domingo, 26 de novembro de 2023

CONTO: À FLOR DA PELE - LUIZ RUFFATO - COM GABARITO

 Conto: À FLOR DA PELE

            Luiz Ruffato

        Há, ainda hoje, em certos círculos intelectuais, quem defenda a existência de uma “democracia racial” no Brasil, tese nascida na década de 1930 e rapidamente assimilada como ideologia nacional pela nossa tradição de governos autoritários. Essa perspectiva — que relativiza a tragédia de mais de três séculos de escravidão — sempre impediu uma discussão séria sobre a questão do preconceito de cor em nosso país. Basta observar que, mesmo a literatura, arte que busca transcender a hipocrisia, poucas vezes ousou enfrentar o tema e, quando o fez, deparou-se com a incompreensão e/ou desprezo da crítica.

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    O pequeno número de autores afrodescendentes inscritos no cânone literário brasileiro — Machado de Assis (1839-1908), Cruz e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1881-1922) — já é uma clara evidência do lugar destinado ao negro em nossa sociedade. Sem acesso à educação e acantonados no limiar da miséria, os afrodescendentes não se constituíram como cidadãos; impedidos de agir como sujeitos da própria história, sucumbiram, pela força da opressão, a meros coadjuvantes da construção de uma identidade nacional. Raros são, até pelo menos o último quartel do século XX, os romances ou contos protagonizados por personagens afrodescendentes.

        A uma mulher, Maria Firmina dos Reis (1825-1917), ela mesma mestiça, deve-se uma das primeiras representações do negro na prosa de ficção brasileira, no romance Úrsula, aparecido em 1859. Mas a Mãe Suzana, de Maria Firmina, digna depositária da cultura africana e do desejo de liberdade, é uma exceção no quadro do nosso romantismo. Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), como As vítimas-algozes, de 1869, apenas reforça o estereótipo do escravo como um ser despido de humanidade, receptáculo da maldade, da crueldade e da maledicência. E Bernardo Guimarães (1825-1884), embora sincero em sua adesão à causa antiescravagista, criou, em A escrava Isaura, de 1875, uma personagem que em tudo seguia o padrão de beleza das heroínas importadas da França.

        Aliás, é curioso que o tema da escravidão, que mobilizou grandes nomes da poesia romântica, não tenha tido o mesmo apelo junto aos ficcionistas. Além dos títulos citados, está presente apenas, salvo engano, em Motta Coqueiro ou A pena de morte (1887), de José do Patrocínio (1854-1905) — após a abolição, foram publicados A família Medeiros, de 1892, de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934); Rei Negro, de 1914, de Coelho Neto (1864- 1934), e a obra-prima A menina morta, de Cornélio Pena (1896-1958), lançado em 1954, todos tratando, de maneira direta ou indireta, do assunto.

        O caso de Machado de Assis parece hoje caminhar para um consenso. Durante muito tempo incompreendido, o autor carregou a pecha de se ter omitido da discussão sobre a situação do negro na sociedade, uma censura injusta àquele que buscava refletir sobre o homem em sua complexidade, independentemente da cor da pele. A sua obra, que acompanha os descaminhos sociopolíticos do Brasil por todo o Segundo Império, não teria como se furtar a refletir sobre a questão. Só que, avesso à superficialidade, é nas entrelinhas, no não-dito, que se realiza sua prospecção sobre os recônditos da alma humana. Prova disso, basta ler o conto “Pai contra mãe”, presente nesta coletânea.

        O período compreendido entre o final do século XIX e o começo do século XX é de renovado interesse pelo problema. Em 1881, Aluísio Azevedo (1857-1913) causou escândalo em sua cidade natal, São Luís (MA), com a publicação do romance O mulato, que tratava de um caso de preconceito racial (identifica-se, em geral, o personagem título com o poeta Gonçalves Dias). Azevedo voltaria ao tema em O cortiço, de 1890, que mostra como o português João Romão, para ascender socialmente, descarta-se de Bertoleza, após usá-la anos e anos como escrava e amante. Em 1895, Adolfo Caminha (1867-1897) publicou o corajoso O bom crioulo, que tem como protagonista um negro homossexual, uma ousadia que relegou o livro, até muito recentemente, ao limbo da história literária.

        No entanto, é com Lima Barreto que chegamos ao ápice da representação do negro na literatura brasileira. Comprometido com a causa afrodescendente, desde seus primeiros escritos assumiu sua condição de mestiço e de suburbano numa sociedade branca e elitista — e pagou caro por isso. Por conta de seu alcoolismo, não chegou a realizar totalmente a obra projetada. Mas deixou pelo menos dois grandes personagens, o Isaías Caminha, de Recordações do escrivão Isaías Caminha, de 1909, e a Clara dos Anjos, da novela do mesmo nome, publicada postumamente em 1948.

        Estranhamente, entretanto, em boa parte do século XX, esta preocupação estará ausente do horizonte dos escritores brasileiros. Exceção a ser destacada cabe a O moleque Ricardo, de 1935, e sua complementação, a primeira parte de Usina, de 1936, de José Lins do Rego (1901-1957). Intercalado ao chamado ciclo da cana-de-açúcar, destoa dos romances anteriores e posteriores pelo cenário (a ação decorre em Recife) e pelo tema (as agruras do proletariado urbano). Negro, sem perspectivas no engenho, Ricardo foge e vai trabalhar na capital pernambucana. Lá descobre o amor, a militância política e a tragédia. O livro termina com sua prisão na ilha de Fernando de Noronha, mas a história de Ricardo continua na primeira parte de Usina, que mostra o dia a dia do presídio e seu envolvimento afetivo com o cozinheiro, seu Manuel. No final, Ricardo volta para o engenho, derrotado.

