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quarta-feira, 14 de julho de 2021

ROMANCE: INFÂNCIA (FRAGMENTO I) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Romance/Literatura: Infância (Fragmento I)

             Graciliano Ramos

        [...] Aos nove anos, eu era quase analfabeto. E achava-me inferior aos Mota Lima, nossos vizinhos, muito inferior, construído de maneira diversa. Esses garotos felizes, para mim eram perfeitos: andavam limpos, riam alto, frequentavam escola decente e possuíam máquinas que rodavam na calçada como trens. Eu vestia roupas ordinárias, usava tamancos, enlameava-me no quintal, engenhando bonecos de Barro, falava pouco.

        Na minha escola de ponta de rua, alguns desgraçadinhos cochilavam em bancos estreitos e sem encosto, que às vezes se raspavam e lavavam. [...]

        O lugar de estudos era isso. Os alunos se imobilizavam nos bancos: cinco horas de suplício, uma crucificação. Certo dia vi moscas na cara de um, roendo o canto de olho, entrando no olho. E o olho sem mexer, como se o menino estivesse morto. Não há prisão pior que uma escola primária do interior. A imobilidade e a insensibilidade me aterraram. Abandonei os cadernos e as auréolas, não deixei que as moscas me comessem. Assim, aos nove anos ainda não sabia ler.

        Ora, uma noite, depois do café, meu pai mandou buscar um livro que deixara na cabeceira da cama. Novidade: meu velho nunca se dirigir a mim. E eu, engolido o café, beijava-lhe a mão, porque isto era praxe, mergulhava na rede e adormecia. Espantado, entrei no quarto, peguei com repugnância o antipático objeto e voltei a sala de jantar. Aí recebi ordem para me sentar e abrir o volume. Obedeci, engulhando, com a vaga esperança de que uma visita me interrompesse. Ninguém nos visitou naquela noite extraordinária.

        Meu pai determinou que eu principiasse a leitura. Principiei. Mastigando as palavras, gaguejando, gemendo uma cantilena medonha, indiferente à pontuação, saltando linhas e repisando linhas, alcancei o fim da página, sem ouvir gritos. Parei surpreendido, virei a folha, e continue arrastar-me na gemedeira, como um carro em estrada cheia de buracos.

        Com certeza o negociante recebera alguma dívida perdida: no meio do capítulo pôs-se a conversar comigo, perguntou-me se eu estava compreendendo o que lia. Explicou-me que se tratava de uma história, um romance, exigiu atenção e resumiu a parte já lida. Um casal com filhos andava numa floresta, em uma noite de inverno, perseguidos por lobos, cachorros selvagens. Depois de muito correr, essas criaturas chegavam à cabana de um lenhador. Era eu ou não era? Traduziu-me em linguagem de cozinha diversas expressões literárias.

        Animei-me a parolar. Sim, realmente havia alguma coisa no livro, mas era difícil conhecer tudo. [...].

RAMOS, Graciliano. Infância. Rio de Janeiro: Record, 2006.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 7º ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 162-3.

Entendendo o romance:

01 – O que você imagina que aconteceu com ele naquele lugar?

      Resposta pessoal do aluno.

02 – Será que ele aprendeu a ler?

      Resposta pessoal do aluno.

03 – E você, como foi sua experiência com as primeiras leituras?

      Resposta pessoal do aluno.

04 – No início do primeiro parágrafo e no fim do terceiro, o menino fala sobre um problema que o incomoda. Qual é esse problema?

      Ele não sabia ler.

05 – Quem é o narrador do texto, ou seja, quem conta a história?

      O menino.

06 – O que você pensa a respeito da escola em que o menino estudava?

      Resposta pessoal do aluno.

07 – Você acha que existem escolas como aquela em que o garoto do texto estudava? Converse com a turma e com o professor(a) sobre esse assunto.

      Resposta pessoal do aluno.

sábado, 29 de maio de 2021

CONTO: A TERRA DOS MENINOS PELADOS - (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Conto: A terra dos meninos pelados – Fragmento.

        Graciliano Ramos

  Havia um menino diferente dos outros meninos. Tinha o olho direito preto, o esquerdo azul e a cabeça pelada. Os vizinhos mangavam dele e gritavam:

        — Ó pelado!

