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sexta-feira, 17 de outubro de 2025

CONTO: EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - UMA IDEIA DA SENHORA EMÍLIA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA – Uma ideia da Senhora Emília

            Monteiro Lobato

        Dona Benta, com aquela paciência de santa, estava ensinando gramática a Pedrinho. No começo Pedrinho rezingou.

          Maçada, vovó. Basta que eu tenha de lidar com essa caceteação lá na escola. As férias que venho passar aqui são só para brinquedo. Não, não e não. . .

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEirePOIYMHOxFg8zm-o2TlXNkh8o2FD3PBCAgbFSfN7ECqC0rTIQHOIylEAvZo47pxZw96Pnw2VY7DqnBQA0iIEqXu2GugFXEl_IeCLeBFgPjncKBJ0dzHzzzP4-wfcqJOof5zcVwDwE-BR6Vnv48BjGBkb6b_EQpuPYDTaOOpTBTWnYRP_gUICqYK_Se8/s320/PINTURA.jpg


          Mas, meu filho, se você apenas recordar com sua avó o que anda aprendendo na escola, isso valerá muito para você mesmo, quando as aulas se reabrirem. Um bocadinho só, vamos! Meia hora por dia. Sobram ainda vinte e três horas e meia para os famosos brinquedos.

        Pedrinho fez bico, mas afinal cedeu; e todos os dias vinha sentar-se diante de Dona Benta, de pernas cruzadas como um oriental, para ouvir explicações de gramática.

          Ah, assim, sim! — dizia ele. — Se meu professor ensinasse como a senhora, a tal gramática até virava brincadeira.

        Mas o homem obriga a gente a decorar uma porção de definições que ninguém entende. Ditongos, fonemas, gerúndios. . .

        Emília habituou-se a vir assistir às lições, e ali ficava a piscar, distraída, como quem anda com uma grande ideia na cabeça.

        É que realmente andava com uma grande ideia na cabeça.

          Pedrinho — disse ela um dia depois de terminada a lição —, por que, em vez de estarmos aqui a ouvir falar de gramática, não havemos de ir passear no País da Gramática?

        O menino ficou tonto com a proposta.

          Que lembrança, Emília! Esse país não existe, nem nunca existiu. Gramática é um livro.

        — Existe, sim. O rinoceronte, que é um sabidão, contou-me que existe. Podemos ir todos, montados nele. Topa?

        Perguntar a Pedrinho se queria meter-se em nova aventura era o mesmo que perguntar a macaco se quer banana. Pedrinho aprovou a ideia com palmas e pinotes de alegria, e saiu correndo para convidar Narizinho e o Visconde de Sabugosa. Narizinho também bateu palmas — e se não deu pinotes foi porque estava na cozinha, de peneira ao colo, ajudando Tia Nastácia a escolher feijão.

          E onde fica esse país? — perguntou ela.

          Isso é lá com o rinoceronte — respondeu o menino. — Pelo que diz a Emília, esse paquiderme é um grandessíssimo gramático.

          Com aquele cascão todo?

          É exatamente o cascão gramatical — asneirou Emília, que vinha entrando com o Visconde.

        Os meninos fizeram todas as combinações necessárias, e no dia marcado partiram muito cedo, a cavalo no rinoceronte, o qual trotava um trote mais duro que a sua casca. Trotou, trotou e, depois de muito trotar, deu com eles numa região onde o ar chiava de modo estranho.

          Que zumbido será esse? — indagou a menina.

        — Parece que andam voando por aqui milhões de vespas invisíveis.

          É que já entramos em terras do País da Gramática — explicou o rinoceronte.

        — Estes zumbidos são os SONS ORAIS, que voam soltos no espaço.

          Não comece a falar difícil que nós ficamos na mesma — observou Emília. — Sons Orais, que pedantismo é esse?

          Som Oral quer dizer som produzido pela boca, A, E, I, O, U são Sons Orais, como dizem os senhores gramáticos,

          Pois diga logo que são letras! — gritou Emília.

          Mas não são letras! — protestou o rinoceronte. — Quando você diz A ou O, você está produzindo um som, não está escrevendo uma letra. Letras são sinaizinhos que os homens usam para representar esses sons. Primeiro há os Sons Orais; depois é que aparecem as letras, para marcar esses Sons Orais. Entendeu?

        O ar continuava num zunzum cada vez maior. Os meninos pararam, muito atentos, a ouvir.

          Estou percebendo muitos sons que conheço — disse Pedrinho, com a mão em concha ao ouvido.

          Todos os sons que andam zumbindo por aqui são velhos conhecidos seus, Pedrinho.

          Querem ver que é o tal alfabeto? — lembrou Narizinho. — E é mesmo!... Estou distinguindo todas as letras do alfabeto...

          Não, menina; você está apenas distinguindo todos os sons das letras do alfabeto — corrigiu o rinoceronte com uma pachorra igual à de Dona Benta. — Se você escrever cada um desses sons, então, sim; então surgem as letras do alfabeto.

          Que engraçado! — exclamou Pedrinho, sempre de mão em concha ao ouvido. — Estou também distinguindo todas as letras do alfabeto: o A, o C, o D, o X, o M...

        O rinoceronte deu um suspiro.

          Mas chega de sons invisíveis — gritou a menina. —-Toca para diante. Quero entrar logo no tal País da Gramática.

        — Nele já estamos — disse o paquiderme. — Esse país principia justamente ali onde o ar começa a zumbir. Os sons espalhados pelo ar, e que são representados por letras, fundem-se logo adiante em SÍLABAS, e essas Sílabas formam PALAVRAS — as tais palavras que constituem a população da cidade onde vamos. Reparem que entre as letras há cinco que governam todas as outras. São as Senhoras VOGAIS — cinco madamas emproadas e orgulhosíssimas, porque palavra nenhuma pode formar-se sem a presença delas. As demais letras ajudam; por si mesmas nada valem. Essas ajudantes são as CONSOANTES e, como a palavra está dizendo, só soam com uma Vogai adiante ou atrás. Pegue as dezoito Consoantes do alfabeto e procure formar com elas uma palavra. Experimente, Pedrinho.

        Pedrinho experimentou de todos os jeitos, sem nada conseguir.

          Misture agora as Consoantes com uma Vogai, com o A, por exemplo, e veja quantas palavras pode formar.

        Pedrinho misturou o A com as dezoito Consoantes e imediatamente viu que era possível formar um grande número de palavras.

        Nisto dobraram uma curva do caminho e avistaram ao longe o casario de uma cidade. Na mesma direção, mais para além, viam-se outras cidades do mesmo tipo.

          Que tantas cidades são aquelas, Quindim? — perguntou Emília.

