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terça-feira, 19 de dezembro de 2023

CONTO: A DONA DA PENSÃO - ROALD DAHI - COM GABARITO

 CONTO: A DONA DA PENSÃO

                Roald Dahi

A dona da pensão Billy Weaver viera de Londres no vagaroso trem vespertino, com conexão em Swindon, e quando finalmente chegou a Bath já eram cerca de nove da noite, e a lua se erguia no céu límpido e estrelado sobre as casas em frente à entrada da estação. Fazia um frio de matar, e o vento cortava seu rosto como uma lâmina de gelo.  “Perdão”, disse, “mas há algum hotel bem barato não muito longe daqui?”  “Tente o Bell and Dragon”, respondeu o porteiro, indicando a rua em frente. “Pode ser que o aceitem lá. Fica a cerca de quatrocentos metros, seguindo por aquele lado.”  Billy agradeceu, apanhou a valise e pôs-se a caminhar os quatrocentos metros até o Bell and Dragon. Nunca estivera em Bath. Não conhecia ninguém que morasse ali. Mas o sr. Greenslade do Escritório Central em Londres dissera-lhe que era uma cidade esplêndida. “Procure um lugar para ficar”, dissera, “e depois apresente-se ao gerente local assim que estiver instalado.” 

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhrNMPRncPQQHQEKcg_YrC1qL2wzPQGtZId6aEw_ppxpIMNO88fuqn4LOpBxBXGsblH1HEPfgaVysLm75lHCvD3W8No97fpWWEWiB2ueINQw4smLLKlqktVhXXaS15YijhLelCUgg4Ga7qVkRYZzXn9uy1BALpjPhrdADSMqgW8Jo9yU2ZVtLTwF73p4Pw/s1600/HOTEL.jpg 


[...] Não havia lojas na larga rua por onde caminhava, ladeada apenas por duas fileiras de casas altas, todas idênticas. Elas tinham alpendres, colunas e escadas de quatro ou cinco degraus que levavam até a porta de entrada, e era óbvio que, em algum tempo distante, haviam sido residências muito elegantes. Mas agora, mesmo no escuro, ele podia ver que a pintura dos batentes das portas e das janelas estava descascando e que o desleixo trouxera rachaduras e manchas às vistosas fachadas brancas.  De repente, na janela de um andar térreo iluminada intensamente pela luz de um poste a cerca de cinco metros, Billy avistou um cartaz apoiado contra o vidro de um dos painéis superiores da janela. HOSPEDARIA, dizia. Havia um vaso de flores de salgueiro, alto e elegante, bem abaixo do cartaz.  Billy parou de caminhar. Aproximou-se um pouco mais. Cortinas verdes (algum tipo de tecido aveludado) emolduravam os dois lados da janela. Os salgueiros ficavam lindos ao lado delas. Ele avançou, espiou a sala através da janela e a primeira coisa que viu foi um fogo intenso ardendo na lareira. No tapete em frente ao fogo, dormia um pequeno dachshund enrolado em si mesmo, o focinho enfiado sob a barriga. A sala em si, pelo menos até onde a penumbra lhe permitia ver, era agradavelmente mobiliada. Havia um baby grand-piano, um sofá grande e várias poltronas estofadas; e, a um canto, Billy vislumbrou um grande papagaio em uma gaiola. Animais eram geralmente um bom sinal em lugares assim, disse consigo mesmo; no fim das contas, pareceu-lhe que poderia ser uma casa bem decente onde se instalar. Certamente seria mais confortável que o Bell and Dragon.  Por outro lado, um pub seria mais conveniente que uma pensão. Haveria [...] dardos à noite e muitas pessoas com quem conversar, e provavelmente seria também um bocado mais barato. Ele passara algumas noites em um pub certa vez e gostara da experiência. Jamais ficara em uma pensão, e, para ser perfeitamente honesto, elas lhe davam um pouquinho de medo. O próprio nome já conjurava imagens de repolho aguado, senhorias avarentas e um cheiro forte de arenque defumado na sala de estar.  Depois de refletir assim por dois ou três minutos, no frio, Billy decidiu que iria retomar a caminhada e dar uma olhada no Bell and Dragon antes de tomar uma decisão. Virou-se para ir embora. 

E, então, algo esquisito aconteceu. Quando estava no ato de recuar e voltar as costas à janela, subitamente seu olhar foi atraído e capturado, de um modo muito estranho, pelo pequeno cartaz que havia ali. HOSPEDARIA, dizia. HOSPEDARIA, HOSPEDARIA, HOSPEDARIA. Cada letra era como um enorme olho negro fitando-o através do vidro, que o cativava, compelia, forçava a ficar onde estava e não abandonar aquela casa, e, antes que desse por si, ele se afastou da janela e foi em direção à porta de entrada, subiu os degraus que levavam até ela e procurou a campainha.  Tocou. Bem ao longe, em um aposento dos fundos, ele a ouviu soar e então no mesmo instante – deve ter sido no mesmo instante porque ele nem tivera tempo de tirar o dedo do botão –  a porta se escancarou e uma mulher surgiu. Normalmente, quando se toca uma campainha, há uma espera de pelo menos meio minuto antes que a porta se abra. Mas essa senhora fora como um boneco pulando de uma caixa-surpresa. Ele tocou a campainha – e ela pulou para fora! Billy deu um salto.  Ela tinha entre quarenta e cinco e cinquenta anos e, assim que o viu, abriu um cativante sorriso de boas-vindas.   “Por favor, entre”, convidou, afavelmente. Ela se afastou, mantendo a porta escancarada, e Billy viu-se automaticamente saltando para dentro da casa. A compulsão ou, para ser mais exato, o desejo de segui-la para dentro daquela casa era extraordinariamente forte.  “Eu vi o cartaz na janela”, disse, contendo-se.  “Sim, eu sei.”  “Gostaria de saber sobre o quarto.”  “Está tudo pronto para você, meu bem”, respondeu ela. Tinha um rosto oval e rosado e olhos azuis muito doces.  “Eu estava a caminho do Bell and Dragon”, disse-lhe Billy. “Mas o cartaz na sua janela acabou chamando minha atenção.”  “Meu bem”, disse ela, “por que você não entra e sai do frio?”  “Quanto a senhora cobra?”  “Cinco shillings e seis pence por noite, café da manhã incluído.”  Era incrivelmente barato. Era menos da metade do que ele aceitaria pagar.  “Se for muito caro”, acrescentou, “eu talvez possa abaixar um pouquinho o preço. Você quer ovos no café da manhã? Os ovos estão muito caros ultimamente. Seriam seis pence a menos sem os ovos.”  “Cinco shillings e seis pence está ótimo”, respondeu ele. “Gostaria muito de ficar aqui.” 