        A segunda metade do século XX é dominada pelos negros e mulatas estereotipados de Jorge Amado (1912-2001), eclipsado momentaneamente apenas pelo fenômeno editorial que foi Quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). A partir da década de 1970, coincidindo com um certo renascimento da literatura brasileira e com o surgimento de movimentos de valorização da consciência negra, começam a surgir livros protagonizados por personagens afrodescendentes. Apenas a título de exemplo, podemos citar as coletâneas de contos O carro do êxito (1972), de Oswaldo de Camargo (1936), Um negro vai à forra (1977), de Edilberto Coutinho (1933-1995), Cauterizai o meu umbigo (1986), de Eustáquio José Rodrigues (1946) e Santugri (1988), de Muniz Sodré (1942); os romances Luanda, Beira, Bahia (1971), de Adonias Filho (1915-1990), Os tambores de São Luís (1975), de Josué Montello (1917-2006), Crônica dos indomáveis delírios (1991), de Joel Rufino dos Santos (1941); e a trilogia A casa da água (1969), O rei de Keto (1980) e Trono de vidro (1987), de Antônio Olinto (1919). Mais recentemente, já no século XXI, apareceram, entre outros, Elegbara (2005), de Alberto Mussa (1961), Contos negreiros (2005), de Marcelino Freire (1967), contos e uns trocados (2006), de Nei Lopes (1942), e os romances A noite dos cristais (2001), de Luís Fulano de Tal (1959) e Um defeito de cor (2006), de Ana Maria Gonçalves (1970).

        Necessário ressaltar, finalmente, a importantíssima contribuição do movimento Quilombo hoje, fundado em 1980 por Oswaldo de Camargo, Paulo Colina (1950-1999), Cuti (1951) e Abelardo Rodrigues (1952), que busca incentivar a reflexão e a produção de uma literatura comprometida com a valorização da cultura afro-brasileira. Responsável pela publicação anual dos Cadernos Negros, que reúne contos e poemas de afrodescendentes, revelou inúmeros novos autores, alguns deles presentes nesta antologia.

Luiz Ruffato.

Entendendo o conto:

01 – Quem são alguns dos autores afrodescendentes mencionados no texto e quais são suas obras mais significativas?

      Alguns autores mencionados são Lima Barreto, com obras como "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" e "Clara dos Anjos", e Carolina Maria de Jesus, autora de "Quarto de Despejo".

02 – Como o texto descreve a abordagem da literatura brasileira em relação à questão do preconceito racial ao longo do tempo?

      O texto sugere que a literatura brasileira inicialmente evitou ou representou de forma estereotipada personagens afrodescendentes, mas mais tarde, especialmente a partir do final do século XX, houve um aumento na representação e reflexão sobre essa questão.

03 – Quais são algumas das obras literárias específicas mencionadas que abordam a questão da escravidão e do preconceito racial no Brasil?

      "O mulato" de Aluísio Azevedo, "O bom crioulo" de Adolfo Caminha e "Recordações do Escrivão Isaías Caminha" de Lima Barreto são algumas das obras citadas.

04 – Como o texto caracteriza a postura de Machado de Assis em relação à discussão sobre a situação do negro na sociedade?

      O texto sugere que Machado de Assis foi mal compreendido por muito tempo, sendo acusado de omitir a discussão sobre a situação do negro, mas, na verdade, ele refletia sobre a complexidade humana nas entrelinhas de suas obras.

05 – Quais são as obras literárias mais recentes mencionadas no texto que trazem personagens afrodescendentes como protagonistas?

      "Elegbara" de Alberto Mussa, "Um defeito de cor" de Ana Maria Gonçalves e "Contos negreiros" de Marcelino Freire são alguns exemplos citados.

06 – Quais foram os autores e obras que contribuíram para a representação do negro na literatura brasileira na segunda metade do século XX?

      Autores como Jorge Amado, Carolina Maria de Jesus e movimentos como o Quilombo hoje foram destacados por sua contribuição nesse período.

07 – Quais foram os motivos pelos quais Lima Barreto foi considerado o ápice da representação do negro na literatura brasileira pelo texto?

      O texto sugere que Lima Barreto assumiu sua condição de mestiço e suburbano em uma sociedade elitista e branca, refletindo isso em personagens como Isaías Caminha e Clara dos Anjos.

08 – Como o texto descreve a evolução da representação de personagens afrodescendentes na literatura brasileira ao longo dos séculos?

      Começando com poucas representações e estereótipos, a representação evoluiu gradualmente para incluir personagens mais complexos e historicamente relevantes.

09 – Qual é o papel do movimento Quilombo hoje na literatura afro-brasileira?

      O movimento Quilombo hoje busca incentivar a reflexão e produção de uma literatura comprometida com a valorização da cultura afro-brasileira, revelando novos autores por meio dos Cadernos Negros.

10 – Como o texto caracteriza o período entre o final do século XIX e o início do século XX em relação ao interesse pela problemática racial na literatura brasileira?

      O texto sugere que foi um período de renovado interesse pelo problema racial, com autores como Aluísio Azevedo, Adolfo Caminha e Lima Barreto abordando o preconceito racial em suas obras.

 

CONTO: PEDRO BARQUEIRO - AFONSO ARINOS - COM GABARITO

 Conto: Pedro Barqueiro

           Afonso Arinos

        — Eu lhe conto — dizia-me o Flor, quase ao chegar à Cruz de Pedra. — Naquele tempo eu era franzinozinho, maneiro de corpo, ligeiro de braços e de pernas. Meu patrão era avalentoado, temido e tinha sempre em casa uns vinte capangas, rapaziada de ponta de dedo. Eu tinha uma meia-légua, trochada de aço, que era meu osso da correia.

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        E, consertando o corpo no lombilho, soltou as rédeas à mula ruana, que era boa estradeira. Inclinou-se para o lado, debruçando-se sobre a coxa, e apertou na unha polegar o fogo do cigarro, puxando uma baforada de fumo.

        — Estávamos, um dia, divertindo-nos com os ponteados do Adão, à viola — disse ele. — Eu estava recostado sobre os pelegos do lombilho, estendidos no chão. A rapaziada toda em roda. Pouco tínhamos que fazer e passava-se o tempo assim.

        Eis senão quando entra o patrão, com aqueles modos decididos, e, voltando-se para um moço que o acompanhava, disse: — "Para o Pedro Barqueiro bastam estes meninos!" — apontando-me e ao Pascoal com o indicador; não preciso bulir nos meus peitos largos. — "O Flor e o Pascoal dão-me conta do crioulo aqui, amarrado a sedenho".