        Tanto gritaram que ele se acostumou, achou o apelido certo, deu para se assinar a carvão, nas paredes: Dr. Raimundo Pelado. Era de bom gênio e não se zangava; mas os garotos dos arredores fugiam ao vê-lo, escondiam-se por detrás das árvores da rua, mudavam a voz e perguntavam que fim tinham levado os cabelos dele. Raimundo entristecia e fechava o olho direito. Quando o aperreavam demais, aborrecia-se, fechava o olho esquerdo. E a cara ficava toda escura.

        Não tendo com quem entender-se, Raimundo Pelado falava só, e os outros pensavam que ele estava malucando.

        Estava nada! Conversava sozinho e desenhava na calçada coisas maravilhosas do país de Tatipirun, onde não há cabelos e as pessoas têm um olho preto e outro azul.

        Um dia em que ele preparava, com areia molhada, a serra de Taquaritu e o rio das Sete Cabeças, ouviu os gritos dos meninos escondidos por detrás das árvores e sentiu um baque no coração.

        — Quem raspou a cabeça dele? perguntou o moleque do tabuleiro.

        — Como botaram os olhos de duas criaturas numa cara? berrou o italianinho da esquina.

        — Era melhor que me deixassem quieto, disse Raimundo baixinho. Encolheu-se e fechou o olho direito. Em seguida, foi fechando o olho esquerdo, não enxergou mais a rua. As vozes dos moleques desapareceram, só se ouvia a cantiga das cigarras. Afinal as cigarras se calaram.

        Raimundo levantou-se, entrou em casa, atravessou o quintal e ganhou o morro. Aí começaram a surgir as coisas estranhas que há na terra de Tatipirun, coisas que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto. Sentiu uma grande surpresa ao notar que Tatipirun ficava ali perto de casa. Foi andando na ladeira, mas não precisava subir: enquanto caminhava, o monte ia baixando, baixando, aplanava-se como uma folha de papel. E o caminho, cheio de curvas, estirava-se como uma linha. Depois que ele passava, a ladeira tornava a empinar-se e a estrada se enchia de voltas novamente.

        — Querem ver que isto por aqui já é a serra de Taquaritu? pensou Raimundo.

        — Como é que você sabe? roncou um automóvel perto dele.

        O pequeno voltou-se assustado e quis desviar-se, mas não teve tempo. O automóvel estava ali em cima, pega não pega. Era um carro esquisito: em vez de faróis, tinha dois olhos grandes, um azul, outro preto.

        — Estou frito, suspirou o viajante esmorecendo.

        Mas o automóvel piscou o olho preto e animou-o com um riso grosso de buzina:

        — Deixe de besteira, seu Raimundo. Em Tatipirun nós não atropelamos ninguém.

        Levantou as rodas da frente, armou um salto, passou por cima da cabeça do menino, foi cair cinquenta metros adiante e continuou a rodar fonfonando. Uma laranjeira que estava no meio da estrada afastou-se para deixar a passagem livre e disse toda amável:

        — Faz favor.

        — Não se incomode, agradeceu o pequeno. A senhora é muito educada.

        — Tudo aqui é assim, respondeu a laranjeira.

        — Está se vendo. A propósito, por que é que a senhora não tem espinhos?

        — Em Tatipirun ninguém usa espinhos, bradou a laranjeira ofendida. Como se faz semelhante pergunta a uma planta decente?

        — É que sou de fora, gemeu Raimundo envergonhado. Nunca andei por estas bandas. A senhora me desculpe. Na minha terra os indivíduos de sua família têm espinhos.

        — Aqui era assim antigamente, explicou a árvore. Agora os costumes são outros. Hoje em dia, o único sujeito que ainda conserva esses instrumentos perfurantes é o espinheiro-bravo, um tipo selvagem, de maus bofes. Conhece-o?

        — Eu não senhora. Não conheço ninguém por esta zona.

        — É bom não conhecer. Aceita uma laranja?

        — Se a senhora quiser dar, eu aceito.

        A árvore baixou um ramo e entregou ao pirralho uma laranja madura e grande.

        — Muito agradecido, dona Laranjeira. A senhora é uma pessoa direita. Adeus! Tem a bondade de me ensinar o caminho?

        — É esse mesmo. Vá seguindo sempre. Todos os caminhos são certos.