“Eu tinha certeza disso. Entre, vamos.”  Ela parecia extremamente bondosa. Parecia a mãe daquele melhor amigo de escola, recebendo-o em casa para passar as festas de Natal. Billy tirou o chapéu e cruzou a soleira da porta.  “Pendure-o ali”, disse ela, “e deixe-me ajudá-lo com o casaco.”  Não havia nenhum outro chapéu ou casaco no hall. Não havia nenhum guarda-chuva, nenhuma bengala – nada.  “Temos a casa inteira para nós”, disse, sorrindo para ele por sobre o ombro enquanto o conduzia ao andar de cima. “Sabe, não é sempre que tenho o prazer de receber um visitante em meu humilde ninho.”  A velhinha é meio maluca, disse Billy consigo mesmo. Mas por cinco shillings e seis pence por noite, quem é que dá a mínima? “Eu estava imaginando que a senhora deveria ter uma multidão de interessados”, disse educadamente. “Ah, mas eu tenho, meu bem, tenho sim, claro. Mas o problema é que tenho a tendência de ser só um bocadinho de nada exigente e difícil de agradar – se é que você me entende.”  “Ah, sim.”  “Mas estou sempre pronta. Tudo nesta casa está sempre preparado, dia e noite, para a remota possibilidade de que apareça um jovem agradável como você. E é um prazer tão grande, meu bem, um prazer tão enorme quando, de vez em quando, abro a porta e vejo que está ali alguém que serve exatamente.” Ela estava no meio da escada e deteve-se com uma das mãos sobre o corrimão, virando a cabeça e sorrindo para ele com seus lábios pálidos. “Como você”, acrescentou, e seus olhos azuis passearam lentamente por todo o corpo de Billy, até os pés, depois novamente até a cabeça.  Ao chegarem ao primeiro andar, ela disse: “Esse andar é meu.”  Subiram mais um lance de escadas. “E este é todo seu”, disse. “Este é o seu quarto. Espero que goste.” Ela o conduziu até um dormitório na parte da frente da casa, pequeno mas charmoso, e acendeu a luz.  “O sol da manhã entra direto pela janela, sr. Perkins. É sr. Perkins, não é?”  “Não”, respondeu. “É Weaver.”  “Sr. Weaver. Que bonito. Coloquei uma garrafa com água entre os lençóis para arejá-los, sr. Weaver. É um conforto tão grande ter uma garrafa de água quente em uma cama estranha com lençóis limpos, não acha? E você pode acender o aquecedor a gás a qualquer momento, se sentir frio.”  “Obrigado”, disse Billy. “Muitíssimo obrigado.” Ele reparou que a coberta da cama fora retirada e que os lençóis haviam sido cuidadosamente dobrados, prontos para alguém se deitar.  “Estou tão feliz que tenha aparecido”, disse ela, olhando-o fixamente. “Eu estava começando a ficar preocupada.”  “Está tudo bem”, respondeu Billy, alegremente. “A senhora não precisa se preocupar comigo.” Ele pôs a valise no chão e começou a abri-la.

  “[...] Vou deixá-lo agora para que possa desfazer a mala. Mas antes de deitar, você não faria a gentileza de dar um pulinho até a sala de estar no térreo e assinar o livro? Todos têm que fazê-lo porque é a lei, e não queremos desrespeitar nenhuma lei a essa altura do processo, não é mesmo?” Ela fez um breve aceno, saiu rapidamente do quarto e fechou a porta.  Bem, o fato de que a dona da pensão parecia ter alguns parafusos a menos não incomodava Billy nem um pouco. Afinal de contas, ela não só era inofensiva – não havia dúvida nenhuma quanto a isso – mas era óbvio também que possuía uma alma boa e generosa. Ele imaginou que ela provavelmente perdera um filho na guerra, ou coisa parecida, e que nunca se recuperara. Alguns minutos mais tarde, depois de desfazer a mala e lavar as mãos, ele desceu rapidamente até o térreo e entrou na sala de estar. A dona da pensão não estava lá, mas o fogo ardia na lareira, e em frente a ela o dachshund ainda dormia. A sala era maravilhosamente confortável e aconchegante. “Sou um sujeito de sorte”, pensou, esfregando as mãos. “Isto aqui não é nada mau.”  Viu o livro de hóspedes aberto sobre o piano e, pegando a caneta, escreveu seu nome e endereço. Havia apenas outros dois registros acima do seu na página e, como sempre se faz com livros de hóspedes, Billy começou a lê-los. Um era de Christopher Mulholland, de Cardiff. O outro era de Gregory W. Temple, de Bristol.  “Engraçado”, pensou, de repente. “Christopher Mulholland. Já ouvi em algum lugar.”  Mas onde diabos ele ouvira esse nome tão incomum?  Seria um colega de escola? Não. Um dos muitos namorados de sua irmã, talvez, ou um amigo de seu pai? Não, não, não era nada disso. Ele pousou novamente os olhos sobre o livro.  [...]  “Gregory Temple?”, disse em voz alta, vasculhando a memória. “Christopher Mulholland?...”  “Rapazes tão charmosos”, respondeu uma voz atrás dele. Ele se voltou e viu a dona da pensão, que entrava deslizando pela sala com uma grande bandeja de chá de prata nas mãos. Ela a segurava bem distante do corpo, e bem alto, como se a bandeja fosse o par de rédeas de um cavalo arisco.  “Esses nomes me parecem familiares, de algum modo”, disse ele.  “É mesmo? Que interessante.”  “Tenho quase certeza de que já os ouvi antes, em algum lugar. Não é estranho? Talvez tenha sido no jornal. Eles não eram famosos por algum motivo, eram? Jogadores famosos de críquete ou de futebol, ou algo assim?”  “Famosos?”, disse ela, pousando a bandeja de chá na mesa baixa em frente ao sofá. “Ah, não, não creio que fossem famosos. Mas eram de uma beleza extraordinária, ambos, disso eu posso lhe assegurar. Eram ambos altos e jovens e belos, meu bem, exatamente como você.”  Uma vez mais, Billy lançou o olhar sobre o livro. “Veja aqui”, disse, observando as datas. “O último registro já tem mais de dois anos.”  “Verdade?”  “Sim, é isso mesmo. E o de Christopher Mulholland é de quase um ano antes – há mais de três anos.”  “Meu Deus!”, disse ela, balançando a cabeça e suspirando suavemente. “Eu nunca iria imaginar. Como o tempo voa para todos nós, não é verdade, sr. Wilkins?”  “É Weaver”, corrigiu Billy. “W-e-a-v-e-r.” “Ora, claro que sim.” Exclamou, sentando-se no sofá. “Que tolice a minha. Por favor, perdoe-me. Entra por um ouvido e sai pelo outro: essa sou eu, sr. Weaver.”  “Sabe de uma coisa?”, disse Billy. “Uma coisa que é de fato absolutamente extraordinária nessa história toda?”  “Não, meu bem, não sei não.”  “Bem, veja – esses dois nomes, Mulholland e Temple, não apenas parece que me lembro de cada um deles separadamente, por assim dizer, mas de alguma forma ambos parecem estar ligados entre si. Como se os dois fossem famosos pelo mesmo motivo. Não sei se a senhora está entendendo o que quero dizer – como... como Dempsey e Tunney, por exemplo, ou Churchill e Roosevelt.”  “Que divertido”, disse ela. “Mas agora venha para cá, meu bem, sente-se ao meu lado aqui no sofá, e vou servirlhe uma boa xícara de chá e um biscoito de gengibre antes de você ir para a cama.”  “A senhora não deveria ter se incomodado”, disse Billy. “Eu não queria que a senhora tivesse trabalho nenhum.” De pé ao lado do piano, ele a observava enquanto ela se atarantava com as xícaras e os pratos. Notou que tinha mãos pálidas e pequeninas, muito ágeis, e que tinha as unhas pintadas de vermelho.  “Tenho quase certeza de que foi no jornal que vi esses nomes”, disse Billy. “Vou me lembrar em um segundo. Tenho certeza.”  Nada é tão angustiante quanto essas coisas que, flutuando nos limites de nossa memória, escapam à nossa lembrança. Ele se recusava a desistir.  “Espere um pouco”, disse. “Espere um pouco só. Mulholland... Christopher Mulholland... não era esse o nome daquele estudante de Eton que estava fazendo uma excursão a pé pelo West Country quando subitamente...”  “Leite?”, perguntou ela. “E açúcar?”  “Sim, por favor. Quando subitamente...”  “Estudante de Eton?”, disse ela. “Ah não, meu bem, não pode ser isso porque o meu sr. Mulholland certamente não era nenhum estudante de Eton quando veio até mim. Ele estudava em Cambridge. Agora venha cá, sente-se a meu lado e aqueça-se em frente a esse lindo fogo. Venha. Seu chá já está prontinho.” Ela indicou o lugar a seu lado, tocando o assento delicadamente, e sorriu para Billy, esperando que ele se aproximasse. Ele atravessou vagarosamente a sala e sentou-se na beira do sofá. Ela pousou a xícara de chá à sua frente. “Pronto”, disse ela. “Que gostoso e aconchegante, não é?”  Billy começou a bebericar o chá. Ela fez o mesmo. Durante cerca de meio minuto, nenhum deles disse nada. Mas Billy sabia que ela o observava. Ela tinha o corpo meio virado em sua direção, e ele sentia os olhos dela perscrutando seu rosto, observando-o por sobre a xícara de chá. De vez em quando ele sentia, muito de leve, um aroma peculiar que parecia emanar diretamente dela. Não era nem um pouco desagradável e lembrava-lhe – bem, ele não tinha muita certeza do que é que lhe lembrava. Nozes em conserva? Couro novo? Ou seria o odor de corredores de hospital? 