        Para que mentir, patrãozinho? O coração me pulou cá dentro, e eu disse comigo — estou na unha! O Pascoal me olhou com o rabo dos olhos. Parece que o patrão queria experimentar. Éramos os mais novos dos camaradas, e nunca tínhamos servido senão no campo, juntando a tropa espalhada, pegando algum burro sumido. Eu tinha ouvido falar sempre no Pedro Barqueiro, que um dia aparecera na cidade sem se saber quem era, nem donde vinha. Cheguei uma vez a conhecê-lo e falamo-nos. Que boa peça, patrãozinho! Crioulo retinto, alto, troncudo, pouco falante e desempenado. Cada tronco de braço, que nem um pedaço de aroeira.

        Estou com ele diante dos olhos, com aquela roupa azuleja, tingido no Barro Preto; atravessado à cinta um ferro comprido, afiado, alumiando sempre, maior que um facão e menorzinho do que uma espada. Esse negro metia medo de se ver, mas era bonito. Olhava a gente assim com ar de soberbo, de cima para baixo. Parecia ter certeza de que, em chegando a encostar a mão num cabra, o cabra era defunto. Ninguém bulia com ele, mas ele não mexia com os outros. Vivia quieto, em seu canto. Um dia, pegaram a dizer que ele era negro fugido, escravo de um homem lá das bandas do Carinhanha. Chegou aos ouvidos do patrão esse boato. Para que chegou, meu Deus! O patrão não gostava de ver negro, nem mulato de proa. Queria que lhe tirasse o chapéu e lhe tomassem a benção.

        Daí, ainda contavam muita valentia do Barqueiro, nome que lhe puseram por ter vindo dos lados do rio São Francisco. Essas histórias esquentavam mais o patrão, que eu estava vendo de uma hora para outra estripado no meio da rua, porque era homem de chegar quando lhe fizessem alguma.

        Tanto eu como Pascoal tínhamos medo de que o patrão topasse Pedro Barqueiro nas ruas da cidade.

        Subiram de ponto esse receio e a ira do patrão, quando soube de uma passagem do Pedro, num batuque, em casa de Maria Nova, na rua da Abadia.

        Chegara uma precatória da Pedra-dos-Anjicos e o Juiz mandou prender a Pedro. Deram cerco à casa onde ele estava na noite do batuque. Ah! Meu patrãozinho! O crioulo mostrou aí que canela de onça não é assobio. Não é dizer que estivesse muito armado, nem por isso só tinha o tal ferro, alumiando sempre; e com esse ferro deu pancas. Quando cercaram a casinha e lhe deram voz de prisão, o negro fechou a cara e ficou feito um jacaré de papo amarelo. Deu frente à porta da rua e encostou-se a uma parede. Maria Nova estava perto e me disse que ele cochichou uma oração, apertando nos dedos um bentinho, que branquejava na pele negra de sua peitaria lustrosa.

        Chegaram a entrar na casa três homens da escolta, e todos três ficaram estendidos. Pedro tinha oração, e muito boa oração contra armas de fogo, porque José Pequeno, caboclinho atarracado, ao entrar, escancarou no negro o pinguelo de um clavinote e fez fogo. Pedro Barqueiro caminhou sobre ele na fumaça da pólvora e, quando clareou a sala, José Pequeno estava escornado no chão como um boi sangrando.

         Dois rapazinhos quiseram chegar ainda assim, mas Pedro Barqueiro descadeirou um e pôs as tripas de fora a outro, que escaparam, é verdade, mas ficaram lá no chão gemendo por muito tempo.

        Daí para cá, Pedro evitava andar pela cidade, onde só aparecia de longe e à noite. Mas todo o mundo tinha medo dele e vivia adulando-o.

        Um dia, como já lhe contei, apareceu lá em casa um moço pedindo auxílio a meu patrão para agarrar o negro. Era mesmo um escravo, o Barqueiro; mas há muitos anos vivia fugido. Já lhe disse que o patrão queria tirar o topete do valentão, e, para isso, escolheu pobre de mim e Pascoal.

        — Que dizes, Flor? — falou o patrão rindo-se.

        — Uai, meu branco, vossemecê mandando, o negro vem mesmo, e no sedenho.

        — Quero ver isso.

        — Vamos embora, Pascoal!

        Quando íamos a sair, o patrão bateu-me no ombro e, voltando-se para o moço, disse muito firme: — "Pode prevenir a escolta para vir buscar o Barqueiro aqui, de tarde. Hão de dar duzentos mil-réis a estes meninos".

        Desci ao quarto dos arreios, passei a mão na meia-légua e no facão e apertei a correia à cinta.

        Pascoal já estava na porta da rua, assobiando. Tinha por costume, nos momentos de aperto, assobiar uma trova, que diz assim:

               “Na mata de Josué

               Ouvi o mutum gemê;

               Ele geme assim:

               Ai-rê-uê, hum! Airê.”

        Quando Pascoal me viu, soltou uma risada.

        — Está doido, rapaz! — gritou-me.

        — Por quê?

        — Queres mesmo enfrentar o Pedro Barqueiro? Ele faz de nós paçoca. A coisa há de se fazer de outro modo.

        Pascoal tinha tento e eu sempre tive fé nele. Era um cabritozinho mitrado. Saía-lhe cada ideia... Mandou-me guardar a meia-légua e o facão. Depois, foi à venda, escolheu anzóis de pesca e veio para casa encastoá-los. Eu, nem bico! Ajudei a acabar o serviço, certo de que Pascoal tinha alguma na mente.

        — Deixa comigo, ajuntava ele.

        Isso ainda era cedo; o sol estava umas três braças de fora, no tempo dos dias grandes. Lá por casa madrugávamos sempre para ir ao pasto e trazer animais de trato.

        — Vamos fazer uma pescaria, disse-me o Pascoal. — Ali para os lados do Batista, há um poço, onde as curumatãs e os piaus são como formigas. O rancho do Pedro Barqueiro fica perto. Ele mora só e eu conheço bem o lugar. Pela astúcia havemos de prendê-lo. Quando eu gritar: "Segura, Flor!" — tu agarras o negro, mas segura rente!

