quarta-feira, 22 de novembro de 2023

CRÔNICA: TINTIM - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica:Tintim

               Luís Fernando Veríssimo

Durante alguns anos, o tintim me intrigou. Tintim por tintim: o que queria dizer aquilo? Imaginei que fosse alguma misteriosa medida de outros tempos que sobrevivera ao sistema métrico, como a braça, a légua, etc. Outro mistério era o triz. Qual a exata definição de um triz? É uma subdivisão de tempo ou de espaço. As coisas deixam de acontecer por um triz, por uma fração de segundo ou de milímetro. Mas que fração? O triz talvez correspondesse a meio tintim, ou o tintim a um décimo de triz. Tanto o tintim quanto o triz pertenceriam ao obscuro mundo das microcoisas. Há quem diga que não existe uma fração mínima de matéria, que tudo pode ser dividido e subdividido. Assim como existe o infinito para fora - isto e, o espaço sem fim, depois que o Universo acaba - existiria o infinito para dentro. A menor fração da menor partícula do último átomo ainda seria formada por dois trizes, e cada triz por dois tintins, e cada tintim por dois trizes, e assim por diante, até a loucura.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjvoRf6DriSsg3ulaG8f1aPPtyRHTBQ9ycFtz3t9MuawpCxbQVc8bMOd1HhNFuk3YBj8wsVxkU3z25BGumTEkafqXiVshMlWAhj5Y1-qoyfgnLHGkAJm4gBU-XcEpTAJClCe26f51jdI2zPzSRTSc6st83hJIYgKGrrSfAC80-VReXKsumyEvTbUo30ucI/s320/TINTIM.jpg


Descobri, finalmente, o que significa tintim. É verdade que, se tivesse me dado o trabalho de olhar no dicionário mais cedo, minha ignorância não teria durado tanto. Mas o óbvio, às vezes, e a última coisa que nos ocorre. Está no Aurelião. Tintim, vocábulo onomatopaico que evoca o tinido das moedas. Originalmente, portanto, "tintim por tintim" indicava um pagamento feito minuciosamente, moeda por moeda. Isso no tempo em que as moedas, no Brasil, tiniam, ao contrário de hoje, quando são feitas de papelão e se chocam sem ruído. Numa investigação feita hoje da corrupção no país tintim por tintim ficaríamos tinindo sem parar e chegaríamos a uma nova concepção de infinito.

Tintim por tintim. A menina muito dada namoraria sim-sim por sim-sim. O gordo incontrolável progrediria pela vida quindim por quindim. O telespectador habitual viveria plim-plim por plim-plim. E você e eu vamos ganhando nosso salário tin por tin (olha aí, a inflação já levou dois rins). Resolvido o mistério do tintim, que não é uma subdivisão nem de tempo nem de espaço nem de matéria, resta o triz. O Aurelião não nos ajuda. "Triz", diz ele, significa por pouco. Sim, mas que pouco? Queremos algarismos, vírgulas, zeros, definições para "triz". Substantivo feminino. Popular. "Icterícia." Triz quer dizer icterícia. Ou teremos que mudar todas as nossas teorias sobre o Universo ou teremos que mudar de assunto. Acho melhor mudar de assunto. O Universo já tem problemas demais.


- Extraído do livro Comédias para se ler na escola, de Luís Fernando Veríssimo

Entendendo o texto

01. O que intriga o autor durante alguns anos na crônica?

      a) O espaço infinito

      b) O sistema métrico

      c) O significado de "tintim"

      d) Uma fração mínima de matéria

02. Como o autor descreve a relação entre "tintim" e "moedas"?

      a) Tintim representa uma medida de tempo.

      b) Tintim é uma subdivisão de espaço.

      c) Tintim evoca o tinido das moedas.

     d) Tintim é uma unidade de medida métrica.

03. De acordo com o autor, o que indicava a expressão "tintim por tintim" originalmente?

     a) Uma medida de tempo precisa.

     b) Um pagamento feito minuciosamente, moeda por moeda.

     c) Uma subdivisão de matéria.

    d) Um ruído produzido por moedas de papelão.

04. Como o autor descreve o mundo das microcoisas na crônica?

      a) Infinitamente expansivo.

      b) Incapaz de ser subdividido.

     c) Composto por tintins e trizes.

     d) Limitado e estático.