        Todos olharam para a boneca, franzindo a testa. Quindim? Não havia ali ninguém com semelhante nome.

          Quindim — explicou Emília — é o nome que resolvi botar no rinoceronte.

          Mas que relação há entre o nome Quindim, tão mimoso, e um paquiderme cascudo destes? — perguntou o menino, ainda surpreso.

          A mesma que há entre a sua pessoa, Pedrinho, e a palavra Pedro — isto é, nenhuma. Nome é nome; não precisa ter relação com o "nomado". Eu sou Emília, como podia ser Teodora, Inácia, Hilda ou Cunegundes. Quindim!... Como sempre fui a botadeira de nomes lá do sítio, resolvo batizar o rinoceronte assim — e pronto! Vamos, Quindim, explique-nos que cidades são aquelas.

        O rinoceronte olhou, olhou e disse:

        — São as cidades do País da Gramática. A que está mais perto chama-se Portugália, e é onde moram as palavras da língua portuguesa. Aquela bem lá adiante é Anglópolis, a cidade das palavras inglesas.

          Que grande que é! — exclamou Narizinho.

          Anglópolis é a maior de todas — disse Quindim. — Moram lá mais de quinhentas mil palavras.

          E Portugália, que população de palavras tem?

          Menos de metade — aí umas duzentas e tantas mil, contando tudo.

          E aquela, à esquerda?

          Galópolis, a cidade das palavras francesas. A outra é Castelópolis, a cidade das palavras espanholas. A outra é Italópolis, onde todas as palavras são italianas.

          E aquela, bem, bem, bem lá no fundo, toda escangalhada, com jeito de cemitério?

         São os escombros duma cidade que já foi muito importante — a cidade das palavras latinas; mas o mundo foi mudando e as palavras latinas emigraram dessa cidade velha para outras cidades novas que foram surgindo. Hoje, a cidade das palavras latinas está completamente morta. Não passa dum montão de velharias. Perto dela ficam as ruínas de outra cidade célebre do tempo antigo — a cidade das velhas palavras gregas. Também não passa agora dum montão de cacos veneráveis.

        Puseram-se a caminho; à medida que se aproximavam da primeira cidade viram que os sons já não zumbiam soltos no ar, como antes, mas sim ligados entre si.

          Que mudança foi essa? — perguntou a menina.

          Os sons estão começando a juntar-se em SÍLABAS, depois as Sílabas descem e vão ocupar um bairro da cidade.

          E que quer dizer Sílaba? — perguntou a boneca.

          Quer dizer um grupinho de sons, um grupinho ajeitado; um grupinho de amigos que gostam de andar sempre juntos; o G, o R e o A, por exemplo, gostam de formar a Sílaba Gra, que entra em muitas palavras.

          Graça, Gravata, Gramática... — exemplificou Pedrinho.

          Isso mesmo aprovou Quindim. — Também o M e o U gostam de formar a Sílaba Mu, que entra em muitas palavras.

          Muro, Mudo, Mudança. . . — sugeriu a menina.

          Isso mesmo — repetiu Quindim. — E reparem que em cada palavra há uma Sílaba mais emproada e importante que as outras pelo fato de ser a depositária do ACENTO TÔNICO. Essa Sílaba chama-se a TÔNICA.

          O mesmo nome da mãe de Pedrinho!... — observou Emília arregalando os olhos.

          Não, boba. Mamãe chama-se Tônica e o rinoceronte está falando em Sílaba Tônica. É muito diferente.

          Perfeitamente — confirmou Quindim. — No nome de Dona Tônica a Sílaba Tônica é Ni; e na palavra que eu disse a Sílaba Tônica é o To. E na palavra Pedrinho, qual é a Tônica?

          Dri — responderam todos a um tempo.

          Isso mesmo. Mas os senhores gramáticos são uns sujeitos amigos de nomenclaturas rebarbativas, dessas que deixam as crianças velhas antes do tempo. Por isso dividem as palavras em OXÍTONAS, PAROXÍTONAS e PROPAROXÍTONAS, conforme trazem o Acento Tônico na última Sílaba, na penúltima ou na antepenúltima.

          Nossa Senhora! Que "luxo asiático"! — exclamou Emília. — Bastava dizer que o tal acento cai na última, na penúltima ou na antepenúltima. Dava na mesma e não enchia a cabeça da gente de tantos nomes feios. Proparoxítona! Só mesmo dando com um gato morto em cima até o rinoceronte miar...

          E há mais ainda — disse Quindim. — As pobres palavras que têm a desgraça de ter o acento na antepenúltima sílaba, quando não são xingadas de Pro-pa-ro-xí-to-nas, são xingadas de ESDRÚXULAS. As palavras Áspero, Espírito, Rícino, Varíola, etc, são Esdrúxulas.

        — Es-drú-xu-las! — repetiu Emília. — Eu pensei que Esdrúxulas quisesse dizer esquisito.

          E pensou certo — confirmou o rinoceronte. — Como na língua portuguesa as palavras com acento na antepenúltima não são muitas, elas formam uma esquisitice, e por isso são chamadas de Esdrúxulas.

        E assim conversando, o bandinho chegou aos subúrbios da cidade habitada pelas palavras portuguesas e brasileiras.

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Por que Pedrinho inicialmente se recusa a ter aulas de Gramática com Dona Benta, e o que o faz ceder?

      Pedrinho rezinga, alegando que as férias são apenas para brincadeiras e que a Gramática é uma "caceteação" que ele já tem que aturar na escola. Ele cede quando Dona Benta o convence a estudar apenas meia hora por dia, garantindo que as 23 horas e meia restantes seriam para os brinquedos.

02 – Qual é a "grande ideia na cabeça" de Emília que dá origem à aventura, e quem ela convida para participar?

      A grande ideia de Emília é que, em vez de apenas ouvir falar de Gramática, eles deveriam "ir passear no País da Gramática". Ela convida Pedrinho, Narizinho, e o Visconde de Sabugosa para a aventura.

03 – Quem Emília informa ser o guia da viagem, e qual o novo nome que ela batiza esse guia e por quê?

      O guia da viagem é o rinoceronte, que Emília batiza com o nome de Quindim. Ela justifica o nome dizendo que é a mesma relação entre a pessoa de Pedrinho e a palavra Pedro: "Nome é nome; não precisa ter relação com o 'nomado'."

04 – Qual é a primeira manifestação sonora que os viajantes percebem ao entrar em terras do País da Gramática, e o que Quindim explica serem esses sons?