        E fomos. Nessa hora me veio bastante vontade de fugir ao perigo, de ir passear, porque tinha como certo suceder-nos alguma. "Que é lá, Flor!" — disse de mim para mim. "Um homem é para outro". E, depois, o Pascoal não me deixava nas embiras. Quando descemos o Gorgulho e fomos virando para o lado do córrego, fiquei meio sorumbático. Nesse tempo eu andava arrastando asa à Emília, filha do José Carapina. Era uma roxa bonita deveras e não estava muito longe de me querer. Posso dizer mesmo que na véspera olhou muito para mim, ao passar com a saia de chita sarapintada de vermelho, umas chinelas novas e de cordovão amarelo. Ah! Que peitinho de jaó, patrãozinho! Empinado, redondo, macio como um couro de lontra. Com o devido respeito, patrãozinho, eu estava na peia, enrabichado e foi nesse mesmo dia que ela me deu esta cinta de lã, tecida por suas mãos, que guardo até hoje.

        Ai! Roxa da minha paixão — pensava eu — como hei de morrer assim fazendo cruz na boca? O diabo da ideia me atarantou pelo caminho e cheguei a dar tremenda topada numa pedra, no meio da estrada. Curvei-me sobre a perna, agarrei o pé com as mãos e estive dançando, sem querer, um pedacinho do tempo. Depois levantei. Pascoal sentara num barranco e encarava para mim, rindo. Levantei a cabeça e olhei para cima, assuntando. No céu galopavam umas nuvens escuras, a modo de um bando de queixadas rodando pelo campo. Um vento áspero passava, arrancando do jenipapeiro as frutas maduras, que esborrachavam no chão assim — prof! — espantando os juritis que nadavam esgaravatando a terra e comendo grãozinhos. Duas seriemas guinchavam, esgoelavam. Depois, vi que estavam brigando — me lembra como se fosse hoje — e uma avançada para outra dando pulinhos, sacudindo as asas, com o cocuruto arrepiado e os olhos em fogo. O coração pareceu dizer-me outra vez — "Olha, Flor, o que vais fazer". Nesse entretanto, o Pascoal, que me encarava sempre do ponto estava sentado, gritou-me: "Esqueceste a cabeça em algum lugar? Vamos embora, que já vai tardando".

        Fiquei desacochado, caí em mim e fui marchando disposto. Daí em diante, fui brincando com o Pascoal, que era muito divertido e tinha sempre um caso a contar. Chegando embaixo, arregaçamos as calças e descemos o córrego, cada um com o seu anzol na vara, ao ombro.

        Era preciso que ninguém desconfiasse do nosso conluio para prendermos o Pedro Barqueiro.

        Aí, quase que tínhamos esquecido o perigoso mandado, tão diferente andava a conversa com as caçoadas do Pascoal.

        Para entrar na história, patrãozinho, achamos Pedro Barqueiro no rancho, que só tinha três divisões: a sala, o quarto dele e a cozinha.

        Quando chegamos, Pedro estava no terreiro debulhando milho, que havia colhido em sua rocinha ali perto.

        — Vocês por aqui, meninos? Olhem! Vão ali naquele poço, para baixo da cocheira. Tem uma laje grande e de cima dela vocês podem fazer bichas com os piaus.

        — Louvado seja Cristo, meu tio! — havia dito o Pascoal, e nisto o imitei.

        — Se quiserem comer uma carne assada ao espeto, tirem um naco; está na fumaça, por cima do fogão, uma boa manta. Olhem a faca aí na sala, se vocês não têm algum caxirenguengue.

        Pascoal entrou, e viu recostado a um canto da parede o ferro alumiando. Pegou nele, saiu pela porta da cozinha e escondeu-o numa restinga, ao fundo. Depois, me assobiou, eu acudi e fui procurar a "lazarina" de Pedro — uma boa arma, de um só cano, é verdade, mas comedeira.

        — Há alguma jaó por aqui, tio Pedro? — perguntou Pascoal.

        — Nem uma, nem duas, um lote delas. Se você quer experimentar minha arma, vá lá dentro e tire-a. Não errando a pontaria, você traz agora mesmo uma jaó.

        — Quero matar um passarinho para fazer isca, meu tio.

        — Pois vá, menino.

        E Pascoal descarregou a arma.

        Pedro tinha se levantado e falava com Pascoal do vão da porta da entrada.

        Era hora.

        Pascoal me fez um sinalzinho, eu dei volta e entrei pela porta do fundo para agarrar o Barqueiro pelas costas. A combinação era essa. Enquanto Pascoal o foi entretendo, eu fui chegando soturno, quando ele gritou: — "Segura!" — eu pulei como uma onça sobre o negro desprevenido.

        Conheci o que era um homem, patrãozinho! Saltando-lhe nas costas, dei-lhe um abraço de tamanduá no pescoço. Mas o negro não pateou, e, mergulhando comigo para dentro da sala, gritou:

        — Nem dez de vocês, meninos! Ah! Se eu soubesse...

        Patrãozinho, eu sei dizer que o negro me sacudiu para cima como um touro bravo sacode uma garrocha. Mas eu via que, se o largasse, estava morto, e arrochei os braços.

        — Chega, Pascoal! — gritei.

        — Eu quero manobrar de fora. Ânimo! Segura bem que nós amarramos o negro.

        Que tirada de tempo! O negro, às vezes, abaixava a cabeça, dando de popa, e minhas pernas dançavam no ar, tocando quase o teto do rancho. Lutamos, lutamos até que Pascoal pôde meter um tolete de pau entre as canelas de Pedro, de modo que ele cambaleou, e caiu de bruços. Nós dois pulamos em riba dele. Eu, triunfante, gritava: "— Conheceu crioulo? Negro é homem?" Ele era teimoso, porque dizia ainda: "— Nem dez de vocês, meninos! Ah! Se eu soubesse..." Pascoal trazia à bandoleira um embornal para carregar peixe e veio dentro dele escondida uma corda de sedenho, comprida e forte. O Barqueiro estava no chão; e foi preciso ainda fazermos bonito para agarrá-lo.

        — Agora, puxe na frente, seu negro! — gritou-lhe o Pascoal.

        Havíamos juntado os braços dele nas costas e apertamos com vontade. Ficou completamente tolhido.

        Eu ia segurando a ponta do sedenho e levava o negro na frente. Mesmo assim, houve uma hora em que ele me deu um tombo, arrancando a correr. Por seguro, a corda estava-me enrolada na mão e eu não a larguei. Nesse instante Pascoal tinha corrido atrás dele e lhe descarregado na nuca um tremendo murro, que o fez bambear um pouco e me deu tempo de endurecer o corpo e segurar firme a corda.

        O Barqueiro, depois que saiu do rancho, não piou.