        — Eu queria ver se encontrava os meninos pelados.

        — Encontra. Vá seguindo. Andam por aí.

        — Uns que têm um olho azul e outro preto?

        — Sem dúvida. Toda gente tem um olho azul e outro preto.

        — Pois até logo, dona Laranjeira. Passe bem.

        — Divirta-se. [...]

        Raimundo deixou a serra de Taquaritu e chegou à beira do rio das Sete Cabeças, onde se reuniam os meninos pelados, bem uns quinhentos, alvos e escuros, grandes e pequenos, muito diferentes uns dos outros. Mas todos eram absolutamente calvos, tinham um olho preto e outro azul.

        O viajante rondou por ali uns minutos, receoso de puxar conversa, pensando nos garotos que zombavam dele na rua. Foi-se chegando e sentou-se numa pedra, que se endireitou para recebe-lo. Um rapazinho aproximou-se, examinando-lhe, admirado, a roupa e os sapatos. Todos ali estavam descalços e cobertos de panos brancos, azuis, amarelos, verdes, roxos, cor das nuvens do céu e cor do fundo do mar, inteiramente iguais às teias que as aranhas vermelhas fabricavam.

        — Eu queria saber se isto aqui é o país de Tatipirun, começou Raimundo.

        — Naturalmente, respondeu o outro. Donde vem você?

        Raimundo inventou um nome para a cidade dele que ficou importante:

        — Venho de Cambacará. Muito longe.

        — Já ouvimos falar, declarou o rapaz. Fica além da serra, não é isto?

        — É isso mesmo. Uma terra de gente feia, cabeluda, com olhos de uma cor só. Fiz boa viagem e tive algumas aventuras.

        [...]

        Raimundo deixa o rapazinho para trás, prossegue seu caminho e, em seguida, encontra com um tronco, que lhe diz:

        — Espera aí. Um instante. Quero apresentá-lo à aranha vermelha, amiga velha que me visita sempre. Está aqui, vizinha. Este rapaz é nosso hóspede.

        A aranha vermelha balançou-se no fio, espiando o menino por todos os lados. O fio se estirou até que o bichinho alcançou o chão. Raimundo fez um cumprimento:

        — Boa tarde, dona Aranha. Como vai a senhora?

        — Assim, assim, respondeu a visitante. Perdoe a curiosidade. Por que é que você põe esses troços em cima do corpo?

        — Que troços? A roupa? Pois eu havia de andar nu, dona Aranha? A senhora não está vendo que é impossível?

        — Não é isso, filho de Deus. Esses arreios que você usa são medonhos. Tenho ali umas túnicas no galho onde moro. Muito bonitas. Escolha uma.

        Raimundo chegou-se à árvore próxima e examinou desconfiado uns vestidos feitos daquele tecido que as aranhas vermelhas preparam. Apalpou a fazenda, tentou rasgá-la, chegou-a ao rosto para ver se era transparente. Não era.

        — Eu nem sei se poderei vestir isto, começou hesitando. Não acredito.

        — Que é que você não acredita? perguntou a proprietária da alfaiataria.

        — A senhora me desculpa, cochichou Raimundo. Não acredito que a gente possa vestir roupa de teia de aranha.

        — Que teia de aranha! rosnou o tronco. Isso é seda e da boa. Aceite o presente da moça.

        — Então muito obrigado, gaguejou o pirralho. Vou experimentar.

        Escolheu uma túnica azul, escondeu-se no mato e, passados minutos, tornou a mostrar-se vestido como os habitantes de Tatipirun. Descalçou-se e sentiu nos pés a frescura e a maciez da relva. Lá em cima os discos enormes das vitrolas giravam; as cigarras chiavam músicas em cima deles, músicas como ninguém ouviu; sombras redondas espalhavam-se no chão.

        — Este lugar é ótimo, suspirou Raimundo. Mas acho que preciso voltar. Preciso estudar a minha lição de geografia.

        Nisto ouviu uma algazarra e viu através dos ramos a população de Tatipirun correndo para ele:

        — Cadê o menino que veio de Cambacará? Eram milhares de criaturas miúdas, de cinco a dez anos, todas cobertas de teias de aranha, descalças, um olho preto e outro azul, as cabeças peladas nuas.

        Não havia pessoas grandes, naturalmente.

        [...]