      Eles percebem um zumbido estranho no ar, como se fossem "milhões de vespas invisíveis". Quindim explica que estes são os SONS ORAIS, ou seja, sons produzidos pela boca (como A, E, I, O, U), que voam soltos no espaço e que, quando escritos, são representados por letras.

05 – Qual a diferença essencial entre Vogais e Consoantes no País da Gramática, conforme explica Quindim?

      As Vogais (A, E, I, O, U) são as "cinco madamas emproadas e orgulhosíssimas" que governam todas as outras letras, pois palavra nenhuma pode formar-se sem a presença delas. As Consoantes são apenas "ajudantes" que, por si mesmas, nada valem e "só soam com uma Vogal adiante ou atrás."

06 – Quais são duas das cidades vizinhas de Portugália (cidade das palavras portuguesas) que eles avistam, e qual a que se destaca por ser a maior?

      Eles avistam Anglópolis (palavras inglesas), Galópolis (palavras francesas), Castelópolis (palavras espanholas) e Italópolis (palavras italianas). A cidade de Anglópolis é a maior de todas, com mais de quinhentas mil palavras.

07 – Qual a crítica de Emília aos nomes que os gramáticos dão às classificações de palavras quanto à Sílaba Tônica (Oxítonas, Paroxítonas e Proparoxítonas)?

      Emília critica os nomes por serem "nomenclaturas rebarbativas" e um "luxo asiático" que deixa as crianças velhas antes do tempo. Ela afirma que bastava dizer que o acento cai na última, penúltima ou antepenúltima sílaba, sem precisar usar nomes feios como "Proparoxítona" e "Esdrúxulas."

 

 

 

 

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

CONTO: NO ACAMPAMENTO DOS VERBOS - EMÍLIA NO PAÍS DA GRAMÁTICA - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: No acampamento dos Verbos – Emília no país da gramática

           Monteiro Lobato   

        — Agora iremos visitar o Campo de Marte onde vivem acampados os VERBOS, uma espécie muito curiosa de palavras. Depois dos Substantivos são os Verbos as palavras mais importantes da língua. Só com um Nome e um Verbo já podem os homens exprimir uma ideia. Eles formam a classe militar da cidade.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgcxjHIv1O8yoxN0e_kALsT4Ulp5wa2e7Bt2uW5gF5x0TIlwFEDPHrBhbqC63BuStZYv0X75ce6Sc7Wioiilc3WvqkpbSuUvGtvDHBKbfM6_kirlt_5g0qGkiIVsQzTxYVZ9QdkH4V_tPdhEemrDb6ph082gu_lFWvFA52SX-Qd68c3qhcnn0pUAlsv1lM/s320/CAMPO.jpg


        — Mas que é um Verbo, afinal de contas? — perguntou Pedrinho.

          Verbo é uma palavra que muda muito de forma e serve para indicar o que os Substantivos fazem. A maior parte dos Verbos assumem sessenta e oito formas diferentes.

        — Nesse caso são os camaleões da língua — observou Emília. — Dona Benta diz que o camaleão está sempre mudando de cor. Sessenta e oito formas diferentes! Isso até chega a ser desaforo. Os Nomes e Adjetivos só mudam seis vezes — para fazer o Gênero, o Número e o Grau.

        — Pois os senhores Verbos até cansam a gente de tanto mudar — disse o rinoceronte. — São palavras políticas, que se ajeitam a todas as situações da vida. Moram aqui em quatro grandes acampamentos, ou campos de CONJUGAÇÃO.

        Os quatro acampamentos ocupavam todo o Campo de Marte. Cada um trazia letreiro na entrada. Emília leu o letreiro mais próximo — Acampamento dos Verbos da PRIMEIRA CONJUGAÇÃO. Em letras menores vinha um aviso: "Só é permitida a entrada aos Verbos de Infinito terminado em Ar".

        — Que quer dizer Infinito? — indagou Narizinho.

        — É uma das sessenta e oito formas diferentes dos Verbos, e a que dá nome a toda a tribo.

        O acampamento imediato era o da SEGUNDA CONJUGAÇÃO, para os Verbos terminados em Er. O acampamento seguinte era o da TERCEIRA CONJUGAÇÃO, para os Verbos terminados em Ir. Os meninos viram um acampamento mais novo, anexo ao acampamento dos Verbos da Segunda Conjugação.

        — Vamos começar nossa visita por aquele — disse Emília —, só porque ele é mais novinho e menor do que os outros.

        Dirigiram-se todos para lá, mas o desapontamento foi grande. Encontraram apenas o Verbo Pôr e sua família.

        — Ora essa — disse Emília. — Explique, Quindim, o que faz aí essa coruja? Por que não está no acampamento grande junto com os outros?

        Quindim suspirou e começou:

        — Antigamente Pôr pertencia à Segunda Conjugação e chamava-se Poer. Mas o tempo, que tanto estraga e muda os Verbos, como tudo mais, fez que apodrecesse e caísse o E de Poer. Ficou Pôr, como está hoje. Os gramáticos então criaram uma nova conjugação para ele e seus parentes Compor, Depor, Propor, Dispor, Antepor, Supor e outros. Depois outros gramáticos acharam que não estava bem criarem uma conjugação inteira para um Verbo só, e trouxeram o pobre Pôr e sua família para este anexo da Segunda Conjugação e lhe deram o nome de Verbo ANÔMALO, que quer dizer Verbo Anormal da Segunda Conjugação.

        — Que complicação! Seria muito mais simples fabricarem um E novo de pau para substituir o que apodreceu — lembrou Emília.

        — Parece simples mas não é. Os gramáticos mexem e remexem com as palavras da língua e estudam o comportamento delas, xingam-nas de nomes rebarbativos, mas não podem alterá-las. Quem altera as palavras, e as faz e desfaz, e esquece umas e inventa novas, é o dono da língua — o Povo. Os gramáticos, apesar de toda a sua importância, não passam dos "grilos" da língua.

        — Nesse caso — insistiu Emília —, em vez de xingá-lo de Anômalo, podiam ter posto um letreirinho no pescoço do Verbo: "Ele é Poer; se está Pôr é porque o E apodreceu e caiu". Mas vamos sair do anexo e ver o acampamento da Segunda Conjugação.

        Lá estava coalhado de Verbos, a ponto dos meninos nem poderem andar. O momento era bom. O batalhão do Verbo Ter, que é dos mais importantes, ia desfilar. Uma cometa soou e o desfile teve começo.

        Esse batalhão compunha-se de sessenta e oito praças, ou PESSOAS, distribuídas em companhias, ou MODOS, e em pelotões, ou TEMPOS. Abria a marcha o MODO INDICATIVO, com trinta e seis soldados repartidos em seis Tempos. Na frente de todos vinha o TEMPO PRESENTE, composto de seis soldadinhos, cada qual com um Pronome no bolso. Os Verbos não sabem andar sós; vivem ligados a alguém ou alguma coisa, que é o SUJEITO; e quando o Sujeito não está presente, botam em lugar dele um Pronome.