        Chegamos à casa de tarde e o negro ia no sedenho.

        — Eu não disse — gritava o patrão muito contente — que só bastavam esses dois meninos para o Barqueiro? Está aí o negro.

        E o povo corria para ver e a frente da casa do patrão estava estivada de gente.

        Recebemos os duzentos mil-réis.

        — Tinha me esquecido de contar-lhe que eu fizera uma promessa à Senhora da Abadia, de levar-lhe ao altar uma vela, se voltasse são e salvo. Cumpri a promessa no dia seguinte para a noite. Queria um pé para estar com a Emília.

        Comprei um trancelim de ouro para aquela roxa de meus pecados e um xale azul. Ela era esquiva. Fez muito momo nessa noite, e não quis dar uma boquinha, com o devido respeito ao patrãozinho.

        Saí da casa de José Mendes, onde dei a festa, quando os galos estavam amiudando.

        A estrela-d'alva, no céu escuro, parecia uma garça lavando-se na lagoa. O orvalho das vassouras me molhou as pernas e eu estremeci um bocadinho. Entrei num beco que ia sair na rua de Trás, onde eu então morava.

        Ia meio avexado e peguei a banzar. Emília! Emília do coração! Por que me amofinas com esse pouco caso? E desandei a cantar, bem chorada, esta cantiga:

               “Tá trepado no pau

               De cabeça para baixo,

               Com asas caídas

               Gavião de penacho!

 

               Todo o mundo tem seu bem,

               Só pobre de mim não tem!

               Ai! Gavião de penacho!”

        De repente, pulou um vulto diante de mim. Quem havia de ser, patrãozinho? Era o Pedro Barqueiro em carne e osso. Tinha, não sei como, desamarrado as cordas e escapado da escolta, em cujas mãos o patrão o havia entregado.

        O ladrão do negro tinha oração até contra sedenho!

        Sem me dar tempo de nada, o Barqueiro me agarrou pela gola e levantou-me no ar três vezes, de braço teso, e gritou:

        — Pede perdão, cabrito, desavergonhado, do que fizeste ontem, que te vou mandar para o inferno! Pede perdão, já!

        A gente precisa ter um bocado de sangue nas veias, patrãozinho, e um homem é um homem! Eu não lhe disse nem pau nem pedra. Vi que morria, criei ânimo e disse comigo que o negro não havia de pôr o pé no meu pescoço.

        Exigiu-me ele, ainda muitas vezes, que lhe pedisse perdão, mas eu não respondi. Então, ele foi-me levando nos braços até uma pontezinha que atravessava uma perambeira medonha. A boca do buraco estava escura como breu e parecia uma boca de sucuri querendo engolir-me. Suspendeu-me arriba do parapeito da ponte e balançou meu corpo no ar. Nessa hora, subiu-me um frio pelos pés e um como formigueiro me passou pela regueira das costas até a nunca; mas minha boca ficou fechada. Então, o Barqueiro, levantando-me de novo, me pousou no chão, onde eu bati firme.

        O dia estava querendo clarear. O negro olhou para mim muito tempo, depois disse:

        — Vai-te embora, cabritinho, tu és o único homem que tenho encontrado nesta vida!

        Eu olhei para ele, pasmado.

        Aquele pedaço de crioulo cresceu-me diante dos olhos e vi — não sei se era o dia que vinha raiando — mas eu vi uma luz estúrdia na cabeça de Pedro.

        Desempenado, robusto, grande, de braço estendido, me pareceu, mal comparando, o Arcanjo São Miguel expulsando o Maligno. Até claro ele ficou essa hora! Tirei o chapéu e fui andando de costas olhando sempre para ele.

        Veio-me uma coisa na garganta e penso que me ia faltando o ar.

        Insensivelmente, estendi a mão. As lágrimas me saltaram dos olhos, e foi chorando que eu disse:

        — Louvado seja Cristo, tio Pedro!

        Quando caí em mim, ele tinha desaparecido.

Escrito Iba Mendes às 20:08 

Entendendo o conto:

01 – Qual é o motivo principal que leva o patrão a querer capturar Pedro Barqueiro?

      O patrão quer capturar Pedro Barqueiro por conta de um mandado de prisão recebido pelas autoridades.

02 – Como Flor e Pascoal planejam capturar Pedro Barqueiro?

      Eles elaboram um plano para prender o Barqueiro enquanto estão pescando em um local próximo à casa dele, tentando pegá-lo de surpresa.

03 – Por que Pedro Barqueiro é tão temido na cidade?

      Ele é temido por sua reputação de valentia, histórias sobre suas habilidades e sua aparência imponente, além de rumores sobre ter escapado de ser capturado anteriormente.

04 – Qual é a reação de Pedro Barqueiro após ser capturado pelos dois rapazes?

      Inicialmente, ele se recusa a se submeter à captura, mas, depois de ser dominado, é levado até a casa do patrão.

05 – O que acontece após a captura de Pedro Barqueiro?

      Apesar de ter sido capturado, Pedro Barqueiro consegue escapar posteriormente e confronta Flor em uma ponte, mas acaba poupando sua vida.

06 – Qual é a atitude de Flor diante da ameaça de Pedro Barqueiro na ponte?

      Mesmo diante da ameaça de ser jogado na perambeira, Flor mantém a calma e se recusa a pedir perdão, enfrentando a situação com coragem.

07 – Como termina a interação entre Flor e Pedro Barqueiro?

      Após o confronto na ponte, Pedro Barqueiro poupa a vida de Flor e o deixa ir embora, reconhecendo sua coragem.

08 – O que marca o momento em que Pedro Barqueiro desaparece no final do conto?

      Ele desaparece de forma enigmática, deixando uma impressão impactante em Flor, que o vê como uma figura quase angelical, comparando-o ao Arcanjo São Miguel.

09 – Qual é o sentimento final de Flor em relação a Pedro Barqueiro?

      Flor, após o confronto, expressa uma mistura de admiração, respeito e emoção, demonstrando reverência e gratidão pelo gesto de Pedro Barqueiro ao poupá-lo.

 

 

CONTO: A COLCHA DE RETALHOS - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: A colcha de retalhos

            Monteiro Lobato

        — Upa!

        Cavalgo e parto.

