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sábado, 12 de março de 2022

RELATO: OS LIVROS E SUAS VOZES -CECÍLIA MEIRELES/ A LÍNGUA ABSOLVIDA - ELIAS CANETTI - COM GABARITO

 Relato: OS LIVROS E SUAS VOZES

            Cecília Meireles 

Texto I

        Se há uma pessoa que possa, a qualquer momento, arrancar da sua infância uma recordação maravilhosa, essa pessoa sou eu. [...]

        Tudo quanto, naquele tempo, vi, ouvi, toquei, senti, perdura em mim com uma intensidade poética inextinguível. Não saberia dizer quais foram as minhas impressões maiores. Seria a que recebi dos adultos tão variados em suas ocupações e em seus aspectos? Das outras crianças? Dos objetos? Do ambiente? Da natureza? [...]

        Recordo céus estrelados, chuva nas flores, frutas maduras, casas fechadas, estátuas, negros, aleijados, bichos, suínos, realejos, cores de tapete, bacia de anil, nervuras de tábuas, vidros de remédio, o limo dos tanques, a noite em cima das árvores, o mundo visto através de um prisma de lustre, o encontro com o eco, essa música matinal dos sabiás, lagartixas pelos muros, enterros, borboletas, o carnaval, retratos de álbum, o uivo dos cães, o cheiro do doce de goiaba, todos os tipos populares, a pajem que me contava com a maior convicção histórias do Saci e da Mula-sem-cabeça (que ela conhecia pessoalmente); minha avó que me cantava rimances e me ensinava parlendas... [...]

        Mais tarde [...] os livros se abriram, e deixaram sair suas realidades e seus sonhos, em combinação tão harmoniosa que até hoje não compreendo como se possa estabelecer uma separação entre esses dois tempos de vida, unidos como os fios de um pano. Foi ainda nessa área que apareceram um dia os meus próprios livros, que não são mais do que o desenrolar natural de uma vida encantada com todas as coisas [...]

        Sempre gostei muito de livros e, além dos livros escolares, li os de histórias infantis, e os de adultos: mas estes não me pareciam tão interessantes, a não ser, talvez, Os Três Mosqueteiros, numa edição monumental, muito ilustrada, que fora de meu avô. Aquilo era uma história que não acabava nunca; e acho que esse era o seu principal encanto para mim. Descobri o Dicionário, uma das invenções mais simples e mais formidáveis e também achei que era um livro maravilhoso, por muitas razões.

        [...] Quando eu ainda não sabia ler, brincava com livros e imaginava-os cheios de vozes, contando o mundo. 

Cecília Meireles. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1997. p.58-61.

 Texto II – A língua absolvida

                Elias Canetti

        Alguns meses depois de meu ingresso na escola, aconteceu algo solene e excitante que determinou toda a minha vida futura. Meu pai me trouxe um livro. Levou-me para um quarto dos fundos, onde as crianças costumavam dormir, e o explicou para mim. Tratava-se de “The Arabian Nights”, “As Mil e Uma Noites”, numa edição para crianças. Na capa havia uma ilustração colorida, creio que de Aladim com a lâmpada maravilhosa. Falou-me, de forma animadora e séria, de como era lindo ler. Leu-me uma das histórias: tão bela como esta seriam também as outras do livro. Agora eu deveria tentar lê-las, e à noite eu lhe contaria o que havia lido. Quando eu acabasse de ler este livro, ele me traria outro. Não precisou dizê-lo duas vezes, e, embora na escola começasse a aprender a ler, logo me atirei sobre o maravilhoso livro, e todas as noites tinha algo para contar. Ele cumpriu sua promessa, sempre havia um novo livro e não tive que interromper minha leitura um dia sequer.

        Era uma série para crianças e todos os livros tinham o mesmo formato; se diferenciavam pela ilustração colorida na capa. As letras tinham o mesmo tamanho em todos os volumes e era como se continuasse a ler sempre o mesmo livro. Como série, nunca houve outra igual. Lembro-me de todos os títulos. Depois da Mil e uma noites vieram os Contos Grimm, Robinson Crusoé, As viagens de Gulliver, Contos de Shakespeare, Dom Quixote, Dante, Guilherme Tell.

Elias Canetti. A língua absolvida. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 50.

Fonte: Livro- PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 6ª Série – 2ª edição - Atual Editora – 2002 – p. 181-4.

Entendendo os relatos:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Inextinguível: que não se extingue, não se apaga.

·        Limo: lodo.

·        Pajem: babá, criada, acompanhante.

·        Prisma: cristal que decompõe a luz.

·        Rimance: o mesmo que romance, poética popular.

02 – Os dois textos são exemplos de relato, um gênero textual em que os autores narram experiências pessoais vividas no passado.

a)   Em que pessoa são narrados os textos: em 1ª ou em 3ª pessoa? Comprove sua resposta com alguns exemplos.

Em 1ª pessoa, conforme mostram as formas verbais vi, ouvi, toquei e os pronomes mim, me, etc.

b)   Dos três itens que seguem, qual é o que melhor traduz o assunto desses relatos?

·        Recordações da infância.

·        O poder transformador dos livros.

·        A descoberta dos livros e da leitura na infância.

c)   Que palavras dos textos comprovam que os relatos são fruto da memória e não da imaginação?

Recordação, recordo (texto I); lembro-me (texto II).

03 – A autora do texto I, n 3° parágrafo, cita várias recordações de sua infância: algumas são de coisas concretas, outras de coisas abstratas.

a)   Cite três dessas coisas concretas.

Céus, chuva, frutas, casas, etc.

b)   Quais são as recordações de coisas abstratas?

São as histórias, as parlendas e os romances que ouvia da pajem e da avó.

04 – Os adultos desempenharam um importante papel na vida dos dois escritores quando crianças.

a)   Quem são os adultos citados no texto I?