“O sr. Mulholland adorava chá”, disse ela, depois de um longo tempo. “Nunca, em minha vida, vi ninguém tomar tanto chá quanto meu querido, doce sr. Mulholland.”  “Suponho que ele tenha partido recentemente”, disse Billy. Ele ainda se remoía, tentando se lembrar dos dois nomes. Ele agora tinha certeza que os havia visto nos jornais – nas manchetes.  “Partido?”, disse ela, arqueando as sobrancelhas. “Mas, meu querido, ele jamais partiu. Ele ainda está aqui. E o sr. Temple está aqui também. Estão no terceiro andar, os dois juntos.”  

Billy pousou vagarosamente a xícara sobre a mesa e fixou o olhar sobre a dona da pensão. Ela sorriu para ele, estendendo uma de suas mãos pálidas e tocando-lhe carinhosamente o joelho. “Qual sua idade, meu bem?”, perguntou.  “Dezessete anos.”  “Dezessete!”, exclamou ela. “Ah, é a idade perfeita! O sr. Mulholland também estava com dezessete anos. Mas creio que fosse um pouquinho mais baixo que você, na verdade tenho certeza de que era sim, e os dentes dele não eram nem de perto tão brancos quanto os seus. Você tem dentes lindíssimos, sr. Weaver, sabia disso?”  “Eles parecem melhores do que são”, respondeu Billy. “Há uma porção de obturações nos dentes do fundo.” “O sr. Temple, claro, era um pouco mais velho”, continuou ela, ignorando o comentário. “Ele tinha na verdade vinte e oito anos. E, no entanto, eu jamais teria adivinhado se ele não me tivesse dito, nunca em minha vida inteira. Não havia uma única marca em seu corpo.”  “Uma o quê?”, perguntou Billy.  “A pele dele era igualzinha a de um bebê.”  

Houve uma pausa. Billy apanhou sua xícara e tomou outro gole de chá, pousando-a depois delicadamente no pires. Ele estava esperando que ela dissesse algo mais, mas parecia ter se perdido em outro de seus silêncios. Sentado ali, Billy fixou o olhar no outro lado da sala, à sua frente, mordendo os lábios.  “Aquele papagaio”, disse por fim. “Sabe de uma coisa? Enganou-me completamente quando o vi pela primeira vez através da janela. Eu jurava que ele estava vivo.”  “Infelizmente, não mais.”  “É extremamente inteligente o modo como foi feito”, disse ele. “Nem parece que está morto. Quem fez?”  “Eu mesma.”  “A senhora?”  “Claro”, respondeu. “E você já conheceu também o meu Basil?” Ela apontou com a cabeça o dachshund, enrolado tão confortavelmente em frente à lareira. Billy examinou-o com os olhos. E, subitamente, se deu conta de que o animal estivera, o tempo todo, tão silencioso e imóvel quanto o papagaio. Estendeu a mão e tocou-lhe delicadamente o dorso. As costas estavam duras e frias, e, quando seus dedos afastaram os pelos para um lado, ele pôde ver a pele embaixo, enegrecida, seca e perfeitamente preservada.  “Deus do céu!”, exclamou. “Isso é absolutamente fascinante.” Desviou o olhar do cachorro e encarou com profunda admiração a pequena senhora a seu lado no sofá. “Deve ser incrivelmente difícil fazer uma coisa assim.”  “Nem um pouquinho”, respondeu ela. “Eu empalho eu mesma todos os meus animaizinhos de estimação quando eles morrem. Você aceitaria mais uma xícara de chá?”  “Não, obrigado”, disse Billy. O chá tinha um ligeiro sabor de amêndoas amargas de que não gostara muito.  

“Você assinou o livro, não assinou?” “Ah, sim.” “Isso é ótimo. Porque daqui a algum tempo, se eu por acaso me esquecer de como você se chamava, poderei sempre vir até aqui e procurar no livro. Eu ainda o faço quase todos os dias com o sr. Mulholland e o sr. …, o sr. …”  “Temple”, completou Billy. “George Temple. Desculpe-me perguntar, mas não houve nenhum outro hóspede aqui além deles nesses últimos dois ou três anos?”  Segurando a xícara de chá bem no alto e inclinando a cabeça ligeiramente para a esquerda, olhou para ele de soslaio e sorriu-lhe delicadamente mais uma vez.  “Não, meu bem”, disse. “Só você.”

DAHL, Roald. A dona da pensão. In: Beijo,. São Paulo: Barracuda, 2007. p. 9-20.

Entendendo o texto

01. Quem é o protagonista da história e por que ele está em Bath?

     a) Sr. Temple, em busca de aventuras.
     b) Sr. Mulholland, fugindo da guerra.
     c) Sr. Weaver, a trabalho, seguindo orientações do Escritório Central em Londres.
    d) Sr. Wilkins, em uma viagem de lazer.