RAMOS, Graciliano. Alexandre e outros heróis. São Paulo: Record, 1991.

Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 8º ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 133-7.

Entendendo o conto:

01 – Como eram fisicamente as pessoas e seres de Tatipirun?

      A maioria dos habitantes se assemelhava ao menino, pois tinha a cabeça pelada e um olho preto e outro azul. Até mesmo o automóvel tinha, no lugar dos faróis, dois olhos parecidos com os do menino e a laranjeira não tinha espinhos.

02 – Identifique e copie o trecho em que Raimundo passa de seu lugar de origem para a terra de Tatipirun.

     Raimundo levantou-se, entrou em casa, atravessou o quintal e ganhou o morro. Aí começaram a surgir as coisas estranhas que há na terra de Tatipirun, coisas que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto.”

03 – Ao chegar àquele novo mundo, Raimundo conhece várias personagens. Como elas agem com o menino? Transcreva um trecho do texto que possa ter como tema uma atitude de gentileza.

      Elas eram dóceis, compreensivas e gentis, ofereciam a ele todo tipo de assistência que contribuísse para o seu bem-estar. Um exemplo disso está no seguinte trecho:

        “[...] Uma laranjeira que estava no meio da estrada afastou-se para deixar a passagem livre e disse toda amável:

        — Faz favor.

        — Não se incomode, agradeceu o pequeno. A senhora é muito educada.”

04 – Releia o que diz a aranha a respeito das roupas de Raimundo:

        “[...] Esses arreios que você usa são medonhos. [...]”.

a)   O que a aranha quis dizer com essa frase?

Que as roupas eram desagradáveis, não eram nada confortáveis; impediam os movimentos do menino e não o deixavam à vontade.

b)   O que a frase revela sobre a maneira como viviam os habitantes da terra visitada pelo menino?

Revela que os habitantes de Tatipirun viviam mais confortavelmente e com maior liberdade e harmonia do que os do lugar de origem de Raimundo.

c)   Raimundo gostou do estilo de vida daquele lugar? Como você chegou a essa resposta?

Sim, ele manifestou várias vezes seu encantamento enquanto ia conversando com os habitantes que encontrava. Exemplo possível: “Este lugar é ótimo, suspirou Raimundo.”

05 – Releia o diálogo a seguir, retirado do texto:

        “[...] Uma laranjeira que estava no meio da estrada afastou-se para deixar a passagem livre e disse toda amável:

        — Faz favor.

        — Não se incomode, agradeceu o pequeno. A senhora é muito educada.

        — Tudo aqui é assim, respondeu a laranjeira.

        — Está se vendo. A propósito, por que é que a senhora não tem espinhos?

        — Em Tatipirun ninguém usa espinhos, bradou a laranjeira ofendida. Como se faz semelhante pergunta a uma planta decente?”

·        Releia a última frase do diálogo e identifique o trecho em que há emprego de linguagem metafórica. Em seguida, explique a metáfora.

A linguagem metafórica é usada no trecho “ninguém usa espinhos”. A metáfora se dá pela comparação entre o espinho, que é algo que machuca, fere, e as atitudes agressivas dos meninos de onde Raimundo morava. Em Tatipirun as pessoas não eram indelicadas umas com as outras, não havia troca de ofensas.

06 – Quais eram as reações dos meninos da rua onde Raimundo morava diante da aparência do garoto? Em sua opinião, por que isso ocorria? 

      A aparência de Raimundo gerava discriminação, gozarão e maus-tratos por parte dos outros meninos. Provavelmente, isso acontecia porque eles não aceitavam o fato de Raimundo ser diferente deles.

07 – E em Tatipirun? De que modo a aparência de Raimundo era encarada pelos habitantes desse lugar?

      Em Tatipirun, a aparência de Raimundo era o motivo de sua identificação com os habitantes do lugar, já que os meninos de lá tinham as mesmas características e ele se sentia acolhido por todos.

08 – Identifique no texto quais personagens estão relacionadas aos universos indicados a seguir:

a)   Ao mundos dos humanos.

Os outros meninos.

b)   Ao universo dos objetos materiais (inanimados que se tornaram animados na história).

O automóvel.

c)   Ao mundo animal.

A aranha.

d)   Ao mundo vegetal.

A laranjeira e o tronco.