A pajem e a avó.

b)   E no texto II?

O pai.

c)   O que os adultos fizeram de importante para essas crianças?

Iniciaram essas crianças no mundo da leitura e da literatura.

d)   Por que essa iniciativa foi importante para a escolha profissional que essas crianças iriam fazer mais tarde?

Porque mais tarde se tornaram escritores.

05 – Releia estes fragmentos dos textos:

        “[...] estes não me pareciam tão interessantes, a não ser, talvez, Os Três Mosqueteiros, numa edição monumental, muito ilustrada [...]”.

        “As Mil e Uma Noites”, numa edição para crianças. Na capa havia uma ilustração colorida”.

        O que os livros oferecidos às crianças tinham em comum, o que as atraía neles?

      O fato de serem bem-ilustrados; por isso, atraíam também como objetos.

06 – Os dois textos tratam de viagens, embora não de forma explícita.

a)   Que tipo de viagem os autores, quando crianças, faziam pelos livros?

Eles faziam uma viagem pela fantasia e pela imaginação, estimulados pelos livros.

b)   Que tipo de viagem os autores fazem agora, já adultos?

Agora viajam pela memória, recordando a infância e a iniciação à leitura.

 

 

sexta-feira, 14 de maio de 2021

RELATO: BONJOUR, L'AMOUR - MARTHA MEDEIROS - COM GABARITO

 RELATO: Bonjour, L'Amour

                Martha Medeiros

Próxima parada: Barcelona. Pegamos um voo e tudo voltou a dar certo, estávamos em plena lua de mel. Ao aterrissar, fomos à esteira das bagagens e ficamos esperando. Esperando. Esperando. E  esperando estaríamos até hoje. Nada das nossas malas. Registramos o sumiço e nos despacharam para o hotel: "Quando encontrarmos, se encontrarmos, serão entregues lá", foi o que nos disseram - em catalão. Que ótimo. Eu não tinha nenhum kit de primeiros socorros na mochila.

Passamos o dia perambulando pelas Ramblas com a roupa do corpo. Compramos escova de dente, pasta, desodorante e umas camisetas para quebrar o galho, caso o pior acontecesse. Voltamos à tardinha  para o hotel e nada ainda das malas. Antes de sair para jantar com a mesma roupa imunda, aleluia, elas chegaram.

É uma experiência que nos faz avaliar o que realmente tem importância na vida. Eu não sofria pelo vestido que talvez nunca mais visse ou pelo sapato que havia usado só uma vez, e sim pelo sumiço de uma caderneta de anotações onde já havia registrado boa parte da viagem. E lamentava nunca mais colocar no dedo um anel pelo qual joalheiro nenhum daria um centavo, mas que para mim valia como se fosse um diamante da Tiffany. O anel havia sido da minha avó. Mas recuperei não só vestidos e sapatos, como o anel, a caderneta e o que mais a mala continha: tudo parte da nossa memória afetiva, que, no final das contas, é o que mais tememos perder pelo caminho. Depois de curtir o que Barcelona tinha para ser curtida, fomos de trem até Montpellier, na França, e lá alugamos um carro. Finalmente, o filé mignon da viagem. Adoro percorrer estradas desconhecidas e não saber onde vou dormir à noite. Nesse primeiro dia motorizados, saímos sem rumo e, depois de muito rodar, acabamos em Ramatuelle, um lugarejo escondido e charmoso num ponto alto da costa azul. Percorremos a pé suas ruelas, tomamos vinho e tentamos encontrar uma pousadinha  para ficar por lá mesmo, mas estava tudo lotado: a cidade era mínima, porém requisitada. Não nos restou outra alternativa a não ser voltar para o carro e seguir até Saint-Tropez. Vida dura.

Chegamos tarde e, por conta do cansaço, nos hospedamos no primeiro hotel que vimos, sem reparar que era megaluxuoso. Foi o que bastou para meu namorado se emburrar. Tinha cabimento gastar os tubos numa única noite? Não tinha. Mas vá explicar isso para uma mulher despencando de sono. No dia seguinte, Saint-Tropez nos deu as boas-vindas e desemburrou qualquer semblante. Dia de sol tropical. Mergulho. Caminhadas. Visual. Passamos um dia de magnatas e no fim da tarde pegamos a estrada de novo. Quando o sol começou a se pôr, estávamos na Route des Calanques, entre St. Raphael e Cannes, onde encontramos um casarão na beira da estrada, de frente para uma baía deslumbrante. Chamava-se L' Auberge Blanche, mas duvido que se encontre alguma referência no Google. Estacionamos e batemos à porta. Veio nos atender uma senhora de uns bem vividos 130 anos. Ofereceu para nós seu melhor quarto, no terceiro andar, milhões de metros quadrados de frente para o mar. Poderíamos ter dado uma festa de réveillon dentro do aposento.

MEDEIROS, Martha. Um lugar na janela: relatos de viagem. Porto Alegre: L&PM, 2012. Edição e-book.

Fonte: Livro: Língua Portuguesa: linguagem e interação/ Faraco, Moura, Maruxo Jr. – 3.ed. São Paulo: Ática, 2016. p.181-4. 


ENTENDENDO O TEXTO

1.   No aeroporto de Barcelona, ao indagarem sobre as bagagens perdidas, os viajantes ouvem uma resposta em catalão, e a autora destaca essa informação graficamente no texto, isolando-a com um travessão no fim da frase (linha 9). É possível supor a razão de ela ter destacado essa informação desse modo?

  É possível supor que a autora dê esse detalhe (e o represente graficamente desse modo) com a intenção de mostrar que a língua catalã representou algum tipo de obstáculo na comunicação.

2. A resposta que receberam deixou ainda mais preocupados os dois viajantes. Que trecho dela revela incerteza com relação ao fato de encontrar as malas?