        Os nomes dos seis soldadinhos do Tempo Presente eram Tenho, Tens, Tem, Temos, Tendes e Têm, e os Pronomes que traziam no bolso eram Eu, Tu, Ele, Nós, Vós e Eles. Seis soldadinhos vivos e enérgicos, que marchavam muito seguros de si.

        — Bravos! — gritou Emília. — Pelo jeito de marchar a gente vê que eles têm mesmo...

        Em seguida veio o Segundo Tempo, cujo nome era PRETÉRITO IMPERFEITO; tinha igual número de soldadinhos, ou Pessoas, embora menos jovens e com caras menos vivas.

        Chamavam-se  Tinha,   Tinhas,  Tinha,  Tínhamos,   Tinheis  e Tinham.

        — Esses não têm: tinham!... — observou Pedrinho. — Por isso estão meio jururus.

        Depois veio o Terceiro Tempo, chamado PRETÉRITO PERFEITO, composto igualmente de seis soldados de olhos no fundo, amarelos, magros, com expressão de medo na cara. Eram eles Tive, Tiveste, Teve, Tivemos, Tivestes e Tiveram.

        — Estou vendo! — comentou Emília. — Tiveram, já não têm mais nada, os bobos. Bem feito! Quem manda...

          Quem manda o quê, Emília? — indagou Narizinho.

        — Quem manda perderem o que tinham? Agora aguentem. Depois desfilou o Quarto Tempo, chamado PRETÉRITO MAIS-QUEPERFEITO. Eram também seis soldados — Tivera, Tiver as, Tivera, Tivéramos, Tiver eis e Tiveram.

        Depois passou o Quinto Tempo, chamado FUTURO DO PRESENTE, e foram recebidos com palmas por serem soldadinhos dos mais alegres e esperançosos — Terei, Terás, Terá, Teremos, Ter eis, Terão.

          Estes são espertos — disse Pedrinho. — Sabem contentar a todo mundo. Viva o Futuro!...

        Estava terminado o desfile do Modo Indicativo, que exprime o que é, ou a realidade do momento.

        Houve um pequeno descanso antes de começar o desfile do MODO IMPERATIVO, que era orgulhosíssimo. Compunha-se apenas de cinco soldados carrancudos, com ar mais autoritário que o do próprio Napoleão. Eram eles o Tem, Tenha, Tenhamos, Tende, Tenham.

        — Só fazem isso — explicou Quindim. — Mandam que o pessoal tenha.

        — Tenha que coisa? — indagou Emília.

        — Tudo quanto há. Quando o Imperativo diz para você, com voz de ditador: Tenha juízo, Emília!, ele não está pedindo nada — está mandando como quem pode, ouviu?

        — Fedorento!... — exclamou a boneca com um muxoxo de pouco-caso.

        Depois desfilou o MODO SUBJUNTIVO, com três Tempos, de seis Pessoas cada um. O Primeiro Tempo, de nome PRESENTE, trazia os soldados Tenha, Tenhas, Tenha, Tenhamos, Tenhais e Tenham.

        Em seguida desfilou o Segundo Tempo, de nome PRETÉRITO IMPERFEITO, com os seus seis soldados — Tivesse, Tivesse s, Tivesse, Tivéssemos, Tivésseis e Tivessem. E por fim desfilou o Terceiro Tempo, o FUTURO, com os seus seis soldados — Tiver, Tiveres, Tiver, Tivermos, Tiverdes e Tiverem. E pronto! Acabou-se o Modo Subjuntivo, que é o Modo que indica alguma coisa possível.

        — Qual o que vem agora? — perguntou o menino.

        — Vai desfilar agora o MODO INFINITIVO — respondeu Quindim. — Esse Modo só tem dois Tempos — o PRESENTE IMPESSOAL, com um soldado único — Ter; e o PRESENTE PESSOAL, com seis soldados — Ter, Teres, Ter, Termos, Terdes e Terem.

        — Hum!... — exclamou Emília quando viu passar, muito teso e cheio de si, o soldadinho Ter, do Presente Impessoal. — Este é o tal Infinito, pai de todos e o que dá nome ao Verbo. Um verdadeiro general. Merece parabéns pela disciplina da sua tropa.

        Fechava a marcha do Modo Infinito o GERÚNDIO, composto do soldado Tendo, seguido logo depois do PARTICÍPIO, composto também dum só soldado, um veterano muito velho, com o peito cheio de medalhas — Tido.

        — Parece o Garibaldi — asneirou a boneca. — Escangalhado, mas glorioso.

        Estava finda a revista do Verbo Ter. O rinoceronte perguntou aos meninos se queriam assistir a outras.

        — Não — respondeu Narizinho. — Quem vê um Verbo, vê todos. Só quero saber que história é essa de Verbos REGULARES e IRREGULARES. Estou notando ali uma cerca que separa uns de outros.

        — Verbos Regulares são os bem-comportados — explicou Quindim —, os que seguem as regras muito direitinhos. Verbos Irregulares são os rebeldes, os que não se conformam com a disciplina. Este Senhor Ter, por exemplo, é Irregular, visto como não segue o PARADIGMA da Segunda Conjugação.

        — Que Paradigma é esse agora? — indagou Pedrinho.

        — Cada Conjugação possui o seu Regulamento, ou Paradigma, a fim de que todos os Verbos Regulares formem as suas PESSOAS sempre do mesmo modo.

        — Que Pessoas, Quindim?

        — Os soldadinhos são as Pessoas dos Verbos, creio que já expliquei. Tenho, Tens, Tem, Temos, Tendes e Têm, por exemplo, são as seis Pessoas do Tempo Presente do Modo Indicativo.

        — Com que então o tal Ter é irregular, hein? Não parecia.

        — E além de Irregular é AUXILIAR. Os Verbos Ter, Ser, Estar e Haver são chamados Verbos Auxiliares porque além de fazerem o seu serviço ainda ajudam outros Verbos. Quando alguém diz: Tenho brincado muito, está botando o Verbo Ter como auxiliar do Verbo Brincar.

          E que outras qualidades do Verbo há?

        — Muitas. Verbo é coisa que não acaba mais. Há Verbos DEFECTIVOS, uns coitados, com falta de Modos, Tempos ou Pessoas.

        Há os Verbos PRONOMINAIS, que não sabem viver sem um Pronome Oblíquo adiante ou atrás, como Queixar-se. Sem esse Se, ou outro Pronome, ele não se arruma na vida.