05. O que o autor descobre sobre o significado de "tintim" ao consultar o dicionário?

     a) Representa uma subdivisão de tempo.

      b) Evoca o tinido das moedas.

     c) Refere-se a uma medida métrica.

     d) Indica um espaço sem fim.

06. Como o autor sugere que seria uma investigação de corrupção no país “tintim por tintim”?

     a) Sem ruído.

     b) Minuciosa e detalhada.

     c) Feito de papelão.

     d) Infinitamente expansiva.

07. O que "triz" significa, de acordo com o dicionário Aurelião na crônica?

     a) Subdivisão de tempo.

     b) Por pouco.

     c) Medida métrica.

    d) Espaço sem fim.

08. Qual é a definição popular de "triz" segundo o dicionário Aurelião na crônica?

    a) Fração mínima de matéria.

    b) Icterícia.

    c) Infinito para dentro.

    d) Subdivisão de espaço.

09. O que o autor sugere ao final da crônica sobre as teorias do Universo?

    a) Devem ser reavaliadas devido a tintins e trizes.

    b) São perfeitas e imutáveis.

    c) Precisam ser esquecidas.

    d) Tem problemas demais.

 

CRÔNICA: PÁ, PÁ, PÁ - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica: Pá, Pá, Pá

               Luís Fernando Veríssimo

A americana estava há pouco tempo no Brasil. Queria aprender o português depressa, por isto prestava muita atenção em tudo que os outros diziam. Era daquelas americanas que prestam muita atenção. Achava curioso, por exemplo, o "pois é". Volta e meia, quando falava com brasileiros, ouvia o "pois é". Era uma maneira tipicamente brasileira de não ficar quieto e ao mesmo tempo não dizer nada. Quando não sabia o que dizer, ou sabia mas tinha preguiça, o brasileiro dizia "pois é". Ela não aguentava mais o "pois é". Também tinha dificuldade com o "pois sim" e o "pois não". Uma vez quis saber se podia me perguntar uma coisa.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjlMX7U9mxhO9nCTVcIqCEmSKnAaV0owDcQ9DPtNRKkDdE-TMlqTEBfpZrR_DhRQvmSVQshV_r1BmywnZzu4uZkBz6adNLwJSojsfIueQQOunqv6NAoWvoGTqUuBj6lrnrfWbba9x5heiLV-5n2u9vUuLuvBjwtgPIWMuK9PbZX7o21ujJ4eLTvNNopl8w/s1600/POIS%20SIM.jpg


- Pois não - disse eu, polidamente.
- É exatamente isso! O que quer dizer "pois não"?
- Bom. Você me perguntou se podia fazer uma pergunta. Eu disse "pois não". Quer dizer, "pode, esteja à vontade, estou ouvindo, estou às suas ordens..."
- Em outras palavras, quer dizer "sim".
- É.
- Então por que não se diz "pois sim"?
- Porque "pois sim" quer dizer "não".
- O quê?!
- Se você disser alguma coisa que não é verdade, com a qual eu não concordo, ou acho difícil de acreditar, eu digo "pois sim".
- Que significa "pois não"?
- Sim. Isto é, não. Porque "pois não" significa "sim".
- Por quê?
- Porque o "pois", no caso, dá o sentido contrário, entende? Quando se diz "pois não", está-se dizendo que seria impossível, no caso, dizer "não". Seria inconcebível dizer "não". Eu dizer não? Aqui, ó.
- Onde?
- Nada. Esquece. Já "pois sim" quer dizer "ora, sim!". "Ora se aceitar isso." "Ora, não me faça rir. Rã, rã, rã."
- "Pois" quer dizer "ora"?
- Ahn... Mais ou menos.
- Que língua!
Eu quase disse: "E vocês, que escrevem 'tough' e dizem 'tâf'?", mas me contive. Afinal, as intenções dela eram boas. Queria aprender. Ela insistiu:
- Seria mais fácil não dizer o "pois".
Eu já estava com preguiça.
- Pois é.
- Não me diz "pois é"!
Mas o que ela não entendia mesmo era o "pá, pá, pá".
- Qual o significado exato de "pá, pá, pá".
- Como é?
- "Pá, pá, pá".
- "Pá" é pá. "Shovel". Aquele negócio que a gente pega assim e...
- "Pá" eu sei o que é. Mas "pá" três vezes?
- Onde foi que você ouviu isso?
- É a coisa que eu mais ouço. Quando brasileiro começa a contar história, sempre entra o "pá, pá, pá".
Como que para ilustrar nossa conversa, chegou-se a nós, providencialmente, outro brasileiro. E um brasileiro com história:
- Eu estava ali agora mesmo, tomando um cafezinho, quando chega o Túlio. Conversa vai, conversa vem e coisa e tal e pá, pá, pá...
Eu e a americana nos entreolhamos.
- Funciona como reticências - sugeri eu. - Significa, na verdade, três pontinhos. "Ponto, ponto, ponto."
- Mas por que "pá" e não "pó"? Ou "pi" ou "pu"? Ou "etcéterá'?
Me controlei para não dizer - "E o problema dos negros nos Estados Unidos?".
Ela continuou:- E por que tem que ser três vezes?
- Por causa do ritmo. "Pá, pá, pá." Só "pá, pá" não dá.
- E por que "pá"?
- Porque sei lá - disse, didaticamente.
O outro continuava sua história. História de brasileiro não se interrompe facilmente.
- E aí o Túlio com uma lengalenga que vou te contar. Porque pá, pá, pá...
- É uma expressão utilitária - intervim. - Substitui várias palavras (no caso toda a estranha história do Túlio, que levaria muito tempo para contar) por apenas três. É um símbolo de garrulice vazia, que não merece ser reproduzida. São palavras que...
- Mas não são palavras. São só barulhos. "Pá, pá, pá."
- Pois é - disse eu. Ela foi embora, com a cabeça alta. Obviamente desistira dos brasileiros. Eu fui para o outro lado. Deixamos o amigo do Túlio papeando sozinho.