02. O que atrai a atenção de Billy Weaver quando ele está procurando um lugar para se hospedar em Bath?

      a) Um sinal luminoso indicando um pub movimentado.
      b) Um anúncio de um hotel de luxo.
      c) Um cartaz na janela de uma pensão com a palavra "HOSPEDARIA".
     d) Uma placa indicando descontos em hotéis.

03. O que Billy Weaver observa na sala da pensão que o faz considerar ficar lá?

     a) Um papagaio falante.
     b) Um cachorro de pelúcia na lareira.
     c) Uma lareira acesa e um cachorro real dormindo no tapete.
     d) Uma coleção de instrumentos musicais.

04. Por que Billy hesita entre ficar na pensão ou no Bell and Dragon?

     a) Ele prefere a atmosfera de um pub.
     b) Ele tem medo de pensões e associações negativas.
     c) A pensão é muito cara para ele.
     d) Ele não gosta do atendimento no Bell and Dragon.

05. O que chama a atenção de Billy Weaver no livro de hóspedes da pensão?

     a) Os preços dos quartos.
     b) Os registros dos dois últimos hóspedes: Christopher Mulholland e Gregory W. Temple.
     c) As reclamações dos hóspedes anteriores.
     d) Os elogios à hospitalidade da dona da pensão.

06. Qual é a reação de Billy Weaver quando descobre que os últimos dois hóspedes da pensão estão no terceiro andar?

     a) Ele fica animado e curioso.
     b) Ele fica assustado e decide sair imediatamente.
     c) Ele pede explicações à dona da pensão.
     d) Ele não se importa e continua a desfazer a mala.


07. Como a dona da pensão descreve os últimos dois hóspedes, Mulholland e Temple?

    a) Velhos e aborrecidos.
    b) Altos, jovens e bonitos.
    c) Famosos jogadores de críquete.
    d) Gentis e educados

08. O que Billy percebe sobre o papagaio e o dachshund na sala da pensão?

     a) Eles são animais de estimação vivos.
     b) Eles são criações artificiais da dona da pensão.
     c) Eles são animais de estimação de hóspedes anteriores.
     d) Eles são objetos de decoração.

09. Como a dona da pensão reage quando Billy menciona que viu o papagaio pela janela e pensou que ele estava vivo?

    a) Ela fica chateada e pede desculpas.
    b) Ela ri e admite que é uma ilusão bem-feita.
    c) Ela nega e insiste que o papagaio ainda está vivo.
    d) Ela ignora o comentário de Billy.

10. Qual é o desfecho da história para Billy Weaver na pensão?

    a) Ele decide ficar e desfrutar da hospitalidade da dona da pensão.
    b) Ele fica assustado com a revelação da dona da pensão e decide sair imediatamente.
    c) Ele se torna amigo dos hóspedes anteriores, Mulholland e Temple.
    d) Ele decide explorar Bath antes de tomar uma decisão sobre onde se hospedar.

11. O narrador diz que algo esquisito aconteceu. O que foi? Você acha que o rapaz ficará mesmo assim?

Sim, desde o início, o conto apresenta elementos estranhos e misteriosos. O personagem, Billy Weaver, chega a Bath e decide procurar um lugar para ficar. Ele inicialmente considera o Bell and Dragon, mas acaba sendo atraído por uma hospedaria peculiar. O lugar é descrito como elegante, mas há algo sinistro que intriga o leitor, especialmente pela forma como a dona da pensão o recebe.

 

     12. Aconteceu algo de estranho a que o personagem devesse ter prestado atenção? Você também acha que o jovem tinha razão em concluir que a senhora que o recebia era totalmente inofensiva?

          O narrador menciona que algo esquisito aconteceu quando Billy Weaver estava prestes a se afastar da janela da hospedaria. Ele é atraído pelo cartaz que repete a palavra "HOSPEDARIA" de maneira cativante. O leitor pode esperar que essa estranheza tenha consequências para o personagem, indicando que algo incomum está prestes a ocorrer.

.   13.  O que chama a atenção nessas reflexões sobre os nomes escritos no livro? Como é o comportamento da dona da pensão? Que importância esse trecho pode vir a ter no desenrolar da história?

       Sim, o modo como a dona da pensão recebe Billy imediatamente após ele tocar a campainha é incomum. A rapidez com que ela aparece, seu sorriso caloroso e a insistência para que ele entre são sinais de que algo está fora do comum. Apesar disso, o narrador, que é o próprio Billy, parece acreditar que a senhora é inofensiva, o que cria um elemento de tensão para o leitor.

14. O que poderia ser o cheiro que o personagem sentia?

O cheiro que o personagem sentia é descrito como algo peculiar, lembrando-lhe nozes em conserva, couro novo ou o odor de corredores de hospital. A natureza ambígua do cheiro contribui para o clima misterioso do conto, deixando o leitor curioso sobre a origem desse aroma.

    15. O modo como o narrador conduz a narrativa permite imaginar que fatos se desenrolarão a seguir?

        O narrador conduz a narrativa de uma forma que sugere que eventos mais estranhos e misteriosos ocorrerão. O leitor é mantido no escuro sobre os verdadeiros motivos da dona da pensão e sobre o que aconteceu com os hóspedes anteriores. O suspense é habilmente construído, deixando espaço para revelações futuras.

    16.  E aí? O que aconteceu? Como você entendeu esse desfecho?

        O conto termina com a revelação de que Christopher Mulholland e Gregory W. Temple, os hóspedes anteriores, ainda estão presentes no terceiro andar da pensão, apesar de terem supostamente partido há anos. Isso sugere uma reviravolta sobrenatural ou sinistra na história, deixando o leitor intrigado e ansioso para saber mais sobre o que está acontecendo na hospedaria. O desfecho é surpreendente e deixa abertas várias possibilidades para o desenvolvimento da trama.

 

domingo, 17 de dezembro de 2023

CONTO: BOA DE GARFO - LUIZ VILELA - COM GABARITO

 Conto: Boa de garfo

             Luiz Vilela

     “Bom-dia” foi, naturalmente, a primeira coisa que meu pai disse ao homem.
      A segunda, só podia ser aquela “E essa fera aí?”
      A fera, que estava junto ao homem, era um cachorro fila, rajado, de um tamanho que eu nunca tinha vista na vida; um cachorro enorme. A gente ficava frio só de olhar para ele – aquela cabeçona com as beiçorras dependuradas.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicrUA0ZYCyYLg8TIPZLNIVW0wQuWa7sbLxrIdjF6ouB1OErpD2BBoKWpcfquMHQbhpXzqlI-gncIiJ76OKHt1uvHmM8DSgs0vPb8ciHGEYpbr5wmWa6mt_DxXgJuCnahmEGNfO9y9aj6oc1X3pmwoGkPO51UldCy2Bj8ZVZRpqDYP72TXB-xL0pcpc47o/s320/Fila-Brasileiro2.jpg