        Há os Verbos ATIVOS, que dizem o que o Sujeito faz; e há os Verbos PASSIVOS, que dizem o que fizeram para o Sujeito. A frase: Eu comi o doce está com um Verbo Ativo. A frase: O doce foi comido por mim está com um Verbo Passivo (Foi Comido).

        Se formos falar tudo, tudo, a respeito de Verbos, ficaremos aqui o dia inteiro. Gentinha que muda de forma como eles fazem, dá pano para mangas! E são exigentíssimos. Uns não sabem viver sem um COMPLEMENTO adiante, e por isso se chamam Verbos TRANSITIVOS. Outros dispensam o Complemento, e por isso se chamam INTRANSITIVOS. Queimar, por exemplo, é Transitivo, porque exige Complemento. Se alguém diz: O fogo queimou, a frase fica incompleta; e quem ouve pergunta logo o que é que o fogo queimou. Essa coisa que o fogo queimou, seja mato, lenha ou carvão, constitui o Objeto Direto de Queimou.

        — E os Intransitivos?

        — Esses não pedem Complemento, como eu já disse. O Verbo Morrer, por exemplo, é Intransitivo. Quando a gente diz: O gato morreu, a frase está perfeita e ninguém pergunta mais nada.

        — Eu pergunto! — gritou Emília. — Pergunto de que  morreu, e quem o matou e onde jogaram o cadáver.                     

        Quindim coçou a cabeça.     

OBRA INFANTO-JUVENIL DE MONTEIRO LOBATO. Edição do Círculo do Livro. Emília no País da Gramática. As figuras de sintaxe. https://www.fortaleza.ce.gov.br.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a importância do Verbo, e qual o mínimo de palavras que, segundo Quindim, os homens precisam para exprimir uma ideia?

      Depois dos Substantivos, os Verbos são as palavras mais importantes da língua, formando a classe militar da cidade. O mínimo de palavras que os homens precisam para exprimir uma ideia é um Nome e um Verbo.

02 – Qual é a função do Verbo, e por que Emília os compara a camaleões?

      A função do Verbo é indicar o que os Substantivos fazem. Emília os compara a camaleões porque a maior parte dos Verbos assume sessenta e oito formas diferentes, enquanto Nomes e Adjetivos só mudam seis vezes.

03 – O que é o "Infinito" de um Verbo, e como ele é usado para separar os Verbos nos acampamentos de Conjugação?

      O Infinito é uma das sessenta e oito formas diferentes dos Verbos e a que dá nome a toda a tribo. As conjugações são separadas pela terminação do Infinito:

      Primeira Conjugação: termina em Ar.

      Segunda Conjugação: termina em Er.

      Terceira Conjugação: termina em Ir.

04 – Qual é a história do Verbo Pôr, e por que ele é classificado como "Verbo ANÔMALO" da Segunda Conjugação?

      Pôr pertencia originalmente à Segunda Conjugação e se chamava Poer. Com o tempo, o E apodreceu e caiu, sobrando apenas Pôr. Os gramáticos o trouxeram para um anexo da Segunda Conjugação e o chamaram de Anômalo porque ele não segue a forma normal da conjugação (terminada em Er).

05 – Quem é o verdadeiro "dono da língua" que faz e desfaz as palavras, e qual é o papel dos gramáticos, segundo o texto?

      O verdadeiro dono da língua é o Povo. Os gramáticos, apesar de toda a sua importância, não podem alterar as palavras; eles apenas as estudam, classificam e dão nomes ("grilos" da língua).

06 – Como o batalhão do Verbo Ter se distribui na parada (desfile)?

      O batalhão se distribui em:

      Pessoas (sessenta e oito praças ou soldados).

      Modos (companhias).

      Tempos (pelotões).

07 – Qual é a regra para o movimento dos Verbos no desfile, e qual o nome dado ao Pronome que eles levam consigo?

      Os Verbos não sabem andar sós; eles vivem ligados a alguém ou a alguma coisa, que é o SUJEITO. Quando o Sujeito não está presente, eles carregam consigo um Pronome no bolso.

08 – Explique a diferença entre os três Modos principais de um Verbo, segundo Quindim.

      MODO INDICATIVO: Exprime o que é, ou a realidade do momento (Ex: Tenho).

      MODO IMPERATIVO: Exprime ordem ou ditado (Ex: Tenha juízo!).

      MODO SUBJUNTIVO: Indica alguma coisa possível (Ex: Se eu tivesse...).

09 – O que são Verbos Regulares e Irregulares, e quais são os quatro Verbos Auxiliares mencionados?

      Verbos REGULARES: Os "bem-comportados", que seguem as regras (o Paradigma) muito direitinhos.

      Verbos IRREGULARES: Os rebeldes, que não se conformam com a disciplina (Ex: Ter).

      Os quatro Verbos AUXILIARES (que ajudam outros verbos) são: Ter, Ser, Estar e Haver.

10 – Qual é a diferença entre Verbos Transitivos e Intransitivos, e qual o questionamento de Emília sobre o Verbo Intransitivo Morrer?

      Verbos TRANSITIVOS: Exigem um COMPLEMENTO (Objeto Direto ou Indireto) para que a frase fique completa (Ex: Queimar — exige saber o que queimou).

      Verbos INTRANSITIVOS: Dispensam o Complemento, pois a frase está perfeita por si só (Ex: Morrer).

      Emília, sarcasticamente, pergunta sobre o Verbo Morrer: "Pergunto de que morreu, e quem o matou e onde jogaram o cadáver", mostrando que, para ela, mesmo os Intransitivos geram perguntas.

 

 

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

CONTO: O JARDINEIRO TIMÓTEO - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: O jardineiro Timóteo

            Monteiro Lobato

        O casarão da fazenda era ao jeito das velhas moradias: – frente com varanda, uma ala e pátio interno. Neste ficava o jardim, também à moda antiga, cheio de plantas antigas cujas flores punham no ar um saudoso perfume d’antanho. Quarenta anos havia que lhe zelava dos canteiros o bom Timóteo, um preto branco por dentro. Timóteo o plantou quando a fazenda se abria e a casa inda cheirava a reboco fresco e tintas d’óleo recentes, e desd’aí – lá se iam quarenta anos – ninguém mais teve licença de pôr a mão em “seu jardim”.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicmHmimWJZkASkPJAri-tOPB4KQan5cBpzcp1GCOvrPgXavFTAeFTxGX6ajt7yj18bypuEJcrtO3sCfUqCYqiP1mHlnTI3r_pcgsCz6lGSI1-ARotlQv01ibEmAfMNxdv6F7v1De8G_HPR3W0YU5JEHzsG6Msme6mbLZi6T5ENojAfpXEnai12KdAkI4s/s1600/JARDIM.jpg


        Verdadeiro poeta, o bom Timóteo.