Entendendo o texto

01. Quem é o narrador da crônica?

          O narrador é uma pessoa que interage com uma americana recém-chegada ao Brasil.

    02.Como a americana caracteriza os brasileiros em relação à sua forma de expressão?

         A americana acha curioso o uso frequente da expressão "pois é" pelos brasileiros.

03.Qual é a dúvida da americana em relação à expressão "pois não"?

     A americana quer entender o significado preciso de “pois não” e questiona por que não se usa “pois sim” como equivalente.

04. Qual é a explicação dada pelo narrador sobre o significado de "pois não" e "pois sim"?

      "Pois não" significa "sim", enquanto "pois sim" significa "não", devido ao sentido contrário atribuído pelo termo "pois".

05. Como a americana reage à expressão "pois é"?

      A americana não suporta mais a expressão “pois é” e expressa sua frustração em relação a ela.

06. O que a americana não compreende sobre a expressão "pá, pá, pá"?

     A americana não entende o significado exato de “pá, pá, pá” e questiona por que os brasileiros utilizam ao contar histórias.

07. Como o narrador define o significado de "pá, pá, pá"?

      O narrador sugere que “pá, pá, pá” funciona como reticências, representando três pontinhos, interrompendo a interrupção de uma história ou narrativa.

08. Por que, segundo o narrador, a expressão "pá, pá, pá" é utilizada três vezes e não apenas duas?

      O narrador explica que a reprodução de “pá, pá, pá” três vezes é devido ao ritmo, enfatizando que apenas “pá, pá” não seria suficiente.

09. Como a americana reage à explicação do narrador sobre "pá, pá, pá"?

     A americana não compreende completamente a explicação e continua questionando a escolha da palavra “pá” e por que ela é repetida três vezes.

10. Qual é a atitude final da americana em relação aos brasileiros no estágio da crônica?

     A americana parece desistir dos brasileiros, expressando sua frustração com as descobertas da língua e cultura, e se retira com a cabeça alta.

 

 

CRÔNICA: SOZINHOS - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica: Sozinhos

                 Luís Fernando Veríssimo

Esta ideia para um conto de terror é tão terrível que, logo depois de tê-la, me arrependi. Mas já estava tida, não adiantava mais. Você, leitor, no entanto, tem uma escolha. Pode parar aqui, e se poupar, ou ler até o fim e provavelmente nunca mais dormir. Vejo que decidiu continuar. Muito bem, vamos em frente. Talvez, posta no papel, a ideia perca um pouco do seu poder de susto. Mas não posso garantir nada. É assim: Um casal de velhos mora sozinho numa casa. Já criaram os filhos, os netos já estão grandes, só lhes resta implicar um com o outro. Retomam com novo fervor uma discussão antiga. Ela diz que ele ronca quando dorme, ele diz que é mentira.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg_C0KuQbq8julYuxIpaUrBBtyujzTV0nP3wG-pU9VgKkIbse7r4e4KUNC2FZif4vQq1Qu1VMp6KN_hD6LNbhBmUVwdDI4EwHyERoq5axvgVmYlzw1GVkzsOyJ0TziLm23S3PyXjQhfc99d6EZXwo5MiwlqjXktsLxlcIrg60YIa6mnYfpE0Kq-BCrIepE/s1600/GRAVADOR.jpg