        Por estes dias de março a natureza acorda tarde.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjygRnVZujSHX3sUi3LmEBPl3dPLcNGaYvsLFxMBEMpeHICqQJd-FfGS6I2sYX982PUAdNkkpogrCVB-q7XTfqvUP797C-vK-N9iFNwYULTivpFDxK3yj7_C_mW1UlJWoIUYtUkjjeDrv3z-nuw5I9TpKb8ZvFPL5yE_d50Ag2brb6WgYVaU4ynF74QVsU/s1600/COLCHA.jpg


  Passa as manhãs embrulhada num roupão de neblina e é com espreguiçamentos de mulher vadia que despe os véus da cerração para o banho de sol.

        A névoa esmaia o relevo da paisagem, desbota-lhe as cores. Tudo parece coado através dum cristal despolido.

        Vejo a orla de capim tufada como debrum pelo fio dos barrancos; vejo o roxo-terra da estrada esmaecer logo adiante; e nada mais vejo senão, a espaços, o vulto gotejante de alguns angiqueiros marginais.

        Agora, uma porteira.

        Ali, a encruzilhada do Labrego.

        Tomo à destra, em direitura ao sítio de José Alvorada. Este barba-rala mora-me a jeito de empreitar um roçado no capoeirão do Bilu, nata de terra que pelas bocas do caeté legítimo, da unha-de-vaca e da caquera está a pedir foice e covas de milho.

        Não é difícil a puxada: com cinquenta braças de carreador boto a roça no caminho.

        Três alqueires, só no bom. Talvez quatro. A noventa por um — nove vezes quatro, trinta e seis; trezentos e sessenta alqueires de oito mãos. Descontadas as bandeiras que o porco estraga e o que comem a paca e o rato…

        Será a filha de Alvorada?

        — Bom dia, menina! O pai está em casa?

        É a filha única. Pelo jeito não vai além de catorze anos. Que frescura! Lembra os pés de avenca viçados nas grotas noruegas.

        Mas arredia e ité como a fruta do gravatá. Olhem como se acanhou! De olhos baixos, finge arrumar a rodilha. Veio pegar água a este córrego e é milagre não se haver esgueirado por detrás daquela moita de taquaris, ao ver-me.

        — O pai está lá? — insisti.

        Respondeu um “está” enleado, sem erguer os olhos da rodilha.

        Como a vida no mato asselvaja estas veadinhas! Note-se que os Alvoradas não são caipiras. Quando comprou a situação dos Periquitos, o velho vinha da cidade; lembro-me até de que entrava em sua casa um jornal.

        Mas a vida lhes correu áspera na luta contra as terras ensapezadas e secas, que encurtam a renda por mais que dê de si o homem. Foram rareando as idas à cidade e ao cabo de todo se suprimiram. Depois que lhes nasceu a menina, rebento floral em anos outoniços, e que a geada queimou o café novo — uma tamina, três mil pés —, o velho, amuado, nunca mais espichou o nariz fora do sítio.

        Se o marido deu assim em urumbeva, a mulher, essa enraizou de peão para o resto da vida. Costumava dizer: mulher na roça vai à vila três vezes — uma a batizar, outra a casar, terceira a enterrar.
Com tais casmurrices na cabeça dos velhos, era natural que a pobrezinha da Pingo d’Água (tinha esse apelido Maria das Dores) se tolhesse na desenvoltura ao extremo de ganhar medo às gentes. Fora uma vez à vila com vinte dias, a batizar. E já lá ia nos catorze anos sem nunca mais ter-se arredado dali.

        Ler? Escrever? “Patacoadas, falta de serviço”, dizia a mãe. Que lhe valeu a ela ler e escrever que nem uma professora, se desde que casou nunca mais teve jeito de abrir um livro? Na roça, como na roça.

        Deixei a menina às voltas com a rodilha e embrenhei-me por um atalho conducente à morada.

        Que descalabro!…

        Da casa velha aluíra uma ala, e o restante, além da cumeeira selada, tinha o oitão fora do prumo.

        O velho pomar, roído de formiga, morrera de inanição; na ânsia de sobreviver, três ou quatro laranjeiras macilentas, furadas de broca e sopesando o polvo retrançado da erva-de-passarinho, ainda abrolhavam rebentos cheios de compridos acúleos. Fora disso, mamoeiros, a silvestre goiaba e araçás, promiscuamente com o mato invasor que só respeitava o terreirinho batido, fronteiro à casa. Tapera quase e, enluradas nela, o que é mais triste, almas humanas em tapera.

        Bati palmas.

        — Ó de casa!

        Apareceu a mulher.

        — Está seu Zé?

        — Inda agorinha saiu, mas não demora. Foi queimar um mel na maçaranduva do pasto. Apeie e entre.

        Amarrei o cavalo a um moirão de cerca e entrei.

         Acabadinha, a Sinh’Ana. Toda rugas na cara — e uma cor… Estranhei-lhe aquilo.

        — Doença! — gemeu. — Estou no fim. Estômago, fígado, uma dor aqui no peito que responde na cacunda. Casa velha, é o que é.

        — Metade é cisma — disse-lhe para consolo.

        — Eu é que sei! — retrucou-me suspirando.

        Entrementes, surgiu da cozinha uma velhota bem-apessoada, no cerne, rija e tesa, que saudou e:

        — Está espantado do jeito de Nhana? Esta gente de agora não presta para nada. Olhe, eu com setenta no lombo não me troco por ela. Criei minha neta e inda lavo, cozinho e coso. Admira-se? Coso, sim!…

        — Mecê é gabola porque nunca padeceu doença — nem dor de dente! Mas eu? Pobre de mim! Só admiro ainda estar fora da cova… Aí vem Zé.

        Chegava Alvorada. Ao ver-me abriu a cara.

        — Ora viva quem se lembra dos pobres! Não pego na sua mão porque estou assim… É só melado. Bonito, hein? Estava difícil, num oco muito alto e sem jeito. Mas sempre tirei. Não é jiti, não! É mel-de-pau.

        Depôs num mocho a cuia dos favos e se foi à janela, lavar as mãos à caneca d’água que a mulher despejava. Pôs os olhos no meu cavalo.

        — Hoje veio no picaço… Bom bicho! Eu sempre digo: animais aqui no redor, só este picaço e a ruana do Izé de Lima. O mais é eguada de moenda.