        Não desses que fazem versos, mas desses que sentem a poesia sutil das coisas. Compusera, sem o saber, um maravilhoso poema onde cada plantinha era um verso que só ele conhecia, verso vivo, risonho ao reflorir anual da primavera, desmedrado e sofredor quando junho sibilava no ar os látegos do frio.

        O jardim tornara-se a memória viva da casa. Tudo nele correspondia a uma significação familiar de suave encanto, e assim foi desde o começo, ao riscarem-se os canteiros na terra virgem ainda recendente à escavação.

        O canteiro central consagrava-o Timóteo ao “Sinhô-velho”, tronco da estirpe e generoso amigo que lhe dera carta d’alforria muito antes da Lei Áurea. Nasceu faceiro e bonito, cercado de tijolos novos vindos do forno para ali ainda quentes, e embutidos no chão como rude cíngulo de coral; hoje, semidesfeitos pela usura do tempo e tão tenros que a unha os penetra, esses tijolos esverdecem nos musgos da velhice.

        Veludo de muro velho, é como chama Timóteo a essa muscínea invasora, filha da sombra e da umidade. E é bem isso, porque o musgo foge sempre aos muros secos, vidrentos, esfogueados de sol, para estender devagarinho o seu veludo prenunciador de tapera sobre os muros alquebrados, de emboço já carcomido e todo aberto em fendas.

         Bem no centro erguia-se um nodoso pé de jasmim-do-cabo, de galhos negros e copa dominante, ao qual o zeloso guardião nunca permitiu que outra planta sobrexcedesse em altura. Simbolizava o homem que o havia comprado por dois contos de réis, dum importador de escravos de Angola.

        – Tenha paciência, minha negra! – conversa ele com as roseiras de setembro, teimosas em espichar para o céu brotos audazes. Tenha paciência, que aqui ninguém olha de cima para o Sinhô-velho.

        E sua tesoura afiada punha abaixo, sem dó, todos os rebentos temerários.

        Cercando o jasmineiro havia uma coroa de periquitos, e outra menor cravinas.

        Mais nada.

        – Ele era um homem simples, pouco amigo de complicações. Que fique ali sozinho com o periquito e as irmãzinhas do cravo.

        Dos outros canteiros dois eram em forma de coração.

        – Este é o de Sinhazinha; e como ela um dia há de casar, fica a par dele o canteiro do “Sinhô-moço”.

        O canteiro de Sinhazinha era de todos o mais alegre, dando bem a imagem de um coração de mulher rico de todos as flores do sentimento. Sempre risonho, tinha a propriedade de prender os olhos de quantos penetravam no jardim. Tal qual a moça, que desde menina se habituara a monopolizar os carinhos da família e a dedicação dos escravos, chegando esta a ponto de, ao sobrevir a Lei Áurea, nenhum ter ânimo de afastar-se da fazenda. Emancipação? Loucura! Quem, uma vez cativo de Sinhazinha, podia jamais romper as algemas da doce escravidão?

        Assim ela na família, assim o seu canteiro entre os demais. Livro aberto, símbolo vivo, crônica vegetal, dizia pela boca das flores toda a sua vidinha de moça. O pé de flor-de-noiva, primeira “planta séria” ali brotada, marcou o dia em que foi pedida em casamento. Até então só vicejavam neles flores alegres de criança: – esporinhas, bocas-de-leão, “borboletas”, ou flores amáveis da adolescência – amores-perfeitos, damas-entre-verdes, beijos-de-frade, escovinhas, miosótis.

        Quando lhe nasceu, entre dores, o primeiro filho, plantou Timóteo os primeiros tufos de violeta.

        – Começa a sofrer…

        E no dia em que lhe morreu esse malogrado botãozinho de carne rósea, o jardineiro, em lágrimas, fincou na terra os primeiros goivos e as primeiras saudades. E fez ainda outras substituições: as alegres damas-entre-verdes cederam o lugar aos suspiros roxos, e a sempre-viva foi para o canto onde viçavam as ridentes bocas-de-leão.

        Já o canteiro de Sinhô-moço revelava intenções simbólicas de energia. Cravos vermelhos em quantidade, roseiras fortes, ouriçadas de espinhos; palmas de Santa Rita, de folhas laminadas; junquilhos nervosos.

        E tudo mais assim.

        Timóteo compunha os anais vivos da família, anotando nos canteiros, um por um, todos os fatos dalgumas significações. Depois, exagerando, fez do jardim um canhenho de notas, o verdadeiro diário da fazenda. Registrava tudo. Incidentes corriqueiros, pequenas rusgas de cozinha, um lembrete azedo dos patrões, um namoro de mucama, um hóspede, uma geada mais forte, um cavalo de estimações que morria – tudo memorava ele, com hieróglifos vegetais, em seu jardim maravilhoso.

        A hospedagem de certa família do Rio – pai, mãe e três sapequíssimas filhas – lá ficou assinalada por cinco pés de ora-pro-nóbis. E a venda do pampa calçudo, o melhor cavalo das redondezas, teve a mudança de dono marcada pela poda de um galho do jasmineiro.

        Além desta comemoração anedótica, o jardim consagrava uma planta a subalterno ou animal doméstico. Havia a roseira-chá da mucama de Sinhazinha; o sangue-de-adão do Tibúrcio; a rosa-maxixe da mulatinha Cesária, sirigaita enredeira, de cara fuxicada como essa flor. O Vinagre, o Meteoro, a Manjerona, a Teteia, todos os cães que na fazenda nasceram e morreram, ali estavam lembrados pelo seu pezinho de flor, um resedá, um tufo de violetas, uma touça de perpétuas. O cão mais inteligente da casa, Otelo, morto hidrófobo, teve as honras duma sempre-viva rajada.

        – Quem há de esquecer um bico daqueles, que até parecia gente?

        Também os gatos tinham memória. Lá estava a cinerária da gata branca morta nos dentes do Vinagre, e o pé de alecrim relembrativo do velho gato Romão.