– Ronca.
– Não ronco.
– Ele diz que não ronca – comenta ela, impaciente, como se falasse com uma terceira pessoa. Mas não existe outra pessoa na casa. Os filhos raramente visitam. Os netos, nunca. A empregada vem de manhã, faz o almoço, deixa o jantar e sai cedo. Ficam os dois sozinhos.
– Eu devia gravar os seus roncos, pra você se convencer – diz ela. E em seguida tem a ideia infeliz. – É o que eu vou fazer! Esta noite, quando você dormir, vou ligar o gravador e gravar os seus roncos.
– Humrfm – diz o velho.
Você, leitor, já deve estar sentindo o que vai acontecer. Pare de ler, leitor. Eu não posso parar de escrever. Às ideias não podem ser desperdiçadas, mesmo que nos custem amigos, a vida ou o sono. Imagine se Shakespeare tivesse se horrorizado com suas próprias ideias e deixado de escrevê-las, por puro comedimento. Não que eu queira me comparar a Shakespeare. Shakespeare era bem mais magro. Tenho que exercer este ofício, esta danação. Você, no entanto, não é obrigado a me acompanhar, leitor. Vá passear, vá tomar um sol. Uma das maneiras de controlar a demência solta no mundo e deixar os escritores falando sozinhos, exercendo sozinhos a sua profissão malsã, o seu vício solitário. Você ainda está lendo. Você é pior do que eu, leitor. Você tinha escolha.
Os velhos sozinhos na casa. Os dois vão para a cama. Quando o velho dorme, a velha liga o gravador. Mas em poucos minutos a velha também dorme. O gravador fica ligado, gravando. Pouco depois a fita acaba.
Na manhã seguinte, certa do seu triunfo, a velha roda a fita. Ouvem-se alguns minutos de silêncio. Depois, alguém roncando.
– Rarrá! – diz a velha, feliz.
Pouco depois ouve-se o ronco de outra pessoa, a velha também ronca!
– Rarrá! – diz o velho, vingativo.
E em seguida, por cima do contraponto de roncos, ouve-se um sussurro. Uma voz sussurrando, leitor. Uma voz indefinida. Pode ser de homem, de mulher ou de criança. A princípio – por causa dos roncos – não se distingue o que ela diz. Mas aos poucos as palavras vão ficando claras. São duas vozes.
É um diálogo sussurrado.
“Estão prontos?”
“Não, acho que ainda não…”
“Então vamos voltar amanhã…”

Autor: Luís Fernando Veríssimo

Entendendo o texto
01. Responda:
    a) Qual o tipo de narrador desta história?

         Narrador onisciente, não participa da história, mas há certas intromissões em 1ª pessoa.

   b) Retire um trecho que comprove o tipo de narrador.

       “Esta ideia para um conto de terror é tão terrível que, logo depois de tê-la, me arrependi.”

02. Na história que você acabou de ler acontecem dois fatos muito importantes. Um deles é um acontecimento do cotidiano, ou seja, pode acontecer todo dia, o outro fato é algo diferente, absurdo, incomum que não acontece todo dia. Identifique:
a) O fato cotidiano

     O casal que discute na hora de dormir.

b) O fato diferente

   As vozes gravadas que o casal não sabe de quem é.
 
03. Retire do texto uma opinião e um fato.

     . Opinião: “Não, acho que ainda não…” Fato: “Ficam os dois sozinhos.”

04. Qual fato dá início a toda a história?

     O autor ter uma ideia para um conto de terror.
 
5. Retire do texto duas expressões de tempo e duas expressões de lugar.

Expressões de tempo. “Então vamos voltar amanhã…”
“E em seguida, por cima do contraponto de roncos, ouve-se um sussurro.”
Expressões de lugar. “Uma das maneiras de controlar a demência solta no mundo e deixar os escritores falando sozinhos, exercendo sozinhos a sua profissão malsã, o seu vício solitário.” “Os velhos sozinhos na casa.”