      Mas o homem disse que não precisávamos ter medo, não tinha perigo.
       “O senhor tem certeza que não morde?” Perguntou meu pai.
       “É ela”, disse o homem, com um sorriso meio envergonhado.
       “Ela ou ele, a mordida dói do mesmo jeito”, disse meu pai.
       “O senhor pode ficar tranquilo”, disse o homem: “Ela, quando não gosta de uma pessoa, vai logo avançando”.
       “É?”, disse meu pai, “Quer dizer se ela não tivesse gostado de mim, ela já tinha avançado...”
       “Tranquilamente”, disse o homem.
       “Tranquilamente”, repetiu meu pai.
       “Mas eu sabia que ela não ia avançar”, disse o homem: “Eu sei o tipo de gente que ela não gosta: Bêbado, por exemplo, ela não pode nem sentir o cheiro”.
       “Ainda bem que eu não bebo”, disse meu pai com alívio.
      “O senhor pode ficar tranquilo”, tornou a dizer o homem, “ela é mansinha...”
       Acho que meu pai não ficou tão tranquilo, mas precisava continuar a conversa e convidou o homem a sentar-se numa das cadeiras do alpendre: o homem sentou-se. Depois meu pai sentou-se. Eu continuei em pé, no canto, olhando. A cachorra foi ficar ao lado do homem e sentou-se nas pernas de trás.
       O homem era miúdo, franzino. Era mulato, e tinha um bigodinho ralo e achinesado. Sua roupa estava com remendos, mas muito limpa – o que era bom sinal. Meu pai dizia “Se o sujeito não tem cuidado nem com a própria roupa, como eu posso esperar que ele tenha cuidado com o serviço? Meu pai devia ter gostado daquilo.
      O de que meu pai visivelmente não estava gostando era aquele animalzão parado ali, na frente, de olhos fixos nele. Mas a cachorra não parecia estar vigiando-o: parecia ser apenas curiosidade – como se ela também estivesse interessada na conversa. Mesmo assim, meu pai falou:
      “Escuta, será que ela não gostaria de dar umas voltinhas por aí enquanto a gente conversa? Tem muito passarinho ai: ela não gosta de pegar?”
       “Gostar, até que ela gosta, mas...”. o homem pareceu sem jeito de dizer:” é que não se afasta de mim por nada desse mundo; ela é muito apegada...” Olhou então para a cachorra e fez um carinho na cabeça dela: a cachorra retribuiu com um latido que fez tremer o ar no alpendre.       “Ela é muito afetuosa...”
      “É”, disse meu pai, um tanto quanto assustado, “eu estou vendo...”
Tentando esquecer a cachorra – o que não era muito fácil – meu pai prosseguiu a conversa:
     “Bom, como o senhor já sabe, meu negócio é hortaliça; comecei há pouco tempo e estou precisando de uma pessoa com bastante prática.”
O homem sacudiu a cabeça. A cachorra, quieta, olhava para meu pai.
     “Eu tive boas informações sobre o senhor, fiquei sabendo de seu trabalho... Agora nós precisamos conversar, ver se a gente combina; são várias coisas...”
      Ao falar assim, meu pai olhou para a cachorra; não sei se foi intencional, querendo dizer que a cachorra era uma das “coisas”, mas estava claro que ela o preocupava. Quando ele mandou o recado para o homem vir ao nosso sitio, ele não sabia que o homem viria acompanhado daquele cachorrão – o mais certo seria dizer o cachorrão acompanhando aquele homem - e, era evidente agora que a cachorra tinha de ser levada em conta na combinação deles.
      Houve uma pausa.
      O homem tirou do bolso da camisa um cigarro de palha, já começado, e acendeu em densas baforadas; Depois ficou olhando para fora, a espera de que meu pai prosseguisse.
      “Bem”, meu pai prosseguiu: “por quanto o senhor viria?”
      “Quanto de chão tem aqui?”
       “É o que o senhor está vendo, mais o pedaço atrás da casa, que vai até o córrego. É pouca coisa”, disse meu pai, com astúcia.
       “É, o senhor tem um sitio bem ajeitado...” o homem disse balançando a cabeça devagar; ele não era menos vivo. “O senhor planta o quê? Couve, alface, repolho...”
       “E os tomates. A maior área é a de tomate; está lá atrás, no fundo”.
       “Tomate é que é mais encrencado.”
       “É; eu tenho tido azar com os meus. Soube que o senhor é muito bom para mexer com tomate.”
       “A gente entende alguma coisa.”
       “Bom, a casa: a casa é aquela que está ali, no fundo, o senhor deve ter visto...”
        “Eu vi; parece uma casinha até boa.”
        “É, ela é muito boa”, disse meu pai, animado com o andamento da conversa; “é uma casa nova”.
        “O senhor sabe que dá até pra morar uma família ali?”
        “Dá, perfeitamente”, disse me pai. “Mas o senhor é solteiro...”
        “Sou, pela graça de Deus.”
        Meu pai riu:
        “É, às vezes ser solteiro é mesmo uma graça...”
        O homem riu também.
        Então os dois ficaram sérios de novo para prosseguirem a conversa.
        “A boia”, perguntou o homem: “como que é?”
        “A boia é por conta do empregado”, disse meu pai.
        “Sei”, o homem balançou a cabeça concordando.
        Houve uma pausa.
        “Então”, perguntou meu pai: “por quanto o senhor viria?”.
        O homem olhou para o cigarro e limpou com o dedo a cinza na ponta; pareceu refletir. Então olhou para meu pai:
        “Por quinhentos eu viria.”
        “Quinhentos?”, meu pai quase caiu da cadeira.
        Um outro empregado, em que ele estava também interessado e que aparecera lá em casa poucos dias atrás, pedira trezentos e cinquenta, e parecia tão bom quanto aquele, senão melhor – pelo menos, era bem mais forte.
      “O senhor está querendo demais”, disse meu pai; “o senhor vê que a área é pequena, a variedade dos produtos pouca, a casa boa...”
      “Quanto a isso não há dúvida”, disse o homem.
      “Eu soube que o senhor trabalha bem”, continuou meu pai; “tive muito boas informações. Mas por esse preço, sinceramente... o senhor há de reconhecer que é demais...”.
       “Eu reconheço”, disse o homem.
       “Então?”
     “A questão é que...”, o homem se mexeu na cadeira, meio incomodado. “Eu vou dizer pro senhor: cobrar caro pelo meu serviço, eu até que não cobro não. E vou dizer por quê: porque meu gasto é pequeno. Beber, eu não bebo; não sou enredado em saia; de vício, eu só tenho mesmo o cigarrinho. O senhor vê que é pouca coisa. A questão é que... A questão é a Bebé.”
       “Bebé? Quem é a Bebé?”
       “A cachorra”.
       “Ah, a cachorra; quer dizer que ela chama Bebé...”
       “Bom, o nome mesmo não e esse; Bebé é apelido”.
       “E qual é o nome?”
       “Elizabete.”
      “Elizabete?...”, meu pai arregalou os olhos. “É um nome bastante original para cachorro... Confesso que eu nunca tinha visto uma cachorra com esse nome...”
       “Era o nome da madrinha”, disse o homem.
       “Madrinha da...”
       “Minha madrinha”
      “Ah”, disse meu pai. “Ela deve ter ficado muito contente; sua madrinha...”
       “Não, ela não chegou a conhecer a cachorra não; ela morreu antes, que Deus a tenha”, e o homem ergueu respeitosamente o chapéu. “Foi ela que me criou, minha madrinha. Era uma Santa mulher. Devo muita gratidão a ela. E então falei que quando nascesse meu primeiro filho, se fosse mulher, eu ia batizar com o nome dela. Mas eu não casei; e aí, como eu gostava tanto dessa cachorra como de um filho, resolvi por o nome nela.”
       “Compreendo”, disse meu pai.
       “Muita gente acha que isso é abuso. Eu não acho. Segui meu coração, e, pra mim, tudo o que vem do coração é certo”.
O homem olhou para a cachorra, depois para o cigarro, depois, novamente para meu pai.
      “Mas, como eu ia dizendo pro senhor, a questão é a cachorra: ela come muito.”
      “Quantos quilos ela come por dia?”
      “Quilos? Não sei, mas ela é boa de garfo.”
      “Boa de garfo? O senhor quer dizer que... que ela come muito; ou...”
      “É; ela come pra danar.”
      “O senhor pode dar ração pra ela.”
      “Ração? Ela não come: ela só come carne.”
      “O senhor dá carne pra ela todo dia?”
      “Dou; quer dizer, dava, quando eu estava no emprego, quando eu tinha dinheiro. Agora... O senhor vê que ela está magra...”
       “É”, disse meu pai, olhando para a cachorra, que continuava olhando para ele: “gorda ela não está mesmo não”.
       “Pois é...”
       “E como o senhor tem feito?”
       “Tem feito?”
       “O que o senhor tem dado para ela?”
       “Tenho dado abacate.”
       “Abacate? Ela come?”
       “Come. Mas tem que ser do liso; do cascudo ela não come não. Essa cachorra tem umas coisas que... eu vou dizer pro senhor: ela tem umas coisas em que ela é igualzinha a gente...”
       “Realmente”, disse meu pai. “Até hoje eu nunca tinha ouvido falar que cachorro come abacate.”
       “Não sei se é qualquer cachorro; essa come. Ela é compreensiva; eu expliquei pra ela que não tinha mais carne, e aí ela aceitou comer abacate. Foi a sorte, sorte minha e dela, porque lá no rancho de meu irmão, onde eu estou agora, tem um pé de abacate, e ele fica tão carregado, que eu posso dar abacate pra ela o dia inteiro. Mas, não sei, acho que abacate não é comida de cachorro...”