"[...] se encontrarmos" (linhas 7-8)

3.   Note que disseram a eles no aeroporto: "Quando encontrarmos, se encontrarmos, serão entregues lá" (linhas 7-

Por que fizeram questão de dizer "se encontrarmos"?

       Porque não tinham certeza de que as encontrariam, portanto condicionaram a entrega das malas no hotel à localização delas.

    4. Em sua opinião, qual é o sentido da expressão memória afetiva em: "[...] tudo parte da nossa memória afetiva, que, no final das contas, é o que mais tememos perder pelo caminho"? (linhas 29-31)

    Resposta pessoal. Sugestão: Se trata de lembranças de fatos, pessoas, objetos passados que têm importância sentimental. São lembranças traduzidas em afeto.

 5. No mesmo trecho indicado na questão 4, Martha Medeiros demonstra uma característica importante do tipo de viagem que gosta de fazer. Que característica é essa?

De viagens marcadas pela imprevisibilidade, pelo inesperado, etc., bem marcado no trecho "Adoro percorrer estradas desconhecidas e não saber onde vou dormir à noite." (linhas 34-35).

 6. Releia este trecho e responda às questões seguintes.

[...] encontramos um casarão na beira da estrada, de frente para uma baía deslumbrante. Chamava-se L' Auberge Blanche, mas duvido que se encontre alguma referência no Google. (linhas 57-60)

a) Você consegue entender ou pelo menos deduzir o significado do nome da pousada?

Albergue Branco ou Pousada Branca.

b) Por que a afirmação de que talvez não seja possível encontrar referências no Google a respeito dessa pousada?

 Pelo relato, deve tratar-se de uma pousada fora do circuito das cidades turísticas, talvez mais intimista, mais reservada, pouco conhecida para figurar em roteiros ou guias turísticos.

7. Qual é o possível leitor do texto ou dos relatos de viagens em geral?

    Resposta pessoal. Em geral, leitores de relatos de viagens são pessoas que têm interesse em conhecer experiências vivenciadas por outros, têm interesse em conhecer o local sobre o qual se fala e, por isso, procuram informações emitidas por quem esteve pessoalmente nele.

As palavras no contexto

1. Releia: "Antes de sair para jantar com a mesma roupa imunda, aleluia, elas chegaram." (linhas 15-17)

a) Que sinônimo você escolheria para aleluia nesse trecho do texto?

    Oba!, Eia!, Que bom!, finalmente, por fim, etc.

b) Como você classifica gramaticalmente a palavra aleluia, empregada no trecho destacado acima?

     Resposta pessoal. Sugestão: A palavra é empregada como interjeição.

2.Releia este trecho prestando atenção à expressão em destaque:

Nesse primeiro dia motorizados, saímos sem rumo e, depois de muito rodar, acabamos em Ramatuelle, um lugarejo escondido e charmoso num ponto alto da costa azul. Percorremos a pé suas ruelas, tomamos vinho e tentamos encontrar uma pousadinha para ficar por lá mesmo, mas estava tudo lotado: a cidade era mínima, porém requisitada. Não nos restou outra alternativa a não ser voltar para o carro e seguir até Saint-Tropez. Vida dura. (texto 2, linhas 36-44)

a) De modo geral, como vive uma pessoa que leva uma vida dura?

 Vive arduamente, suportando dificuldades.

b) Considerando o contexto do relato, que efeito de sentido causa o uso de vida dura e como se chama esse uso?

O efeito de sentido que causa é a ironia, que ocorre quando o enunciador quer dizer exatamente o contrário do que está afirmando, afinal, pelo contexto, nota-se que não há nada de árduo nem dificultoso em seguir para Saint-Tropez.

3. Releia este trecho do texto, atentando para seu sentido.

Veio nos atender uma senhora de uns bem vividos 130 anos. Ofereceu para nós seu melhor quarto, no terceiro andar, milhões de metros quadrados de frente para o mar. Poderíamos ter dado uma festa de réveillon dentro do aposento. (texto 2, linhas 61-65)

O que é possível notar no modo como o enunciador faz sua descrição nesse trecho?

Há exagero na descrição ao falar da idade da senhora, do tamanho do quarto e ao afirmar que é possível comemorar nele o réveillon (que, de modo geral, conota um evento grandioso, com muitas pessoas reunidas). A senhora devia ter bastante idade, o quarto devia ser bem grande, mas não literalmente nas proporções informadas. Esse exagero constitui uma figura de linguagem chamada hipérbole.

 

RELATO: PRIMEIRA VEZ NA EUROPA - PARTE 1 - MARTHA MEDEIROS - COM GABARITO

 RELATO: PRIMEIRA VEZ NA EUROPA - parte 1

              Martha Medeiros

Era 1986 e eu tinha 24 anos. Andava angustiada, queria escapar da rotina e me enxergar de forma inédita, e viajar sempre ajuda - ao menos pra mim, que sempre considerei uma prática terapêutica. Então, depois de juntar dinheiro, negociar meu afastamento temporário do trabalho e fazer meu namorado (o mesmo com quem fui ao Rock in Rio) entender que eu precisava de um tempo sozinha, embarquei para Londres, onde minha melhor amiga estava morando, recém-casada.

