Crônica: Noites
do Bogart
– Ana Paula...
– Jorge Alberto!
– Escuta, eu...
– Jorge Alberto, este é o Serge,
meu namorado. Serge, Jorge Alberto, meu ex-marido.
– Prazer, Sérgio. Ana, eu...
– Serge.
– Hein?
– O nome dele não é Sérgio, é Serge.
– Ah. Escuta, eu posso sentar?
– Claro!
– Você Parece ótima.
– Eu estou ótima. Nunca estive tão bem.
– Pois é, Ana. Sei lá. Você
não devia estar assim, tão bem. Desculpa, viu, Serge? Ele fala português?
– Ele é de Canoas.
– Ah. Desculpa, viu, Serge.
Não tem nada a ver com você, mas puxa. Ana! Nós nos separamos há, o quê? Três
semanas? E você está aí, radiante.
– Você queria que eu estivesse o quê? Arrasada?
– Não, podia estar bem. Mas não assim, em público, pô.
– Ah, você acha que eu não devia sair de casa?
– Olha, depois que meu pai
morreu, minha mãe levou dois anos para parecer na janela. Entendeu? Não sair de
casa: aparecer na janela.
– Mas Jorge Alberto, você
não morreu. Eu não sou viúva. Nós só nos separamos. A vida continua, meu
querido! Serge, não repare.
– Mas aqui, Ana? Logo aqui?
Lembra da última vez que nós dançamos juntos? Foi aqui.
– Lembro muito bem. Aliás,
foi na noite em que nós nos decidimos nos separar.
– Pois então. Isso não
significa nada para você? Eu não quero bancar o antigão e tal, Ana. Mas algumas
coisas devem ser respeitadas. Alguns valores ainda resistem, pombas!
– Mas vem cá: Você também não está aqui?
– Sim, mas olha a minha
cara. Eu pareço radiante? Vim aqui curtir fossa. Estou sozinho. Não estou me
divertindo. Homem pode sofrer em bar. Mulher não.
– Mas eu não estou sofrendo, estou ótima.
– Exatamente. E está pegando
mal pra burro. Você não podia fazer isso comigo, Aninha.
– Eu não acredito...
– Deixa eu perguntar pro Serge aqui...
– Deixa o Serge fora disto.
– Não, o Serge é homem e vai
me dar razão. Serge, suponhamos o seguinte...
Verissimo, Luís Fernando. O
marido do doutor Pompeu.
São Paulo,
Círculo do Livro, 1989. p. 81-2.
Entendendo o texto:
01 – O texto reproduz
características da fala. Exemplifique essas características com trechos do
texto.
As frases incompletas, a mistura de
tratamentos, as interjeições, as repetições, as indicações espaciais (logo ali), a linguagem familiar (Aninha).
02 – Em certas partes do
texto observa-se maior apego às regras da escrita do que às da fala, dando a
entender que o que está escrito não representa o que deveria ser dito.
Justifique e exemplifique essa afirmação com trechos do texto.
É o caso das
terminações verbais do infinitivo, que não são pronunciadas com clareza. O
mesmo ocorre com os plurais. São exemplos frases como “Ah, Escuta, eu posso
sentar?” ou “Mais algumas coisas devem ser respeitadas”.
03 – Observe a pontuação das
duas primeiras frases do texto e diferencie o estado de espírito de Ana Paula e
Jorge Alberto.
O aluno deve
perceber o contraste entre a entoação sugerida pelas reticências (que traduzem
a decepção de Jorge Alberto) e o ponto de exclamação (que indica a
espontaneidade de Ana Paula).
04 – Uma característica da
língua falada coloquial que deve ser evitada na língua escrita é a mistura dos
tratamentos tu/você. Aponte passagens em que isso ocorre e proponha formas
apropriadas à língua escrita culta.
A falta de
uniformidade do tratamento ocorre particularmente nas formas do imperativo
afirmativo (escuta, desculpa, olha, vem e outras), da segunda pessoa do
singular, que não condizem com o pronome de tratamento você, a qual comanda as
formas da terceira pessoa do singular. Caso a questão apresente muitas
dificuldades aos alunos – que podem não ter estudado ainda a formação do
imperativo –, deve-se remetê-los às aulas de gramática.
05 – “– Não, podia estar
bem. Mas não assim, em público, pô.” Esse fragmento deixa transparecer com
nitidez o principal “problema” enfrentado por Jorge Alberto. O que você acha
desse “problema”?
O aluno deve
perceber que o despeito de Jorge Alberto decorre principalmente da publicidade
que Ana Paula faz de sua alegria. Como ele mesmo admite, ela podia estar alegre
por ter se livrado dele – mas não em público...
06 – Explique o papel das
reticências nesse texto e explique por que elas são mais presentes na fala de
Jorge Alberto.
Elas são usadas aqui para transmitir mais
emoção e subjetividade para quem lê. Porque Jorge Alberto está emocionado,
indignado.
07 – Diferencie o efeito de
sentido do ponto de exclamação empregado nas falas de Ana Paula e de Jorge
Alberto.
Ana Paula usa o
ponto de exclamação no sentido de surpresa, já Jorge Alberto está com raiva,
indignado.