       “É o que eu sempre pensei”, disse meu pai.
       “Acho que ela já anda com saudade duma boa carninha...”
       “Por que o senhor não arranja um cachorro menor?”
      “Um cachorro menor?... Eu vou explicar pro senhor: essa aí, quando eu peguei ela pra criar, era desse tamaninho; eu não sabia que ela ia ficar tão grande. Eu achei ela abandonada numa estrada e fiquei com dó; não sabia quem tinha abandonado, que raça que era, nem nada. Depois é que fui vendo; o bicho foi só crescendo, não parava mais de crescer, era aquela coisa. Quando vi, já era tarde. Quer dizer, eu já estava gostando dela. Aí...”
       Meu pai sacudiu a cabeça.
      “E ela não parou de   crescer ainda não”, continuou o homem. “O    senhor que pensa: ela é criança ainda, ela só tem um ano”.
       “Ela é bem crescidinha para a idade, hem?”
       “É... Mas também só tem tamanho essa danadona”, e o homem fez outro carinho na cabeça da cachorra.
      “O senhor algum dia já pensou no tanto que o senhor já gastou de carne com ela?”
       “Não, não pensei não, mas deve ter sido um despropósito.”
       “E se o senhor, em vez de dar carne para ela, tivesse comido essa carne?”
        “Eu?”
       “É; se, em vez de dar pra ela, o senhor tivesse comido essa carne?...”
        “É verdade”, o homem baixou o olhar, parecendo refletir; então olhou novamente para meu pai: “Mas e ela, quê que ela ia comer?”
         Meu pai não soube o que responder.
        “E depois”, disse o homem, “eu não tenho problema: eu como pouco. Pra mim, tendo arroz, feijão e farinha de mandioca, não precisa de mais nada; de vez em quando um ovinho frito. Ela é que é comilona. Come por três de mim essa cachorra. É por isso que eu peço esse ordenado. O senhor sabe que a carne não está brincadeira.”
       “É, mas esse preço... O senhor não vai encontrar emprego fácil não...”
       "Eu sei”, disse o homem baixando a cabeça, “eu sei disso; mas...” e olhou para o lado, para a cachorra.
       “O senhor não podia deixar a cachorra com alguém?”, perguntou meu pai. “Com seu irmão, por exemplo...”
        O homem fez uma expressão desolada:
       “Só se fosse pra ela ficar comendo abacate todo dia...”
       “É...”
       “Mas também não ia adiantar: ela não fia longe de mim; uma vez ela ficou uma semana e quase morreu de tristeza.”
       Meu pai passou a mão pelos cabelos:
      “Se o senhor aceitasse por menos... Quinhentos é demais para mim; eu estou começando, luto com muita dificuldade... O senhor vê aí, quanta coisa ainda há por fazer...”
      “É verdade”, disse o homem, de cabeça baixa, “isso eu não nego...” depois olhou para meu pai: “Mas também vou dizer uma coisa pro senhor: a Bebé sabe ajudar, não é só comer não; pra campear gado não tem cachorro igual no mundo.”
      “Mas eu não tenho gado”, disse meu pai, já meio irritado.
      “Às vezes o senhor ainda pode ter.”
      “Não, não penso em ter gado não”.
      “Se o senhor tivesse, o senhor ia ver o tanto que ela boa pra campear.”
      “Pode ser, mas eu nunca pensei em ter gado, nem estou pensando nisso.”
       Meu pai olhou para a cachorra, quieta no mesmo lugar e sempre de olhos nele. Diabo, ele deve ter pensado, se não fosse aquela cachorra, tudo já estaria resolvido...
       Nessa hora minha mãe o chamou lá de dentro; ele pediu licença e foi. Eu fui junto.
      “Eu estava escutando a conversa”, disse minha mãe. “Quê que você ainda espera? Será que você está pensando em pegar esse sujeito? Onde você está com a cabeça? O outro pediu trezentos e cinquenta: são cento e cinquenta cruzeiros de diferença; quanta coisa a gente não pode fazer com esse dinheiro, a gente que vive no aperto? E, além do mais, o outro homem é muito mais forte; quê que esse tampinha aí aguenta?”
      Ele é mais competente”
     “Mais competente... Você tem hora que me dá uma raiva... Você acredita em tudo o que os outros falam... Você está acreditando nessa conversa mole? E ele ainda vem com essa história de cachorro...”
      “Essa raça come mito mesmo”
      “Que coma, que coma até uma tonelada: você acha que é para isso que ele quer o dinheiro: Ele está te levando na conversa, fazendo você de bobo. E, depois, já pensou agente com um cachorro desses por perto? Ele é capaz de comer até a gente.”
      “É ela”, disse meu pai, imitando o homem, enquanto abria a garrafa térmica para tomar uma xícara de café.
      “Despache ele logo”, disse minha mãe, “senão ele vai ficar aí até tarde, ensebando, e você ainda precisa consertar o moinho. Eu vou à cidade agora, fazer as compras”.
      Meu pai e eu voltamos ao alpendre. O homem e a cachorra estavam lá, na mesma posição, e olharam ao mesmo tempo para nós.
      Meu pai sentou-se, franziu a testa, passou a mão na cabeça:
      Quer dizer que o senhor só viria mesmo por quinhentos...”
      “É”, disse o homem; “infelizmente... É como expliquei pro senhor...”
     Minha mãe então veio e passou pelo alpendre: cumprimentou secamente o homem e olhou de um jeito nada amistoso para meu pai. Quando ela ficava com raiva, andava reta e dura como uma tábua. Lá fora, ela caminhou até o carro, entrou e, sem dar tiau, arrancou numa zangada nuvem de poeira. Nós ficamos olhando, até o carro desaparecer na curva, por trás do milharal.
     Eu já conhecia bem meu pai para saber que, quando o carro desapareceu, ele teve uma sensação de alívio. Ficou então olhando para a cachorra, e num tom em que não falara até aquela hora, disse:
      “Ela não desprega os olhos de mim...”
      “Ela gostou do senhor”, disse o homem.
      “Será?...” disse meu pai.
      Para ver, ele se curvou um pouco para frente e estralou os dedos: num segundo, com uma rapidez incrível, a cachorra estava sobre ele, as patas no seu peito, a língua lambendo-lhe o rosto, ele sumindo o quanto podia na cadeira.
     “Cá, Bebé, cá”, o homem chamou, e a cachorra obedeceu. “Eu não falei? Ela gostou do senhor...”
      “É”, disse meu pai branco de susto.
      “Ela é muito carinhosa”
      “Eu vi”, disse meu pai.
      A cachorra olhava para ele – os olhos brilhantes, o rabo abanando fortemente -, querendo se aproximar e só esperando que meu pai estralasse outra vez os dedos, o que, evidentemente, ele não fez.
       “Sua cachorrinha é pesada...”
       “É...”
       “Que dirá quando ela está bem alimentada...”
       “Ah, o senhor precisa ver:aí ela fica uma beleza; fica parecendo uma leoa.”
       “Eu imagino”, disse meu pai.
       "Fica parecendo uma daquelas leoas de circo.”
       “Eu imagino...”
       Estávamos agora os três olhando para a cachorra, que continuava alegre, abanando o rabo, os olhos brilhantes.
      “Uma pergunta”, disse meu pai, sério de novo, e o homem olhou com atenção para ele: “o senhor não acha que ela poderia pisar nos canteiros?”
     “Canteiros?... Não, ela é bem-comportada; é só a gente falar, que ela obedece. O senhor pode ficar tranquilo.”
      “Outra coisa: e se ela gostar de tomate?”
      “Tomate?, o homem ficou olhando meio confuso para meu pai; depois, vendo que ele ria, riu também: “O senhor está é brincando, né?
      “Não sei. Ela não gosta de abacate? Quem me dirá que ela não goste também de tomate?...”
      "Não, de tomate ela não gosta não, o senhor pode ficar tranquilo...” o homem disse, rindo contente.
      “O senhor me garante?”
      “Garanto, o senhor pode ficar tranquilo...”
      “Bom, disse meu pai, “nesse caso, então, o senhor pode vir”.
      “Sim senhor”, disse o homem. “Quando?”
      “Amanhã mesmo, se o senhor puder.”
      “Eu posso; amanhã o senhor pode me esperar, que eu venho”.
      “Combinado”, disse meu pai.
       Ficaram um momento em silêncio, o homem olhando com ternura para a cachorra, e meu pai olhando para os dois.
       O homem então se levantou:
       “Vamos Bebé?”
       Olhou para meu pai:
       “O senhor pode ficar tranquilo; o senhor não vai se arrepender.”
       “Assim espero”, disse meu pai.
       O homem despediu-se dele, depois despediu-se de mim, chamando-me de “mocinho”. E então foi andando para a estrada, a cachorra a seu lado. Pareciam ter um gingado alegre no andar. Eu disse isso para meu pai.
      “É”, ele concordou, “eles são alegres, todos dois”.
      “Estão...”
      “Você acha que ele me fez de bobo?”, meu pai me perguntou.
      “Não”, eu disse.
      “Eu também acho que não”, disse meu pai; “tenho certeza”.
      “Eu também tenho certeza”, eu disse.
      “Sua mãe é que não vai gostar.”
      “Ih!... Ela vai ficar uma fera com o senhor...”
       "Se vai...”, disse me pai, rindo. “Eu não quero nem saber...”
       Ele me pôs a mão no ombro:
      “Vamos lá, consertar o moinho?”
     “Vamos”, eu disse.          