09 – De que forma os elementos mágicos estão presentes na terra dos meninos pelados?

      Seres do mundo animal e vegetal e objetos inanimados que adquirem características humanas (agem e conversam com o menino); automóvel, aranha, laranjeira, ladeira; havia discos e vitrolas que giravam no ar, músicas estranhas, túnicas feitas de teia de aranha, cigarras chiando músicas que nunca ninguém ouviu, sombras redondas espalhadas no chão.

10 – Localize no texto e copie um trecho que você considere belo e poético, que lhe chame a atenção pela maneira como o autor seleciona e combina as palavras. Explique por que escolheu esse trecho.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: “Descalçou-se e sentiu nos pés a frescura e a maciez da relva. Lá em cima os discos enormes das vitrolas giravam; as cigarras chiavam músicas em cima deles, músicas como ninguém ouviu; sombras redondas espalhavam-se no chão.”.  

 

 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

TEXTO: MEU PAI - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Texto: MEU PAI

          Graciliano Ramos 

        Espanto, e enorme, senti ao enxergar meu pai abatido na sala, o gesto lento.  Habituara-me a vê-lo grave, silencioso, acumulando energia para gritos medonhos. Os gritos vulgares perdiam-se; os dele ocasionavam movimentos singulares:  as pessoas atingidas baixavam a cabeça, humilde, ou corriam a executar ordens. Eu era ainda muito novo para compreender que a fazenda lhe pertencia.  Notava diferenças entre os indivíduos que se sentavam nas redes e os que se acocoravam no alpendre. O gibão de meu pai tinha diversos enfeites; no de amaro havia numerosos buracos e remendos. As nossas roupas grosseiras pareciam-me luxuosas comparadas à chita de Sinhá Leopoldina, à camisa de José Baía, sura, de algodão cru. Os caboclos se estazavam, suavam, prendiam arame farpado nas estacas. Meu pai vigiava-os, exigia que se mexessem desta ou daquela forma, e nunca estava satisfeito, reprovava tudo, com insultos e desconchavos. Permanente, essa birra tornava-se razoável e vantajosa: curvara espinhaços, retesara músculos, cavara na piçarra e na argila o açude que se cobria de patos, mergulhões e flores de baronesa. Meu pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso. Não me ocorria que o poder estivesse fora dele, de repente o abandonasse, deixando-o fraco e normal, num gibão roto sobre a camisa curta...

        Sentado junto às armas de fogo e aos instrumentos agrícolas, em desânimo profundo, as mãos inertes, pálido, o homem agreste murmurava uma confissão lamentosa à companheira. As nascentes secavam, o gado se finava no carrapato e na morrinha. Estranhei a morrinha e estranhei o carrapato, forças evidentemente maiores que as de meu pai. Não entendi o sussurro lastimoso, mas adivinhei que ia surgir transformação. A vila, uma loja e dinheiro entraram-me nos ouvidos. O desalento e a tristeza abalaram-me. Explicavam a sisudez, o desgosto habitual, as rugas, as explosões de pragas e de injúrias. Mas a explicação me apareceu anos depois. Na rua examinei o ente sólido, áspero com os trabalhadores, garboso nas cavalhadas. Vi-o arrogante, submisso, agitado, apreensivo – um despotismo que às vezes se encolhia, impotente e lacrimoso. A impotência e as lágrimas não nos comoviam. Hoje acho naturais as violências que o cegavam. Se ele estivesse embaixo, livre de ambições, ou em cima, na prosperidade, eu e o moleque José teríamos vivido em sossego. Mas no meio, receando cair, avançando a custo, perseguido pelo verão, arruinado pela epizootia, indeciso, obediente ao chefe político, à justiça e ao fisco, precisava desabafar, soltar a zanga concentrada. Aperreava o devedor e afligia-se temendo calotes. Venerava o credor e, pontual no pagamento, economizava com avareza. Só não economizava pancadas e repreensões. Éramos repreendidos e batidos.

    Graciliano Ramos – Infância. São Paulo, Record, 1992. P. 25-27.

     Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 86-8.

Entendendo o texto: 

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Acocoravam-se: agachavam-se, ficavam de cócoras.

·        Alpendre: área coberta diante da casa.

·        Gibão: casaco de couro.

·        Sura: surrada.

