?
Ainda mais de madrugada? Já vi isso acontecer várias vezes. E comum um policial
entrar em um bar e consumir sem botar a mão no bolso. Não acho correto. E o
mais interessante é que estou do lado dos policiais. São mais do que
necessários, com a violência de hoje em dia. Não têm vida fácil, não. O salário
é baixo. Pequeno, para o risco que todo policial corre diariamente. Uma vez
conversei com um policial e ele desabafou:
— Imagine o que é sair para trabalhar todo dia
sem saber se vou voltar vivo para casa. Além de ganhar pouco, muitos até têm de
esconder a profissão, para não sofrer hostilidades na vizinhança. Mas é
justamente por isso que sua atitude deveria ser completamente outra. O policial
deve ser visto como um amigo. Por todos nós. Mas fundamentalmente pelos mais
pobres, mais carentes, que só têm a eles para recorrer. Pequenos abusos, como
espichar o pé para lustrar o sapato de madrugada, levam à desconfiança. Ao
medo. À perda de confiança necessária para fazer denúncias. A polícia precisa
do apoio da população. Como conquistá-lo com atitudes nesse estilo?
Certamente, o pequeno engraxate estava
apavorado. A presença da cola na caixa de trabalho talvez merecesse uma
conversa. Um encaminhamento. Talvez eu estivesse errado em sair tão prontamente
em sua defesa. Mas o que havia lá era apenas ameaça. Terror.
O rapaz da banca terminou de contar o dinheiro
e deu duas notas de dez reais ao garoto. Seu faturamento no dia, provavelmente.
Ele partiu. O policial saiu em seguida. Voltei para meu prédio sentindo uma
grande tristeza. Enquanto continuarem os pequenos abusos, muita coisa grande
vai ficar sem solução.
Entendendo
o texto
01.
O que o
autor observa ao entrar na banca de revistas na crônica "Pequenos
Abusos"?
A) Jornais espalhados.
B) Montinhos de dinheiro.
C) Máquina de café.
D) Revistas empilhadas.
02. O que o garoto
engraxate faz quando o policial entra na banca?
A) Corre para fora.
B) Conta dinheiro.
C) Lustra os sapatos do policial.
D) Pede uma carona.
03. Qual é a ordem
dada pelo policial ao garoto?
A) Contar o dinheiro.
B) Comprar jornais.
C) Lustrar os
sapatos.
D) Fechar a banca.
04. Como o autor
reage à situação do garoto engraxate?
A) Fica chocado.
B) Ri da situação.
C) Ignora o ocorrido.
D) Oferece ajuda financeira.
05. O que o policial
observa na caixa de engraxate do garoto?
A) Dinheiro picadinho.
B) Balas e doces.
C) Ferramentas de trabalho.
D) Um cheiro de cola.
06. O que o autor
comenta sobre a presença da cola na caixa do engraxate?
A) Sugere que pode ser usada para consertar
sapatos.
B) Acusa o garoto de má conduta.
C) Ignora o assunto.
D) Oferece uma explicação alternativa.
07. O que o policial
faz após o garoto lustrar seus sapatos?
A) Paga pelo serviço.
B) Ameaça o garoto.
C) Ignora o garoto.
D) Prende o garoto.
08. Como o autor
descreve a atitude do policial em relação ao trabalho do garoto?
A) Correta e justa.
B) Inadequada e
abusiva.
C) Simpática e compreensiva.
D) Desinteressada e apática.
09. Qual é a
preocupação do autor em relação aos pequenos abusos policiais?
A) Eles levam à
desconfiança e ao medo.
B) Eles aumentam a confiança da população.
C) Eles não têm impacto significativo.
D) Eles são inevitáveis na sociedade.
10. Como o autor se
sente ao voltar para seu prédio no final da crônica?
A) Feliz.
B) Enraivecido.
C) Triste.
D) Indiferente.