        Ninguém, a não ser Timóteo, colhia flores naquele jardim. Sinhazinha o tolerava desde o dia em que ele explicou:

        – Não sabem, Sinhazinha! Vão lá e atrapalham tudo. Ninguém sabe apanhar flor…

        Era verdade. Só Timóteo sabia escolhê-las com intenção e sempre de acordo com o destino. Se as queriam para florir a mesa em dia de anos da moça, Timóteo combinava os buquês como estrofes vivas. Colhia-as resmungando:

        – Perpétua? Não. Você não vai pra mesa hoje. É festa alegra. Nem você, dona violetinha!… Rosa-maxixe? Ah! Ah! Tinha graça a Cesária em festa de branco!…

        E sua tesoura ia cortando os caules com ciência de mestre. Às vezes parava, a filosofar:

        – Ninguém se lembra hoje do anjinho… Pra que, então, goivo nos vasos? Quieto fique aqui o senhor goivo, que não é flor de vida, é flor de cemitério…

        E sua linguagem de flores? Suas ironias, nunca percebidas de ninguém? Seus louvores, de ninguém suspeitados? Quantas vezes não depôs na mesa, sobre um prato, um aviso a um hóspede, um lembrete à patroa, uma censura ao senhor, composto sob forma dum ramalhete? Ignorantes da língua do jardim, riam-se eles da maluquice do Timóteo, incapazes de lhe alcançar o fino das intenções.

        Timóteo era feliz. Raras criaturas realizam na vida mais formoso delírio de poeta. Sem família, criara uma família de flores; pobre, vivia ao pé de um tesouro.

        Era feliz, sim. Trabalhava por amor, conversando com a terra e as plantas – embora a copa e a cozinha implicassem com aquilo.

        – Que tanto resmunga o Timóteo! Fica ali mamparreando horas, a cochichar, a rir, como se estivesse no meio duma criançada!…

        É que na sua imaginação as flores se transfiguravam em seres vivos. Tinham cara, olhos, ouvidos… O jasmim-do-cabo, pois não é que lhe dava a benção todas as manhãs? Mal Timóteo aparecia, murmurando “A benção, Sinhô”, e já o velho, encarnado na planta, respondia com voz alegre: “Deus te abençoe, Timóteo”.

        Contar isso aos outros? Nunca! “Está louco”, haviam de dizer. Mas bem que as plantinhas falavam…

        – E como não hão de falar, se tudo é criatura de Deus, hom’essa!…

        Também dialogava com elas.

        – Contentinha, hein? Boa chuva a de ontem, não?

        – …

        – Sim, lá isso é verdade. As chuvas miúdas são mais criadeiras, mas você bem sabe que não é tempo. E o grilo? Voltou? Voltou, sim, o ladrão… E aqui roeu mais esta folhinha… Mas deixe estar, que eu curo ele!

        E punha-se a procurar o grilo. Achava-o.

        – Seu malfeitor!… Quero ver se continua agora a judiar das minhas flores.

        Matava-o, enterrava-o. “Vira esterco, diabinho!”

        Pelo tempo da seca era um regalo ver Timóteo a chuviscar amorosamente sobre as flores com o seu velho regador. – O sol seca a terra? Bobice!… Como se o Timóteo não estivesse aqui de chovedor na mão.

        – Chega também, ué! Então quer sozinho um regador inteiro? Boa moda! Não vê que as esporinhas estão com a língua de fora?

        – E esta boca-de-leão, ah! ah! está mesmo com uma boca de cachorro que correu veado! Tome lá, beba, beba!

        – E você também, seu rosedá, tome lá seu banho pra depois, namorar aquela dona hortênsia, moça bonita do “zóio” azul…

        E lá ia…

        Plantas novas que abrolhavam o primeiro botão punham alvoroço de noivo no peito do poeta, que falava do acontecimento na copa provocando as risadinhas impertinentes da Cesária.

        – Diabo do negro velho, cada vez caducando mais! Conversa com flor como se fosse gente.

        Só a moça, com seu fino instinto de mulher, lhe compreendia as delicadezas do coração.

        – Está aqui Sinhá, a primeira rainha margarida deste ano!

        Ela fingia-se extasiada e punha a flor no corpete.

        – Que beleza!

        E Timóteo ria-se, feliz, feliz…

        Certa vez falou-se na reforma do jardim.

        – Precisamos mudar isto – lembrou-se o moço, de volta dum passeio a São Paulo. – Há tantas flores modernas, linda, enormes, e nós toda a vida com estas cinerárias, estas esporinhas, estas flores caipiras… Vi lá crisandálias magníficas, crisântemos deste tamanho e uma rosa nova, branca, tão grande que até parece flor artificial.

        Quando soube da conversa, Timóteo sentiu gelo no coração. Foi agarrar-se com a moça. Ele também conhecia essas flores de fora, vira crisântemos na casa do Coronel Barroso, e as tais dálias mestiças no peito duma faceira, no leilão do Espírito Santo.

        – Mas aquilo nem é flor, Sinhá! Coisas da estranja que o Canhoto inventa para perder as criaturas de Deus. Eles lá que plantem. Nós aqui devemos zelar das plantas de família. Aquela dália rajada, está vendo? É singela, não tem o crespo das dobradas; mas quem troca uma menina de sainha de chita cor-de-rosa por uma semostradeira da cidade, de muita seda no corpo, mas sem fé no coração? De manhã “fica assim” de abelhas e cuitelos em volta delas!… E eles sabem, eles não ignoram quem merece. Se as das cidades fossem mais de estimação, por que é que esses bichinhos de Deus ficam aqui e não vão pra lá? Não, Sinhá! É preciso tirar essa ideia da cabeça de Sinhô-moço. Ele é criança ainda, não sabe a vida. É preciso respeitar as coisas de dantes…

        E o jardim ficou.

        Mas um dia… Ah! Bem sentira-se Timóteo tomado de aversão pela família dos ora-pro-nóbis! Pressentimento puro… O ora-pro-nóbis pai voltou e esteve ali uma semana em conciliábulo com o moço. Ao fim deste tempo, explodiu como bomba a grande notícia: estava negociada a fazenda, devendo a escritura passar-se dentro de poucos dias.

        Timóteo recebeu a nova como quem recebe uma sentença de morte. Na sua idade, tal mudança lhe equivalia a um fim de tudo. Correu a agarrar-se à moça, mas desta vez nada puderam contra as armas do dinheiro os seus pobres argumentos de poeta.

        Vendeu-se a fazenda. E certa manhã viu Timóteo arrumarem-se no trole os antigos patrões, as mucamas, tudo o que constituía a alma do velho patrimônio.

        – Adeus, Timóteo! – disseram alegremente os senhores-moços, acomodando-se no veículo.

        – Adeus! Adeus!…

        E lá partiu o trole, a galope… Dobrou a curva da estrada… Sumiu-se para sempre…

        Pela primeira vez na vida Timóteo esqueceu de regar o jardim. Quedou-se plantando a um canto, a esmoer o dia inteiro o mesmo pensamento doloroso:

        – Branco não tem coração…

        Os novos proprietários eram gente da moda, amigos do luxo e das novidades. Entraram na casa com franzimentos de nariz para tudo.