·        Estazavam: cansavam, fatigavam.

·        Desconchavos: disparates, despropósitos.

·        Retesara: enrijecera, tornara rijo, duro.

·        Piçarra: rocha argilosa, cascalho.

·        Inertes: paradas, sem força.

·        Agreste: rústico, rude, áspero.

·        Morrinha: sarna epidêmica do gado.

·        Sisudez: seriedade, gravidade.

·        Ente: ser.

·        Garboso: elegante.

·        Despotismo: autoritarismo, tirania.

·        Epizootia: doença, contagiosa ou não, que ataca numerosos animais ao mesmo tempo e no mesmo lugar.

·        Aperreava: aborrecia, incomodava.

·        Calotes: logros, fraudes, danos.

·        Avareza: apego excessivo ao dinheiro, mesquinhez.

02 – Copie a alternativa correta. O narrador é:

a)   Um menino assustado pela agressividade do pai.

b)   Um adulto lembrando das impressões causadas por seu pai em sua infância.

c)   Um adulto falando das relações com seu pai.

03 – Que observações levam o narrador, ainda criança, a deduzir que seu pai era um homem poderoso?

      Ele percebia a diferença na roupa que vestiam, nas atitudes submissas das pessoas que viviam à volta do pai.

04 – O narrador está contando fatos acontecidos em que época de sua vida?

      Na primeira infância.

05 – Quais as características psicológicas do pai presentes no texto?

      O pai aparece como autoritário, violento, déspota, parcimonioso, pontual em seus pagamentos.

06 – Copie a alternativa correta. No texto, o pai:

a)   Tem sempre o mesmo comportamento.

b)   Apresenta uma mudança de comportamento.

c)   Apresenta constantes alterações em seu comportamento.

07 – Por que o narrador se surpreende com a mudança de comportamento do pai?

      Porque ele se acostumara ao seu modo grave de ser, sempre gritando com os empregados.

08 – Por que o pai repreendia e castigava os filhos?

      Para descarregar as frustações dele.

09 – Ao justificar, depois de adulto, o violento comportamento paterno, a que ele atribui esta atitude?

      A tentativa de manter uma posição social em meio ao verão, à epizootia, à política local e ao fisco.

10 – O narrador, quando criança, estranha o fato de haver forças maiores que as de seu pai. Que forças são essas?

      As forças da natureza (seca, doenças nos animais) e as forças políticas (chefe político local, justiça, fisco).

11 – As fortes pressões sofridas pelo pai para manter-se nos negócios faziam-no adquirir uma dimensão mais humana, tornavam-no “normal”. Pode-se dizer que, nessas ocasiões, estabelecia-se alguma afetividade entre o pai e os filhos? Retire do texto uma frase que justifique sua resposta.

      Não. Eles apenas o temiam, não o amavam: “A impotência e as lágrimas não nos comoviam”.

 

terça-feira, 14 de maio de 2019

ROMANCE: SÃO BERNARDO (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

Romance: São Bernardo - (fragmento)
                   
                   Graciliano Ramos

        O episódio a ser lido situa-se no final da obra, dois anos após a morte de Madalena. Os amigos deixaram de frequentar a casa. Paulo Honório, concretizando uma antiga ideia de compor um livro com auxílio de pessoas mais entendidas, entrega-se à empreitada de contar a sua história. Após a leitura do fragmento abaixo, responda às questões sobre a obra em questão.
        “Sou um homem arrasado. Doença! Não. Gozo de perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nenhum médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.
        O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casaca espessa e vê ferir cá dentro a sensibilidade embotada.
        Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? [...]
        As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.
        Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.
         Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-o. sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.    
        De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:
        – Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.
        A agitação diminui.
        – Estraguei a minha vida estupidamente.
        Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos…Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.
         A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele.         
        Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.
        Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.     
        Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.      
        E a desconfiança terrível, que me aponta inimigos em toda a parte!
        A desconfiança é também consequência da profissão.
        Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.
        Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.
        Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.
        A vela está quase a extinguir-se.
        Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.
        Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.
        É horrível! Se aparecesse alguém…Estão todos dormindo.
        Se ao menos a criança chorasse…Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!
        Casimiro Lopes está dormindo, Marciano está dormindo. Patifes!
        E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”

        Graciliano Ramos (13.ed. Martins Fontes: São Paulo, 1970. p.241 e 246-8).
Entendendo o texto:

01 – Dê o significado das palavras a abaixo:
·        Imputar: atribuir.
·        Diligenciar: esforçar-se, empenhar-se.
·        Molecoreba: molecada.
·        Cambembe: desajeitado, desastrado, sem importância.
·        Nordeste: vento.