        Neste momento entrou a menina de pote à cabeça. Ao vê-la o pai apontou para a cuia de mel.

        — Está aí, filha, o doce da aposta. Perdi, paguei. Que aposta? Ah! ah! Brincadeira. A gente cá na roça, quando não tem serviço, com qualquer coisa se diverte. Vinha passando um bando de maritacas. Eu disse à toa: “São mais de dez!”. Pingo negou: “Não chega lá!”. Apostamos. Eram nove. Ela ganhou o doce. Doce da roça mel é. Esta songuinha só vendo; não é o que parece, não…

        A loquacidade daquele homem não desmedrara com o atraso da vida. Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade.
Expus-lhe o negócio. Alvorada enrugou a testa; refletiu um bocado, de queixo preso. Depois:

        — Eu hoje, franqueza, não valho mais nada. Desde que caí daquela amaldiçoada ponte do Labrego, fiquei assim como quebrado por dentro. Não escoro serviço, e para lidar com camaradas no eito não basta ter boca. Sem puxar a enxada de par com eles, a coisa não vai, não! Lembra-se da empreitada do ano retrasado? Pois saí perdendo. O tranca do João Mina me quebrou um machado e furtou uma foice. Com esses prejuízos, não livrei o jornal. Desde então fiz cruz em serviço alheio. Se ainda teimo neste sapezal amaldiçoado é por via da menina; senão, largava tudo e ia viver no mato, como bicho. É Pingo que inda me dá um pouco de coragem — concluiu com ternura.

        A velhinha sentara-se à luz da janela e, abrindo uma caixeta, pusera-se a coser, de óculos na ponta do nariz.

        Aproximei-me, admirativo.

        — Sim, senhora! Com setenta anos!

        Sorriu, lisonjeada.

        — É para ver. E isto aqui tem coisa. É uma colcha de retalhos que venho fazendo há catorze anos, desde que Pingo nasceu. Dos vestidinhos dela vou guardando cada retalho que sobeja e um dia os coso. Veja que galantaria de serviço…

        Estendeu-me ante os olhos um pano variegado, de quadrinhos maiores e menores, todos de chita, cada qual de um padrão.

        — Esta colcha é o meu presente de noivado. O último retalho há de ser do vestido de casamento, não é, Pingo?

        Pingo d’Água não respondeu. Metida na cozinha, percebi que nos espiava por uma fresta.

        Mais dois dedos de prosa com Alvorada, um cafezinho ralo — escolha com rapadura — e:

        — Está bem — rematei, levantando-me do mocho de três pernas.

        — Como não pode ser, paciência. Apesar disso acho que deve pensar um bocado. Olhe que este ano se estão pagando os roçados a 80 mil-réis o alqueire. Dá para ganhar, não?

        — Que dá, sei que dá — mas também sei para quem dá. Um perrengue como eu não pensa mais nisso, não. Quando era gente, muitos peguei a 60 e não me arrependi. Mas hoje…

        — Nesse caso…


Transcorreram dois anos sem que eu tornasse aos Periquitos. Nesse intervalo Sinh’Ana faleceu. Era fatal a dor que respondia na cacunda. E não mais me aflorava à memória a imagem daqueles humildes urupês, quando me chegou aos ouvidos o zum-zum corrente no bairro, uma coisa apenas crível: o filho de um sitiante vizinho, rapaz de todo pancada, furtara Pingo d’Água aos Periquitos.

         — Como isso? Uma menina tão acanhada!…

        — É para ver! Desconfiem das sonsas… Fugiu, e lá rodou com ele para a cidade — não para casar, nem para enterrar. Foi ser “moça”, a pombinha…

        O incidente ficou a azoinar-me o bestunto. À noite perdi o sono, revivendo cenas da minha última visita ao sítio, e nasceu-me a ideia de lá tornar. Para? Confesso: mera curiosidade, para ouvir os comentários da triste velhinha. Que golpe! Desta feita ia-se-lhe a rijeza de cerne.

        Fui.

        Setembro entumecia gomos em cada arbusto. Nenhuma neblina. A paisagem desenhava-se nítida até aos cabeços dos morros distantes.

        Por amor à simetria, montava eu o mesmo picaço. Transpus a mesma porteira. Atalhei pelo mesmo trilho.

        No córrego vi, com os olhos da imaginação, o vulto da menina envergonhada com o pote em repouso na laje e toda às voltas com a rodilha. Mais uns passos e a tapera antolhou-se-me, deserta. As três árvores do pomar extinto eram já galhaça resseca e poenta. Só os mamoeiros subsistiam, mais crescidos, sempre apinhados de frutos. O resto piorara, descambando para o lúgubre. Ruíra o oitão e o terreirinho pintalgara-se de moitas de guanxuma, cordão-de-frade e joás.

        — Ó de casa! — gritei.

        Silêncio. Três vezes repeti o apelo. Por fim surgiu dos fundos uma sombra acurvada e trêmula.

        — Bom dia, nhá Joaquina. Está seu Zé?

        Não me reconheceu a velhinha. Zé fora à vila, vender a sitioca para mudar de terra.

        Fez-me entrar, logo que me dei a conhecer, pedindo escusas da má vista.

        — Tem coragem de estar aqui sozinha?


— Eu? Sozinha estou em toda parte. Morreu-me tudo, a filha, a neta… Sente-se — murmurou apontando para o mocho de dois anos atrás.

        Sentei-me, com um nó na garganta. Não sabia o que dizer. Por fim:

        — O que é a vida, nhá Joaquina! Parece que foi ontem que estive aqui. Apesar das doenças, iam vivendo felizes. Hoje…

        A velha limpou no canhão da manga uma lágrima.

        — Viver setenta e dois anos para acabar assim… Felizmente a morte não tarda. Já a sinto cá dentro.

        Confrangia-me o coração aquele ermo onde tudo era passado — a terra, as laranjeiras, a casa, as vidas —, salvo, trêmulo espectro sobrevivente como a alma da tapera, a triste velhinha encanecida, cujos olhos poucas lágrimas estilavam, tantas chorara.

        — Que mais agora? — murmurou pausadamente em voz de quem já não é deste mundo. — Até a “desgraça”, eu não queria morrer.

        Velha e inútil, inda gostava do mundo. Morreu-me a filha, mas restava a neta — que era duas vezes filha e o meu consolo.