Havia umas 300 pessoas a bordo do avião, mas fui a única a ser revistada quando desembarquei no aeroporto de Heathrow - meu aspecto muçulmano me condena. Como não levava granadas na  bagagem, entrei no país sem mais perguntas. Minha amiga me esperava na área de desembarque. Depois de um longo abraço, pegamos o metrô e começamos a tagarelar dentro do vagão, sem ver o tempo passar. Quando saí da estação e pisei, de fato, na primeira rua a céu aberto do Velho Continente, a impressão que tive é que eu estava de volta à minha casa - era como se eu tivesse nascido em Londres. Até hoje não sei explicar o que faz com que sintamos uma identificação tão forte com um lugar e sintonia nenhuma com outro. O escritor Gustave Flaubert defendia a tese de que a nacionalidade de uma pessoa não deveria ser estabelecida por sua cidade de nascimento, e sim pelos locais pelos quais a pessoa se sentia atraída. "Meu país natal é aquele que amo, ou seja, aquele que me faz sonhar, que me faz sentir bem. Sou tão chinês quanto francês..." Naquele dia eu comecei a descobrir como se dava, na prática, essa amplitude informal de cidadania. Passava a me sentir tão londrina quanto porto-alegrense.

O apartamento da minha amiga era minúsculo, e eu não seria sonsa de atrapalhar o casal que estava praticamente em lua de mel, então aluguei um quarto na casa de uma inglesa meio maluca, a Daphne, separada e com quatro filhos: Gregor, Boris, Fiona e Phylis. Quarto franciscano, mas limpinho, banheiro no corredor. As refeições eu teria que fazer fora, mas podia usar a geladeira para guardar o que comprasse para consumo próprio. O bairro era Pimlico, perfeito. Tudo acertado, joguei minha sacola num canto e fui dormir, mas não dormi. Passei a noite em claro e em pânico: o que vim fazer na Europa sozinha? Vou perder meu emprego. Vou perder meu namorado. Vou me perder. Help, I need somebody.

A noite sempre foi madrasta com meus pensamentos. Quando acordei no dia seguinte, já não havia vestígio daquela garota medrosa. Tomei um banho e fui pra rua, e tudo começou. Pirei com Londres. Passava os dias em parques e museus, e o que mais gostava era de ver a movimentação das pessoas, aquela diversidade cultural, cada um na sua, com seu estilo. Uma metrópole vanguardista e ao mesmo tempo monárquica, uma contradição estimulante. Almoçava pizza, jantava um pedaço de queijo e caminhava uns 20 km por dia, ou mais. À noite, costumava sair com minha amiga e o marido dela, que, aliás, vivem atualmente em Porto Alegre e são meus melhores amigos até hoje. Em Londres, assisti no cinema o blockbuster do momento, 9 1/2  Weeks (Nove e meia semanas de amor), só se falava nesse filme, e o enredo prometia ser fácil o suficiente para eu entendê-lo sem a ajuda de legendas. E assisti ao musical Cats numa matinê cujo preço do ingresso era compatível com minhas posses. Foi quando confirmei que musical não é mesmo meu gênero teatral preferido. Cats me pareceu cafona e um tantinho enfadonho: sofri ao ouvir a música-tema, "Melody", com a mesma intensidade com que sofria ao ouvir "Feelings", do Morris Albert. Muito preocupados com a minha opinião, a trupe ficou em cartaz por 21 anos no New London Theatre.

Às vezes, quando o cansaço batia, ficava sozinha no meu quarto, escrevendo. Um dia a Phylis, que era a menorzinha da família, uns três anos de idade, me viu com um bloco e uma caneta na mão e pediu, com seu jeitinho encantador, para que eu desenhasse um "bear". Sorri e desenhei. Quando mostrei minha obra-prima para ela, a menina desatou a chorar. O que eu havia feito de errado? Até hoje me divirto quando lembro dessa história. Desenhei uma garrafa de cerveja. "Beer". Sempre tive muito jeito com crianças.

Dias depois, uma carioca chegou na casa e passou a dividir o quarto comigo. Não era de muitas palavras, mas mesmo assim a convidei para passar o fim de semana em Edimburgo, na Escócia. Ela resmungou um "ok", pegamos um ônibus e partimos numa viagem noturna de umas oito horas. Chegando lá, brrrrrrrr. Nunca havia sentido tanto frio na vida. A cidade era gelada, mas por outro lado estava acontecendo um festival de música e o clima era muito festivo nos parques e ruas. Me agasalhei e fui ao encontro da arte, mas a garota só queria saber de ficar trancafiada no bed & breakfast em que nos hospedamos. Se eu, que era do sul do Brasil, sofria com a baixa temperatura, ela, carioca, estava em estado de choque. Deve me amaldiçoar até hoje pelo convite. Quando voltamos a Londres, ainda passei uns três dias na casa da Daphne, até que começou a chegar mais gente, surgiu uma muambeira não sei de onde, e aí achei que o prazo havia esgotado pra mim. Juntei minhas coisas e parti. Nunca mais soube de ninguém dessa turma. Querida Phylis, espero que o trauma tenha passado. Te devo um ursinho.

MEDEIROS, Martha. Um lugar na janela: relatos de viagem. Porto Alegre: L&PM, 2012. Edição e-book.

Fonte: Livro: Língua Portuguesa: linguagem e interação/ Faraco, Moura, Maruxo Jr. – 3.ed. São Paulo: Ática, 2016. p.177 a 180. 

ENTENDENDO O TEXTO

1. Logo no início do texto, há a seguinte afirmação:

[...] Andava angustiada, queria escapar da rotina e me enxergar de forma inédita, e viajar sempre ajuda - ao menos pra mim, que sempre considerei uma prática terapêutica. (linhas 1-4)

a)   Em sua opinião, o que significa "me enxergar de forma inédita"?

Resposta pessoal. Sugestão: Significa se perceber de uma maneira original, nunca vista.

     b) Quando você viaja, também tem esse objetivo?

         Resposta pessoal.

    c) De acordo com o texto, o que teria motivado a viagem da autora  a Londres?

       Ela estava se sentindo angustiada.