Entendendo o texto

     01. O que despertou a preocupação do pai em relação à cachorra durante a conversa com o homem?

         a) O tamanho da cachorra.

         b) O comportamento agressivo da cachorra.

         c) O custo elevado para alimentar a cachorra.

   02. Qual era o nome verdadeiro da cachorra e por que recebeu o apelido "Bebé"?

         a) O nome verdadeiro era Elizabete, e recebeu o apelido por ser o nome da madrinha do homem.

         b) O nome verdadeiro era Bebé, e recebeu o apelido por ser carinhosa.

         c) O nome verdadeiro era Bebé, e recebeu o apelido por ser o nome da madrinha do homem.

      03. Por que o homem considerou o pedido de quinhentos cruzeiros justificado?

        a) Porque era o valor médio de salário para aquele tipo de trabalho.

        b) Porque ele tinha poucos gastos pessoais e não bebia.

        c) Porque sua cachorra era muito competente no trabalho.

    04. Qual era a principal preocupação da mãe em relação à contratação do homem?

        a) A competência do homem para o trabalho.

        b) O comportamento da cachorra.

        c) O valor pedido pelo homem.

  05. O que motivou o pai a concordar com a contratação do homem?

        a) A habilidade do homem para campear gado.

       b) O comportamento alegre do homem e da cachorra.

       c) A garantia do homem de que a cachorra não pisaria nos canteiros.

   06. Por que o pai mencionou a possibilidade de a cachorra gostar de tomate durante a conversa?

        a) Para testar a veracidade das afirmações do homem.

        b) Porque ele sabia que a cachorra gostava de tomate.

       c) Para provocar uma reação do homem.

    07. Como a mãe reagiu quando voltou do mercado?

         a) Ficou satisfeita com a contratação do homem.

         b) Ficou irritada com o pai por aceitar o homem.

        c) Ficou surpresa com a notícia.

    08. O que motivou o pai a concordar com a contratação do homem?

        a) A habilidade do homem para campear gado.

        b) O comportamento alegre do homem e da cachorra.

        c) A garantia do homem de que a cachorra não pisaria nos canteiros.

    09. Qual era a principal dúvida do pai em relação à cachorra durante a conversa?

       a) Se a cachorra se daria bem com outros animais.

       b) Se a cachorra gostaria de tomate.

       c) Se a cachorra poderia pisar nos canteiros.