06. Identifique os elementos da narrativa da história.
a) Personagens: um casal de idosos
b) Enredo: um casal de idosos que coloca um gravador para identificar quem ronca e acaba ouvindo vozes.
c) Lugar: A casa do casal de idosos.

07. Na sua opinião de quem podem ser as vozes ouvidas pelo casal de velhos?

      Resposta pessoal.

08. Qual era o motivo de briga do casal de velhos?

      Se acusavam de roncar.
09. Qual a ideia da velha para comprovar suas acusações contra o velho?

      Utilizar um gravador de voz.
 
10. Retire do texto uma comparação.

Não que eu queira me comparar a Shakespeare. Shakespeare era bem mais magro.

CONTO: O COLOCADOR DE PRONOMES -(FRAGMENTO) - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: O Colocador de Pronomes – Fragmento

            Monteiro Lobato

        Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.

        Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicot6OAK0dwE4yDJwckR-dE1Fx2V8bczdX5lQ87y3SW_eO5Hh7uu60QqWh3jMzKJ1lot7La46z6tjQI3nwQDknOyyJ45fCw8QjllIDIrw9RZ8pH4iipX3ErfzMBA7uiY1eLEPo_ToYSBfqiDVJ8zKFk9TKVsb-cK9bIhhFyM_sXxIzl4At0rL5u8i2-Ek/s320/PRONOMES.jpg


        E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.

        Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização,

        Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.

        Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.

        Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.

        Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o

        Acorda, donzela…

        Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.

        Aqui se estrepou…

        Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:

        Anjo adorado!

        Amo-lhe!

        Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.

        Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.

        Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:

        – A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.

        Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o

        – É sua esta peça de flagrante delito?

        O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.

        – Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar… Pois agora…

        O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.

        – … é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.

        O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:

        – Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…

        Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.

        – Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!

        E voltando-se para dentro, gritou:

        – Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!

        O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.

        – Laurinha, quer o coronel dizer…

        O velho fechou de novo a carranca.

        – Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dezer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher…

        – Oh, coronel…

        – … ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!

        O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial.

        – Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa – quem fala, e neste caso vassuncê; da Segunda pessoa – a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa – de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!

        Não havia fuga possível.

        O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:

        – Deus vos abençoe, meus filhos!

        No mês seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor de língua que durante cinquenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.

        Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo – empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía – Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal…

        (...)

        E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do povo.

        – Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.

        E, baixando as cangalhas, lia:

        – Teve lugar ontem… É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada!

        – … no Trianon… Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevesos? Tão bem ficava – a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho o Logratório…Tarelos é que são, tarelos!

        E suspirava deveras compungido.

        – Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param os boas letras d’antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma – Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma dama de servir, (1) creio, à… advinhe ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!…

        – Mas a evolução…

        – Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwinica, os vocábulos macacos – pitecofonemas que “evolveram”, perderam o pelo e se vestem hoje à moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.

        Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.

        Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.

        – “Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vêde, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem…

        Os pronomes, aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los por aí pré ou pospostos contra-regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.

        Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.

        – Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria auto-condenar-nos à morte! Tinha graça!

        Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n’alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu e, breve, desses “pulmões da pública opinião” apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra violentas, escritas no mais estreme vernáculo.

        Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.

        A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.

        – Espaço não há para as sãs ideias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recende à podriqueira!… Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos a gafa!… exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.

        Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.

        – Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatãs de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.

        Falhou a nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu afim de remendar-se filologicamente.

        Ele, todavia, não esmoreceu.

        – Experimentemos processo outro, mais suasório.

        E anunciou a montagem da “Agência de Colocação de Pronômes e Reparos Estilísticos”.

        Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.

        Era boa a ideia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.

        Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.

        – Professor, v. s. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim…

        Aldrovando empertigou-se.

        – Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é alí com o alveitar da esquina.

        Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção…

        O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.

        – Hei de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula os maráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja… Salta rumor!

        E foi-lhes “empós”, Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a “asnidade”, ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos catequistas.

        Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta – “Ferra-se cavalos” – escoicinhava a santa gramática.

        – Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção…

        O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.

        – Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em nome do asseio gramatical, que o expunjas.

        – ? ? ?

        – Que reformes a tabuleta, digo.

        – Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?

        – Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.

        O honesto ferreiro não entendia nada de nada.