02 – No final da vida, Paulo Honório admite ser e ter sido um homem bruto, egoísta e insensível. E mais: sente-se feio, um aleijado, um monstro. Lembrando-se de Madalena, chega a ferir-se nas mãos e nos lábios.
a)   Identifique, na linguagem do narrador-personagem, traços de sua brutalidade como pessoa.
Expressões como “vomitou dois artigos”; “O Brito... era uma besta”; “molecoreba”.

b)   De acordo com o narrador-personagem, de que provêm essas características?
Da profissão.

c)   Nessa explicação, nota-se a influência de uma corrente científica do século XIX. Qual é ela?
O determinismo.

d)   O que o sentimento de se achar fisicamente monstruoso revela a respeito da condição psicológica e moral de Paulo Honório?
Que ele se sente culpado pela destruição de Madalena e de sua própria vida.

e)   Que tipo de desejo inconsciente é revelado no trecho: “Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue”?
O desejo de autopunição, autoflagelação.

f)    Ao fazer um balanço de seu relacionamento com Madalena, Paulo Honório afirma que, se pudesse recomeçar sua vida com ela, tudo aconteceria de novo. Por que ele pensa assim?
Porque não se sente capaz de mudar.

03 – Segundo o crítico João Luís Lafetá, São Bernardo narra a trajetória de um burguês, Paulo Honório, que passara da condição de caixeiro-viajante e guia de cego à de rico proprietário da Fazenda São Bernardo. Para atingir seus objetivos capitalistas, o protagonista elimina todos os empecilhos que se colocam à sua frente, inclusive pessoas.
a)   Releia este trecho:
“Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?”
Que opinião Paulo Honório tem agora sobre o princípio capitalista da acumulação?
      Chega a consciência de que sua ânsia desenfreada de trabalhar para acumular não levou a nada; está sozinho, quase sem ter a quem deixar sua fortuna, e sua fazenda está em decadência.

b)   Karl Marx já apontava, no século XIX, um fenômeno decorrente das relações do sistema capitalista, a coisificação ou reificação, que consiste na extrema importância que se dá ao valor de troca da mercadoria, e não ao seu valor de uso. No plano das relações humanas, o interesse prevalece sobre sentimentos ou princípios morais, e as pessoas passam a ser vistas como coisas, como objetos. Identifique no texto uma passagem ou situação que evidencie a visão reificada que Paulo Honório tem do mundo.
Em especial a forma como ele se refere aos empregados Mestre Caetano, Rosa e aos filhos desse casal. Ele também reconhece que tratou mal aos outros a fim de alcançar seus objetivos.

04 – Praticamente sozinho, sem Madalena e abandonado por amigos, Paulo Honório consome as horas recordando sua vida e narrando em São Bernardo. Identifique um trecho que comprova ser São Bernardo um livro de recordações.
      Deitar-me, rolar no colchão até de madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. / De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha.

05 – Pelo trecho lido da obra, é possível afirmar que São Bernardo alcança um perfeito equilíbrio entre a análise social e a introspecção psicológica? Justifique.
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim. Pelo balanço de vida de Paulo Honório e por suas reflexões interiores, nota-se o quanto ele está destruído como pessoa. E as causas disso são sociais: a ideologia capitalista da competição e da acumulação.

06 – São Bernardo assemelha-se, em vários aspectos, a Dom Casmurro, de Machado de Assis. Veja este trecho do início da obra de Machado, narrado por Bentinho:
        “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice e adolescência. Pois, Senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui.
        Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; [...] falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

a)   Em São Bernardo, Paulo Honório, no fim da vida, é a mesma pessoa?
Não. Embora o protagonista não se sinta capaz de mudar, na verdade já mudou: está mais sensível, admite erros e culpas.

b)   Tente explicar os motivos conscientes e inconscientes que teriam levado o protagonista a reconstruir sua própria história.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Reconstruir a história pessoal é uma forma de compreende-la melhor e, nela, compreender-se.