2. Que relação pode ser estabelecida entre ser a única pessoa a ser revistada no aeroporto e ter um aspecto muçulmano?

     Há uma relação de causa/consequência. A causa é ter aparência de muçulmano e a consequência, ser revistada. Pelo relato da autora, nota-se que, antes mesmo dos ataques terroristas às torres gêmeas de Nova York, em 2001, por muçulmanos, a partir dos quais os aeroportos têm revistado as pessoas de modo bem mais rigoroso que antes, principalmente as pessoas de origem ou de aparência árabe, as revistas já focavam esses passageiros.

3. Releia o seguinte trecho:

O escritor Gustave Flaubert defendia a tese de que a nacionalidade de uma pessoa não deveria ser estabelecida por sua cidade de nascimento, e sim pelos locais pelos quais a pessoa se sentia atraída. "Meu país natal é aquele que amo, ou seja, aquele que me faz sonhar, que me faz sentir bem. Sou tão chinês quanto francês..." Naquele dia eu comecei a descobrir como se dava, na prática, essa amplitude informal de cidadania. (linhas 25-33)

a) Você concorda com essa tese? Por quê?

Resposta pessoal.

b)   Em sua opinião, por que o conceito de cidadania foi empregado ao lado do conceito de nacionalidade?

Resposta pessoal. Sugestão: O conceito de cidadania está, geralmente, restrito ao país de nascimento. No caso do enunciador desse relato, ele também se sente cidadão inglês.

      c) Qual é o sentido da expressão e sim no primeiro período? Reescreva o trecho, substituindo essa expressão em destaque por apenas uma conjunção de sentido equivalente.

A expressão e sim tem o sentido de oposição, fazendo correlação com o não citado anteriormente no período; portanto, pode ser substituída pela conjunção adversativa mas.

 

RELATO: CORTONA, NOBRE CIDADE - FRANCES MAYES - COM GABARITO

 RELATO: CORTONA, NOBRE CIDADE

                Frances Mayes

Cortona merece quase sete páginas no excelente Blue Guide: Northern Italy. O autor conduz meticulosamente o turista ao longo de cada rua, salientando os pontos de interesse. A partir dos portões da cidade, são recomendadas outras excursões pelos campos da vizinhança. Cada altar lateral do duomo é descrito de acordo com sua orientação relativa aos pontos cardeais; de tal modo que, se por acaso a pessoa souber onde fica o leste, depois de viajar pelas estradas sinuosas, poderá saber sua localização e se guiar sozinha por todos os cantos. O autor chegou a identificar todos os quadros escurecidos na área do coro. Ao ler esse guia, mais uma vez fico assombrada com toda a arte, a arquitetura, a história em uma única cidadezinha no alto de um morro. Esta é apenas uma de centenas de antigas atalaias contra saqueadores, empoleiradas para os passeios pitorescos de hoje.

Agora que conheço um pouco este lugar, leio com percepção redobrada. O guia me leva à trilha à sombra de acácias ao longo da muralha interior da cidade, e me lembro imediatamente das modestas casas de pedra de um lado, da vista para o Val di Chiana, do outro. Vejo, também, o cachorro de três pernas que mora na casa que sempre tem cuecas enormes secando no varal. Vejo as cadeiras de assento de palhinha que todos os moradores desse esplêndido trecho da muralha trazem para fora quando vêm olhar o pôr do sol e marcar o ponto com as estrelas. Ontem, num passeio por lá, quase pisei num rato morto ainda mole. No interior de um dos portais que dá direto para a rua estreita, vi de relance uma mulher segurando a cabeça nas mãos, sentada à mesa da cozinha. Se estava chorando ou tirando um cochilo, não sei.

MAYES, Frances. Sob o sol da Toscana. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 169-170.

Fonte: Livro: Língua Portuguesa: linguagem e interação/ Faraco, Moura, Maruxo Jr. – 3.ed. São Paulo: Ática, 2016. p. 175. 

Entendendo o texto

1.Que impressões você tem de Cortona depois de ter lido o relato de Frances Mayes?

Resposta pessoal.

2.Podemos afirmar que o segundo parágrafo do texto de Frances Mayes só podia ter sido escrito por alguém que visitou Cortona e a conhece bem. Por quê?

A autora afirma que já conhece o lugar e relembra o que viu, dando detalhes.

3.Se você fosse o autor de um relato sobre sua cidade, o que contaria sobre ela para incentivar o turismo?

Resposta pessoal.

4. Reflita: na sua opinião o que levaria as pessoas a terem impressões diferentes sobre um mesmo lugar?

Resposta pessoal.

Sugestão: Por diversos motivos, como a preferência pessoal por certos tipos de lugares; os objetivos de cada um ao visitar um determinado lugar; a experiência bem-sucedida ou não que possa ter tido durante a visitação; entre outros.

 

domingo, 4 de abril de 2021

RELATO/BIOGRAFIA: MANOEL DE BARROS - COM GABARITO

 Relato: Manoel de Barros

        Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze. Naquela ocasião escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no futuro. Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que eu queria era ser fraseador. Meu pai ficou meio vago, depois de ler a carta. Minha mãe inclinou a cabeça. Eu queria ser fraseador e não doutor. Então, o meu irmão mais velho perguntou: Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa? Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu: Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mas não botou enxada.

Manoel de Barros – Memórias inventadas. São Paulo: Alfaguara, 2018.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 6º ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição- 2018. p. 41-2.

Entendendo o relato:

01 – O que o poeta Manoel de Barros quis dizer ao afirmar que, desde cedo, já queria ser fraseador?

      Ele quis dizer que desde menino já queria ser poeta.

02 – Que frase do texto confirma que Manoel de Barros se descobriu poeta quando era adolescente?

      “O poeta nasceu de treze”.

03 – Releia o trecho a seguir.

        “[...] escrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu já decidira o que queria ser no futuro. Que eu não queria ser doutor. Nem doutor de curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras.” Responda:

a)   Quais profissões o poeta descarta ao afirmar que não queria ser “doutor de curar”, “doutor de fazer casa” nem “doutor de medir terras”?