        Desencaminharam a pobrezinha… Agora, que mais? Só peço a Deus que me retire, logo e logo.

        Relanceei um olhar pela sala vazia. A caixeta de costura inda estava sobre a arca no lugar de sempre. Meus olhos pousaram ali, marasmados.

        A velha adivinhou-me o pensamento e, levantando-se, tomou-a nas mãos mal firmes. Abriu-a. Tirou de dentro a colcha inacabada, contemplou-a longamente. Depois, com tremuras na voz:

        — Dezesseis anos — e não pude acabar a colcha… Ninguém imagina o que é para mim esta prenda. Cada retalho tem sua história e me lembra um vestidinho de Pingo d’Água. Aqui leio a vidinha dela desde que nasceu. “Este, olhe, foi da primeira camiseta que vestiu… Tão galantinha! Estou a vê-la no meu braço, tentando pegar os óculos com a mãozinha gorda…

        “Este azul, de listas, lembra um vestido que a madrinha lhe deu aos três anos. Ela já andava pela casa inteira armando reinações, perseguindo o Romão — que um dia, por sinal, lhe meteu as unhas no rostinho. Chamava-me ‘óó aquina’…

        “Este vermelho de rosinhas foi quando completou os cinco anos. Estava com ele por ocasião do tombo na pedra do córrego, donde lhe veio aquela marquinha no queixo, não reparou?

        “Este cá, de xadrezinho, foi pelos sete anos, e eu mesma o fiz, e o fiz de saia comprida e paletó de quartinho. Ficou tão engraçada, feita uma mulherzinha!

        “Pingo d’Água já sabia temperar um virado, quando usou este aqui, de argolinhas roxas em fundo branco. Digo isto porque foi com ele que entornou uma panela e queimou as mãos.

        “Este cor de batata foi quando tinha dez anos e caiu com sarampo, muito malzinha. Os dias e as noites que passei ao pé dela, a contar histórias! Como gostava da Gata Borralheira!…”

        A velha enxugou na colcha uma lágrima perdida e calou-se.

        — E este? — perguntei para avivá-la, apontando um retalho amarelo.

        Pausou um bocado a triste avó, em contemplação.

        Depois:

        — Este é novo. Já tinha quinze anos quando o vestiu pela primeira vez num mutirão do Labrego. Não gosto dele. Parece que a “desgraça” começa aqui. Ficou um vestido muito assentadinho no corpo, e galante, mas pelas minhas contas foi o culpado do Labreguinho engraçar-se da coitada. Hoje sei disso. Naquele tempo de nada suspeitava.

        — Este — disse-lhe eu, fingindo recordar-me — é o que ela vestia quando cá estive.

        — Engano seu. Era, quer ver qual? Era este de pintas vermelhas, repare bem.

        — É verdade, é verdade! — menti. — Agora me lembro, isso mesmo. E este último?

        Após uma pausa dorida, a pobre criatura oscilou a cabeça e balbuciou:

        — Este é o da “desgraça”. Foi o derradeiro que fiz. Com ele fugiu… e me matou.

        Calou-se, a lacrimejar, trêmula.

        Calei-me também, opresso dum infinito apertão de alma.

        Que quadro imensamente triste, aquele fim de vida machucado pela mocidade louca!…

        E ficamos ambos assim, imóveis, de olhos presos à colcha.

        Ela por fim quebrou o silêncio.

        — Ia ser o meu presente de noivado. Deus não quis. Será agora a minha mortalha. Já pedi que me enterrassem com ela.

        E guardou-a dobradinha na caixa, envolta num suspiro arrancado ao imo do coração.

        Um mês depois morria. Vim a saber que lhe não cumpriram a última vontade.

        Que importa ao mundo a vontade última duma pobre velhinha da roça?

        Pieguices…

Monteiro Lobato, no livro “Contos completos”. São Paulo: Biblioteca Azul, 2014.

Entendendo o conto:

01 – Quem é o protagonista principal deste conto?

      O protagonista principal é um narrador não especificado que visita repetidamente a família de José Alvorada, testemunhando a vida na roça ao longo do tempo.

02 – Como a paisagem é descrita no conto?

      A paisagem é descrita como coberta por neblina em certas manhãs de março, dando uma sensação de embrulho e cores desbotadas, obscurecendo os detalhes.

03 – Quais são as características da vida dos Alvoradas?

      Os Alvoradas são uma família que passou por dificuldades na roça, enfrentando problemas financeiros após perdas na colheita e isolamento do convívio da cidade.

04 – Qual é o elemento que a velha Joaquina guarda e por que é significativo para ela?

      Joaquina guarda uma colcha de retalhos feita com pedaços dos vestidos de sua neta, Pingo d'Água, ao longo dos anos. É significativa porque cada pedaço representa uma fase da vida de Pingo.

05 – O que acontece com Pingo d'Água ao longo da história?

      Pingo d'Água, uma menina tímida e reservada, é raptada por um rapaz da cidade, abandonando sua família e o ambiente rural para uma vida na cidade como "moça".

06 – Por que a última parte da colcha é descrita como o "vestido da desgraça"?

      O último retalho da colcha representa o vestido que Pingo d'Água usava quando fugiu com o rapaz da cidade, sendo o símbolo da desventura que se abateu sobre a família.

07 – O que acontece com a velha Joaquina no final do conto?

     Joaquina morre, pedindo para ser enterrada com a colcha de retalhos, mas seu último desejo não é cumprido.

08 – Como a narrativa trata os temas de perda, solidão e mudança ao longo do tempo?

      A história explora a perda gradual da família, da propriedade e da vida na roça, destacando a solidão e a mudança que acompanham essas perdas ao longo do tempo.

09 – Qual é o significado simbólico da colcha de retalhos na história?

      A colcha simboliza a vida de Pingo d'Água, mas também representa a história da família Alvorada, seus momentos felizes e tristes, além de ser um testemunho das mudanças e tragédias que enfrentaram.

10 – Qual é a mensagem central transmitida pelo conto "A colcha de retalhos"?

      A história transmite a ideia de que a vida é feita de fragmentos, momentos que se unem para formar uma narrativa, mas que podem ser marcados por tragédias imprevistas, e que mesmo os objetos mais simples podem carregar histórias profundamente significativas.