  10. Como o homem justificou o valor pedido de quinhentos cruzeiros?

       a) Ele precisava de dinheiro para alimentar a cachorra.

       b) Ele tinha poucos gastos pessoais e não bebia.

       c) Ele possuía habilidades especiais para o trabalho.

 

                                           

 

CONTO: OLHOS D' ÁGUA - CONCEIÇÃO EVARISTO - COM GABARITO

 Conto: Olhos d’água

Conceição Evaristo

Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada custei reconhecer o quarto da nova casa em que estava morando e não conseguia me lembrar como havia chegado até ali. E a insistente pergunta, martelando, martelando... De que cor eram os olhos de minha mãe? Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer. Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite se transformou em uma dolorosa pergunta carregada de um tom acusatório. Então, eu não sabia de que cor eram os olhos de minha mãe?

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXx9s2L4jYztv7ZOO6AF-Etb6QzoqIKdtSIEYnHFci33aoVdb5ZbBbcY8qpsdfSQiy8OAruNTrprvA0avplbmCvtWivSt5sVP6P6DKXXwOU7SduYeOoxsFgVNAC30DOHu7gLkscFvaXlDSVmUrG-DE0NtTvm-JDQTqJEUzjRMNs_WrboWEC7Rc816Tcdw/s320/AGUA.jpg


Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo, busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe aprendi conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias. Naquele momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de vários detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do pé esquerdo... Da verruga que se perdia no meio da cabeleira crespa e bela... Um dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por uns momentos o lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias, se tornava uma grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no couro cabeludo ela. Pensamos que fosse carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas irmãs aflita, querendo livrar a boneca-mãe daquele padecer, puxou rápido o bichinho. A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto das lágrimas escorrerem. Mas, de que cor eram os olhos dela?

Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe. Ela havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. Ali, as crianças andavam nuas até bem grandinhas. As meninas, assim que os seios começavam a brotar, ganhavam roupas antes dos meninos. Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse ali, apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago, ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de comida. E era justamente nos dias de parco ou nenhum alimento que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho de madeira. Felizes colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que circundava o nosso barraco. Aquelas flores eram depois solenemente distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria, de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía.

Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se assentava na soleira da porta e juntas ficávamos contemplando as artes das nuvens no céu. Umas viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. Mas, de que cor eram os olhos de minha mãe?

Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de pranto balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, porque eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?

E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para mim e para minha família: ela e minhas irmãs que tinham ficado para trás. Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não só dela, mas de minhas tias e todas a mulheres de minha família. E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?

E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos de minha mãe, naquele momento, resolvi deixar tudo e, no outro dia, voltar à cidade em que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para nunca mais esquecer a cor de seus olhos.

E assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser descoberta da cor dos olhos de minha mãe.

E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?

Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas, eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face? E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.

Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas se misturarem às minhas.

Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos da outra. E um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei, quando, sussurrando minha filha falou:

Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?

(In: Olhos d’água, p. 15-19)

Entendendo o texto

01. Um conto é breve, ligado a uma única situação ou evento.

a.   Qual é o conflito vivido pela narradora em “Olhos d’água”?

          Conflito que gera o conto é a narradora não saber ou não se lembrar da cor dos olhos de sua mãe.

b.   Chamamos de clímax o momento de maior tensão do enredo, em que os fatos caminham para um final. Qual cena da narrativa pode ser associada ao clímax?

O reencontro entre a narradora e sua mãe, no qual aquela constata que os olhos de sua mãe têm cor de olhos d’água.

02. A narrativa é feita em 1ª pessoa por um narrador, que é também personagem.

a.   Como o narrador-personagem se apresenta? Justifique sua resposta com trechos do conto.

Resposta pessoal.

b.   De que modo a narradora vê a própria mãe?

              Como uma mulher criativa, sensível, amorosa, dedicada aos filhos, que conta histórias, que mantém a família unida.

c.   Em relação à descrição dos personagens no conto, o que predomina: as características físicas ou as psicológicas? Predomina o perfil psicológico dos personagens.

03. Ao longo do texto, uma pergunta se repete: “Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?”

a.   Com quem a narradora dialoga? Explique sua resposta.

               Consigo mesma, como se ela estivesse pensando em voz alta.

b.   O que a repetição da pergunta revela sobre o estado emocional da narradora?

          Indica a angústia da narradora por não saber ou não se lembrar da cor dos olhos da mãe.

04.  No conto, o espaço é sempre delimitado. Nessa narrativa, podemos perceber que há dois espaços:

a)   Quais informações a narradora revela sobre esses espaços?

              Espaço da infância: trata-se de um lugar pobre, no qual a narradora e sua família vivem em uma habitação mal construída, um barraco. Espaço atual: longe de sua cidade natal, afirmado nos trechos “longos dias de viagem para chegar à minha terra” e “resolvi deixar tudo e, no outro dia, voltar à cidade em que nasci”.

b)    Ao descrever a viagem, a narradora afirma: “Voltei aflita, mas satisfeita.”. Em sua opinião, quais foram os motivos da aflição e da satisfação?

Resposta pessoal.

05. Qual é a questão que atormenta a narradora no início do conto?

a) Qual era o nome de sua mãe?

b) De que cor eram os olhos de sua mãe?

c) Onde ela morava atualmente?

    06. Como a narradora descreve sua infância ao lado da mãe?

          a) Feliz e tranquila.

          b) Dolorosa e cheia de mistérios.

          c) Agitada e repleta de aventuras.

   07. Em que momento a mãe brincava de ser a Senhora, a Rainha?

         a) Nos dias de chuva.

         b) Nos dias de fartura de comida.

         c) Nos dias em que a família passava fome.

   08. Como a mãe distraía a fome das filhas nos momentos difíceis?

        a) Contando histórias da infância.

        b) Inventando jogos e brincadeiras.

       c) Cozinhando alimentos saborosos.

  09.  Nos dias de forte chuva, qual era o temor da mãe?

        a) Que sua filha se perdesse na tempestade.

        b) Que a casa desabasse sobre a família.

        c) Que os raios atingissem o barraco.

  10.  O que a narradora decide fazer para descobrir a cor dos olhos de sua mãe?

        a) Consultar um vidente.

        b) Voltar à cidade onde nasceu.

        c) Perguntar às suas irmãs.

  11. O que a narradora encontra ao contemplar os olhos de sua mãe em sua cidade natal?

        a) Olhos secos e sem expressão.

        b) Lágrimas e um sorriso feliz.

       c) Olhos azuis e penetrantes.

12.  Qual é a revelação surpreendente sobre a cor dos olhos de sua mãe?

       a) Eram verdes como esmeraldas.

       b) Eram negros como a noite.

       c) Eram cor de olhos d’água, águas de Mamãe Oxum.

13. O que a narradora pede à mãe ao descobrir a cor de seus olhos?

      a) Dinheiro.

      b) Proteção.

      c) Conselhos.

14. Como a narradora tenta descobrir a cor dos olhos de sua filha?

      a) Perguntando diretamente.

      b) Observando a mudança de cor.

      c) Brincando de refletir os olhos uma na outra.