As profissões de médico e de engenheiro.

b)   Na carta que escreveu aos pais, o autor afirma a eles o que não quer ser antes de contar o que queria ser no futuro. Em sua opinião, que motivo o levou a usar essa estratégia?

Resposta pessoal do aluno.

04 – Ao receberem a carta, pai, mãe e irmão tiveram reações diferentes. Identifique a reação de cada um.

      O pai ficou meio vago, a mãe abaixou a cabeça e o irmão questionou a possibilidade de se ganhar a vida como fraseador.

05 – Releia esta pergunta do irmão do poeta.

        “Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa?”.

a)   Ao fazer essa pergunta, que tipo de preocupação o irmão manifesta?

Manifesta preocupação com a remuneração do trabalho e se ele pode garantir a sobrevivência.

b)   Ao manifestar essa preocupação, o irmão de Manoel também revela sua opinião sobre o trabalho dos poetas. Qual seria essa opinião?

O irmão de Manoel provavelmente considera que esse trabalho não remunera o suficiente para garantir a sobrevivência de quem o pratica e dos que dele eventualmente dependem. Pode até considerar que ser poeta não é um trabalho.

06 – Na sociedade em que vivemos, há quem considere o poeta um artista, uma pessoa de grande sensibilidade, alguém que lida bem com as palavras. Mas há também aqueles que o consideram um sonhador, alguém que não tem os pés no chão ou julguem que sua atividade é irrelevante. O que você pensa sobre esse assunto?

      Resposta pessoal do aluno.

07 – O pai seguiu o conselho do irmão do poeta? O que o pai demonstrou com essa atitude?

      Não. Com essa atitude, o pai demonstrou respeitar a decisão do filho.

 

domingo, 24 de janeiro de 2021

RELATO/POEMA: O SONHO - JOSÉ PAULO PAES - COM GABARITO

 Relato/poema: O sonho

                    José Paulo Paes

        Alguns anos atrás tive um sonho estranho com a casa de Taquaritinga onde vivi até os 11 anos. Sonhei que era um menino voador que fora pousar, feito passarinho, no teto da velha casa, para de lá ficar espiando o que se passava dentro dela. Escrevi então um poema a que dei o título de “A casa”.

Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.

Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com corações de purpurina.

Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo.

Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos.

No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.

Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão.

Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.

Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.

No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.

E no telhado um menino medroso que espia todos eles; só que está vivo: trouxe-o até ali o pássaro dos sonhos.

Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.

Antes que ele acorde e se descubra também morto.

        O sonho só me deu a base e a atmosfera fantasmagórica do poema; para o resto, recorri às lembranças que tinha dos meus familiares, quase todos mortos àquela altura. A velha casa de Taquaritinga estava, abandonada havia anos, arruinando-se.

     Quem, eu? – Um poema como outro qualquer. São Paulo, Atual, 1996.

Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p. 115-6.

Fonte da imagem- https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.lpm-blog.com.br%2F%3Fp%3D7411&psig=AOvVaw0tWCGdMA-L-6dGqf5fw1oO&ust=1611609935150000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCJCXiIXBte4CFQAAAAAdAAAAABAO

Entendendo o relato/poema:

01 – O texto “O sonho” faz parte da autobiografia de José Paulo Paes de onde foi tirado também o texto “A casa”. Quando o autor teve o sonho descrito e quando escreveu o poema: na infância ou na idade adulta?

      Na idade adulta.

02 – Quem são os fantasmas da casa e o menino que os espia mencionados no poema?

      Os fantasmas são os familiares do autor, já mortos, e o menino é o próprio poeta, quando criança.

03 – Quais das personagens mencionadas no poema já haviam aparecido em “A casa”?

      O avô, o pai, a tia, a avó, o menino (o próprio poeta).

04 – No poema, as personagens aparecem caracterizadas da mesma forma como o foram no trecho escrito em prosa? Aponte semelhanças e/ou diferenças.

      Não. A caracterização no texto em prosa é mais detalhada e desenvolvida. No poema, é sintética e simbólica, havendo uma redução: cada personagem aparece no lugar da casa ao qual o poeta a associava, realizando apenas uma ação, a que ficou na memória do poeta (a mãe, no quarto, parindo; o pai, na sala de visitas, lendo, etc.).

05 – Leia:

        Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas”.

        Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa”.

a)   Em que tempo estão os verbos destacados? O que eles exprimem?

No imperativo afirmativo. Exprimem ordem ou pedido.

b)   Identifique no texto os advérbios e as locuções adverbiais que manifestam a urgência do menino em que a casa seja vendida.

Logo, depressa, antes que.

06 – Exceto o primeiro e os dois últimos versos, os outros escrevem ações dos familiares mortos e do menino. Identifique e copie no caderno os verbos empregados nesses versos. Em que tempo eles estão?

      Há, faz, imprime, lê, lustra, passa, conta, espia, está: presente do indicativo; morreu: pretérito perfeito; está parindo e (está) rachando: locuções verbais com o verbo auxiliar estar no presente e o verbo principal no gerúndio.

07 – Vimos que no texto “A casa” o tempo verbal predominante era o pretérito. No poema, o autor emprega principalmente o presente. Por quê?

      Na autobiografia ele narrava fatos antigos, de sua infância. No poema, descreve as cenas como se as estivesse visualizando no momento em que escreve.

08 – Reúna-se com um colega e escrevam no caderno um parágrafo explicando como vocês interpretam os sentimentos do poeta nos versos seguintes:

        “Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-se depressa.

         Antes que ele acorde e se descubra também morto”.