        – Macacos me lambam se estou entendendo o que v. s. diz…

        – Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é “cavalos”.

        O ferreiro abriu o resto da boca.

        – O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” – “ferram-se cavalos!”

        – Ahn! Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz v. s. que …

        – … que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.

        – V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos – Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

        Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.

        – Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!… Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum “m” ali…

        – Se V. S. paga…

        Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela

        Por mal seu, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres e lá raspou o “m” do professor.

        A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.

        – Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!

        O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.

        – “Sancta simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou…

        O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a continuação da guerra.

        – Não hei de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita ciência que hei acumulado.

        E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.

        Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa…

        Pronto o primeiro tomo – Do pronome Se – anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera das chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos pecuniários.

        Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia por cinquenta. E cinquenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!… E Aldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo…

        Que vinha vindo mas não veio, aí!… As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.

        – Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!

        E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.

        Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo “Não é vendável”; ou: “Porque não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?

        Aldrovando, com a morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.

        – Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim. Bofé!

        Para lugar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra salvadora.

        Disse e fez.

        Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.

        Dedicou-o a Fr. Luz de Souza:

        À memória daquele que me sabe as dores,

        O Autor.

        Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.

        Muito corretamente havia ele escrito na dedicatória: …daquele que me sabe… e nem poderia escrever doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém – até os fados conspiram contra a língua! – e por artimanha do diabo que os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a seu modo …d’aquele que sabe-me as dores… E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.

        (...)

        O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:

        – Isto no “sebo” sempre renderá cinco tostões. Já serve!

        Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos deram com a horrenda cinca: “daquele QUE SABE-ME as dores”.

        – Deus do céu! Será possível?

        Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo

        – “que sabe-me”…

        Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor – dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia – permaneceu imóvel uns momentos.

        Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia.

        Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou:

        – Luiz! Luiz! Lamma Sabachtani?!

        E morreu.

        De que não sabemos – nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes.

        Paz à sua alma.

Monteiro Lobato.

Entendendo o conto:

01 – Quem é Aldrovando Cantagalo?

      Aldrovando Cantagalo é um jovem escrevente que se apaixona pela filha do Coronel Triburtino e enfrenta dificuldades por conta de um erro de gramática.

02 – Qual é o erro de gramática cometido por Aldrovando?

      Aldrovando comete o erro de utilizar o pronome inadequadamente ao declarar seu amor pela filha do Coronel, escrevendo "Amo-lhe", quando deveria ter escrito "Amo-te".

03 – Qual é a reação do Coronel Triburtino ao erro de gramática de Aldrovando?

      O Coronel Triburtino decide, de maneira vingativa, declarar Aldrovando como noivo da filha "errada" (do Carmo) devido ao uso inadequado do pronome na declaração de amor.

04 – Qual é o objetivo principal de Aldrovando em relação à gramática?

      Aldrovando torna-se um fervoroso defensor das regras gramaticais, lutando incansavelmente para corrigir os erros cometidos na linguagem cotidiana.

05 – Como Aldrovando tenta corrigir os erros gramaticais na sociedade?

      Ele cria uma Agência de Colocação de Pronomes e Reparos Estilísticos, oferecendo seus serviços gratuitamente para corrigir erros em escritos, porém sem muito sucesso.

06 – Qual é o grande projeto literário de Aldrovando?

      Aldrovando escreve um tratado sobre a colocação dos pronomes, acreditando que isso resolverá um ponto fraco na linguagem do brasileiro.

07 – Como termina a vida de Aldrovando?

      Aldrovando morre subitamente ao perceber que, mesmo tendo dedicado tanto esforço à sua obra, um erro de gramática persiste nos exemplares publicados, causando-lhe uma profunda agonia.

08 – Quais são as reações da sociedade em relação aos esforços de Aldrovando?

      A sociedade não valoriza seus esforços, ridicularizando-o e não reconhecendo sua dedicação à correção gramatical.

09 – Quais são as expectativas iniciais de Aldrovando em relação à publicação de sua obra?

      Ele acredita que sua obra terá grande aceitação e trará reconhecimento, além de proventos financeiros consideráveis.

10 – Qual é o significado simbólico da morte de Aldrovando?

      A morte de Aldrovando simboliza a luta solitária e frustrante contra os erros gramaticais na sociedade, mostrando como suas tentativas de correção foram em vão e não foram reconhecidas pelo público em geral.