        – Velharias, velharias…

        E tudo reformaram. Em vez da austera mobília de cabiúna, adotaram móveis pechisbeques, com veludinhos e friso. Determinaram o empapelamento das salas, a abertura de um hal l, mil coisas esquisitas…

        Diante do jardim, abriram-se em gargalhadas. – É incrível! Um jardim destes, cheirando a Tomé de Sousa, em pleno século das crisandálias!

        E correram-no todo, a rir, como perfeitos malucos.

        – Olhe, Ivete, as esporinhas! É inconcebível que inda haja esporinhas no mundo!

        – E periquito, Odete! Pe-ri-qui-to!… – disse uma das moças, torcendo-se em gargalhadas.

        Timóteo ouvia aquilo com mil mortes n’alma. Não restava dúvida, era o fim de tudo, como pressentira: aqueles bugres da cidade arrasariam a casa, o jardim e o mais que lembrasse o tempo antigo. Queriam só o moderno.

        E o jardim foi condenado. Mandariam vir o Ambrogi para traçar um plano novo, de acordo com a arte moderníssima dos jardins ingleses. Reformariam as flores todas, plantando as últimas criações da floricultura alemã. Ficou decidido assim.

        – E para não perder tempo, enquanto o Ambrogi não chega ponho aquele macaco e me arrasar isto – disse o homem apontando para Timóteo.

        – Ó tição, vem cá!

        Timóteo aproximou-se com ar apatetado.

        – Olha, ficas encarregado de limpar de limpar este mato e deixar a terra nuazinha. Quero fazer aqui um lindo jardim. Arrasa-me isto bem arrasadinho, entendes?

        Timóteo, trêmulo, mal pôde engrolar uma palavra:

        – Eu?

        – Sim, tu! Por que não?

        O velho jardineiro, atarantado e fora de si, repetiu a pergunta:

        – Eu? Eu, arrasar o jardim?

        O fazendeiro encarou-o, espantado da sua audácia, sem nada compreender daquela resistência.

        – Eu? Pois me acha com cara de criminoso?

        E, não podendo mais conter-se, explodiu num assomo estupendo de cólera – o primeiro e o único de sua vida.

        – Eu vou mas é embora daqui, morrer lá na porteira como um cachorro fiel. Mas, olhe, moço, que hei de rogar tanta praga que isto há de virar um tapera de lacraias! A geada há de torrar o café. A peste há de levar até as vacas de leite! Não há de ficar aqui nenhuma galinha, nem um pé de vassoura! E a família amaldiçoada, coberta de lepra, há de comer na gamela com os cachorros lazarentos!… Deixa estar, gente amaldiçoada! Não se assassina assim uma coisa que dinheiro nenhum paga. Não se mata assim um pobre negro velho que tem dentro do peito uma coisa que lá na cidade ninguém sabe o que é. Deixa estar, branco de má casta! Deixa estar, caninana! Deixa estar!…

        E fazendo com a mão espalmada o gesto fatídico, saiu às arrecuas, repetindo cem vezes a mesma ameaça:

        – Deixa estar! Deixa estar!

        E longe, na porteira, ainda espalmava a mão para a fazenda, num gesto mudo:

        – Deixa estar!

        Anoitecia. Os curiangos andavam a espacejar silenciosamente voos de sombra pelas estradas desertas. O céu era todo um recamo fulgurante de estrelas. Os sapos coaxavam nos brejos e vaga-lumes silenciosos piscavam piques de luz no sombrio das capoeiras.

        Tudo adormecera na terra, em breve pausa de vida para o ressurgir do dia seguinte.

        Só não ressurgirá Timóteo. Lá agoniza ao pé da porteira. Lá morre.

        E lá encontrará a manhã enrijecido pelo relento, de borco na grama orvalhada, com a mão estendida para a fazenda num derradeiro gesto de ameaça:

        – Deixa estar!…

Monteiro Lobato.

Entendendo o conto:

01 – Quem é Timóteo e qual é a relação dele com o jardim da fazenda?

      Timóteo é um jardineiro que cuida do jardim da fazenda há quarenta anos. Ele tem uma conexão profunda com o jardim, tratando-o como um poema vivo, onde cada planta tem um significado especial.

02 – Qual é a importância do jardim na história?

      O jardim é uma representação viva da história da família e da fazenda. Cada planta e arranjo floral têm significados ligados aos acontecimentos e às pessoas que passaram pela fazenda.

03 – Por que Timóteo se recusa a mudar ou modernizar o jardim?

      Timóteo se opõe à modernização do jardim porque ele vê nas plantas e na disposição atual um registro sentimental e histórico da família. Ele acredita na importância de preservar as tradições e os significados das plantas antigas.

04 – Qual é a reação dos novos proprietários da fazenda em relação ao jardim?

      Os novos proprietários consideram o jardim antiquado e caipira, ridicularizando as plantas e desejando modernizá-lo com espécies exóticas e atuais.

05 – Como Timóteo reage diante da possibilidade de destruição do jardim?

      Timóteo fica revoltado e expressa sua fúria, amaldiçoando a família e a fazenda. Ele se recusa a ser parte da destruição do jardim e parte, fazendo um gesto de maldição em direção à propriedade.

06 – O que as plantas e o jardim representam para Timóteo?

      As plantas e o jardim são mais do que apenas vegetação para Timóteo. Eles são como uma família para ele, representando suas memórias, emoções e uma conexão profunda com a terra.

07 – Qual é a visão dos novos proprietários sobre as plantas tradicionais do jardim?

      Os novos proprietários veem as plantas tradicionais como antiquadas e desprezíveis, considerando-as inadequadas para um jardim moderno.

08 – Qual é a reação de Timóteo diante da ordem de destruir o jardim?

      Timóteo se recusa categoricamente a destruir o jardim e lança maldições à família e à fazenda, expressando seu desgosto e revolta diante da situação.

09 – Por que Timóteo se sente tão ligado ao jardim e às plantas?

      O jardim e suas plantas são símbolos das memórias, sentimentos e eventos importantes da vida de Timóteo. Ele se conecta emocionalmente a eles, vendo cada planta como um ser vivo e tendo um profundo respeito pela história que representam.

10 – Como termina a história de Timóteo e o destino do jardim?

      Timóteo, devastado pela destruição iminente do jardim, parte da fazenda e morre próximo à porteira, expressando sua raiva e desgosto pela situação. O destino final do jardim não é explicitamente mencionado, mas a história sugere que ele enfrentará mudanças e possíveis transformações irreparáveis.