      Resposta pessoal do aluno.

sábado, 16 de janeiro de 2021

BIOGRAFIA/RELATO: A CASA - JOSÉ PAULO PAES - COM GABARITO

 RELATO/BIOGRAFIA: A CASA                      

  José Paulo Paes

       Não acredito que o futuro de quem quer que seja possa estar escrito com antecedência na configuração das linhas da mão ou dos astros do céu. Mas não posso deixar inteiramente de lado a ideia de o local de meu nascimento ter influído nos rumos de minha vida. Pois nasci numa livraria. Melhor dizendo, num quarto bem ao lado da Livraria, Papelaria e Tipografia J.V. Guimarães. É o que diz a placa da loja do meu avô materno, em cuja casa de Taquaritinga vim ao mundo no dia 22 de julho de 1926.

      Não me lembro evidentemente desse dia. Mas não deve ter sido diferente dos dias em que nasceram, anos depois, minhas duas irmãs, Ernestina e Fernanda. Em dias assim, a rotina da casa patriarcal de J. V. Guimarães mudava muito. As mulheres corriam apressadas de um lado para o outro, cochichando misteriosamente entre si. As crianças eram mandadas cedo para o quintal, advertidas de não fazer barulho para não incomodar minha mãe, cujos gemidos de parturiente eu e meu primo Quinzinho ouvíamos de longe, meio assustados.

        Nesses dias remotos os bebês não nasciam em hospitais. Nasciam em casa mesmo, pelas mãos de uma parteira ou de um clínico geral amigo da família. Para cada um dos seus dois filhos e de suas três filhas, meu avô mandava fazer um quarto. O de meus pais era o primeiro da casa, ao lado da sala de visitas e logo atrás da livraria, cujas largas portas de madeira, pintadas de azul, davam para a rua do Comércio. Mais tarde, mudaram-lhe o nome para rua Prudente de Morais, receio que para desgosto do meu avô. Ele não simpatizava muito com o regime republicano, porque exilara o velho Imperador, a quem ele admirava. Tanto assim que havia um retrato da família imperial pendurado em nossa sala de visitas, logo acima do piano alemão.

        Meu avô era português, mas viera ainda rapazola para o Brasil. Tivera uma vida meio aventurosa de bombeiro e soldado nos tempos de Floriano Peixoto. Já era tipógrafo e dono de jornal em Ribeirão Bonito, São Paulo, quando se casou com minha avó, Cândida Marçal, ou Dona Zizinha, emérita contadora de histórias de sacis, bruxas e assombrações. Os filhos do casal nasceram todos em Ribeirão Bonito. A família veio completa para Taquaritinga quando meu avô resolveu para lá transferir seus negócios, menos o jornal. [...]

        [...] De meu pai, Paulo Artur Paes da Silva, herdei o Paulo do meu nome; o José veio-me do avô paterno, conforme era praxe nas famílias portuguesas. Meu pai era português de nascença e nunca chegou a perder de todo o sotaque. Conheceu minha mãe em uma de suas passagens de caixeiro-viajante por Taquaritinga e com ela se casou em 1925.

        Embora tivesse apenas o curso primário, era um homem inteligente, ativo, habilidoso. Foi dono de um semanário, A Notícia, e de um escritório de contabilidade e corretagem de seguros. Mas terminou seus dias como caixeiro-viajante. Gostava de ler: tinha no quarto uma pequena biblioteca, na qual predominavam os romances policiais, por que era fanático, e livros sobre maçonaria, de que era membro. Além de marceneiro amador, era um excelente cozinheiro de fim de semana. Nos sábados e domingos, apossava-se da cozinha para fazer um arroz de frango e umas iscas de bacalhau simplesmente divinos. Uma festa culinária para a família toda, que nos outros dias tinha de suportar a comida insossa de vovó Zizinha.

        Minha mãe, que se chamava Diva Guimarães Paes, completara apenas o primário, mas redigia com correção e certo apuro literário, numa letra bonita, as cartas que me escrevia toda semana quando fui estudar fora. Era uma mulher baixinha e vivaz, sempre risonha (raríssimas vezes a vi triste), de uma bondade e de uma solicitude a toda prova. Com meu avô aprendera rudimentos de arte tipográfica e chegara a imprimir um jornalzinho seu. Era uma leitora voraz dos romances água-com-açúcar da coleção das Moças e dos folhetins de capa e espada assinados pela minha avó, que os recebia semanalmente pelo correio e os encadernava em grossos volumes. Para a criançada ainda analfabeta da casa, os folhetins de Dona Zizinha não interessavam. Interessavam, sim, as histórias de assombração por ela contadas numa voz de arrepiar, cheia de efeitos sonoros.

        Nos dias da minha infância interioriana, havia uma separação nítida entre o mundo dos adultos e o mundo das crianças. Ficávamos o menos possível dentro de casa, pois ali estávamos sob o olhar vigilante e autoritário dos mais velhos. Em especial da tia Aglai, que supervisionava a arrumação da casa. Ela nos dava bons pitos quando, vindos do quintal, sujávamos o seu chão de tábuas lavadas, que mais tarde passaram a ser enceradas a capricho. Durante as refeições na grande mesa de abrir – meu avô ocupava a cabeceira e eu tinha o privilégio de sentar-me à sua direita –, tia Aglai me chamava a atenção toda vez que eu apoiava o cotovelo para segurar a cabeça numa das mãos, enquanto comia enfastiadamente com a outra: “Tem medo que a sua cabeça caia dentro do prato, é?”

        Longe dos pitos dos adultos, o quintal era a pátria da liberdade que nos pertencia quase por inteiro. Quase, porque, se bem pudéssemos trepar pelas árvores de fruta e nos empanturrar de mangas, laranjas, tangerinas, jabuticabas e uvaias, os canteiros de verduras plantadas pelo meu avô e os canteiros de flores ciumentamente cuidados pela minha avó eram-nos zona proibida. Quem se atrevesse a passar-lhes a fronteira estava sujeito a um puxão de orelhas. O meu companheiro de brinquedos era o primo Quinzinho, seis meses mais novo que eu e hoje um veterano endodontista e, São José do Rio Preto.

        Para a nossa imaginação inflamada pelas aventuras dos seriados das matinês de sábado e domingo, o quintal se transformava, com a maior facilidade do mundo, em deserto árabe, selva africana ou faroeste bravio. Tínhamos um gosto especial por inventar esconderijos e passagens secretas. Quando meu tio Arnóbio, pai de Quinzinho, construiu casa própria e para ela se mudou, eu ia às vezes brincar no seu pomar. Ali ajudei meu primo a escavar uma passagem secreta sob o muro da frente, por onde nos esgueirávamos para a rua quando nos dava na telha. O diabo foi que, com a primeira chuva, um pedaço do muro desabou sobre o buraco sorrateiramente escavado, para surpresa do tio Arnóbio, que nunca conseguiu descobrir a verdadeira causa do desastre.

             Quem, eu? – Um poeta como outro qualquer. São Paulo, Atual, 1996.

Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Língua Portuguesa, 6ª série- Editora Ática – São Paulo, 2003 – p.108-112.

Fonte da imagem acima:https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fmyloview.com.br%2Ffotomural-desenho-de-esboco-da-antiga-casa-entre-o-pomar-no-11C239&psig=AOvVaw0xijOgcVlXiQVQEQxMsiCk&ust=1610929117935000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCOitiunYoe4CFQAAAAAdAAAAABAD

Entendendo o relato:

01 – Nesse texto o autor nos conta um pouco de sua infância. Converse com seus colegas: que pessoas e fatos marcaram sua infância? Você se lembra de suas brincadeiras, de seus companheiros?

      Resposta pessoal do aluno.

02 – Mesmo que você não conheça algumas palavras empregadas no texto, provavelmente conseguiu entender o significado pelo contexto. Se ainda for necessário, consulte o dicionário.

·        Avultar: aumentar, acentuar.

·        Emérita: sábia, conhecedora.

·        Endodontista: profissional que pratica endodontia.

·        Esgueirar-se: escapulir, safar-se.

·        Parturiente: mulher que está prestes a parir.

·        Patriarcal: que se refere ao pai.

03 – Logo no início do texto o autor afirma não acreditar que o futuro de alguém possa estar escrito nas linhas da mão ou na configuração dos astros.

a)   Você concorda com a opinião dele?

Resposta pessoal do aluno.

b)   Releia o boxe “Conheça o autor”. Qual a profissão de José Paulo Paes?

Escritor.

c)   Que fato passado ele acredita que o influenciou na escolha de sua profissão?

O fato de ter nascido em uma casa vizinha a uma livraria.

04 – Quando e onde o autor do texto nasceu?

      Em 22 de julho de 1926, em Taquaritinga.

05 – Releia:

        “... As mulheres corriam apressadas de um lado para o outro, cochichando misteriosamente entre si. As crianças eram mandadas cedo para o quintal, advertidas de não fazer barulho para não incomodar minha mãe, cujos gemidos de parturiente eu e meu primo Quinzinho ouvíamos de longe, meio assustados.” Essa cena é descrita do ponto de vista de uma criança ou de um adulto? Justifique sua resposta.

      Do ponto de vista de uma criança. Os meninos viam as mulheres correrem e não eram informados sobre o que estava acontecendo; mandados para o quintal, ouviam gemidos cuja natureza não identificavam e que, por isso, assustavam.

06 – José Paulo Paes conta como foi escolhido seu nome: a partir dos nomes do avô paterno, José, e do pai, Paulo, como era costume nas famílias portuguesas. E o seu nome, como foi escolhido? Se não souber, converse com seus pais e familiares sobre isso e anote suas observações. Traga-as para a classe e comente-as com seus colegas.

      Resposta pessoal do aluno.

07 – Forma dupla com um colega para responder às questões:

a)   Na sua opinião, o leitor desse texto fica conhecendo alguns aspectos da época em que o autor viveu? Por quê?

Sim, em geral, ao ler o relato da vida de uma pessoa, o leitor entra também em contato com a cultura da época em que essa pessoa viveu.

b)   Que semelhanças e diferenças há entre os costumes descritos no texto e os que existem em sua região hoje em dia, no que se refere a relações familiares, atividades ou profissões dos adultos e atividades e brincadeiras das crianças?

Resposta pessoal do aluno.

08 – Ao longo do texto, o autor vai caracterizando os familiares com os quais conviveu na infância: o pai, a mãe, o avô, a avó, a tia Aglai, o primo Quinzinho. Descreva oralmente cada um deles. Na sua opinião, qual o mais interessante? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno.

09 – Releia um trecho em que o autor fala sobre sua mãe: “Era uma leitora voraz dos romances água-com-açúcar da coleção das Moças e dos folhetins de capa e espada assinados pela minha avó [...]”.

a)   Qual o significado das expressões destacadas no trecho acima?

A expressão água-com-açúcar significa “romântico, piegas, ingênuo”; “romances água-com-açúcar” são histórias de amor ingênuas e adocicadas. Folhetins de capa e espada eram os fragmentos de romances de aventuras cavalheirescas publicadas nos jornais, dia a dia ou semanalmente.

b)   Perguntes a algumas pessoas idosas de sua família ou conhecidas que livros elas costumavam ler no passado. Elas conhecem as leituras mencionadas no texto? Anote no caderno as informações recolhidas e comente-as com os colegas.

Resposta pessoal do aluno.

10 – A avó do autor gostava muito de ler e era grande contadora de histórias. Converse com seus colegas: alguém contava ou ainda conta histórias para você? Você gosta dessa atividade? Que lembranças você tem de sua infância em relação a ouvir histórias?

      Resposta pessoal do aluno.