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quinta-feira, 26 de outubro de 2023

CONTO: IDEIAS DO CANÁRIO - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Conto: Ideias do Canário

             Machado de Assis

        Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg5jPIAX1h6_H5q4ER0vd9c3FPvR1UM7QX8DocMACx9bXcPk27QooCgM9_mKHzg5IVgJfaoB3nUqUS96JajkkVjXLWQV_v27RHhxV8pBT2hO60GI3FhDiY7qeiBiPXJsiCs4ctmmgv2a6zosKzXX4Ah_kiLlUSzgBf4aSRUB5OPfwgqsqkRpuRfh13ZsBI/s1600/CAN%C3%81RIO.png


        No princípio do mês passado, — disse ele, — indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de urna loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele nenhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.

        A loja era escura, atualhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pelo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.

        Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário. A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.

        — Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?

        E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:

        — Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo.  Não tive dono execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo...

        — Como — interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?

        — Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou que confundes.

        — Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.

        — Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.

        Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as ideias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito...

        — Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?

        — Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?

        — O mundo, redarguiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

        Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.

        — As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.

        — Quero só o canário.

        Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.

        Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabeto a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música, os sentimentos estéticos do bicho, as suas ideias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conhecimento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.

        Não tendo mais família que dois criados, ordenava-lhes que não me interrompessem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de importância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.

        Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, passeava à toa, sentia-me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação, — ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas. Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.

        — O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

        Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias. Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.

        Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto...

        — Mas não o procuraram?

        — Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fugiu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.

        Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:

        — Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?

        Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse dou do; mas que me importavam cuidados de amigos? Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular...

        — Que jardim? que repuxo?

        — O mundo, meu querido.

        — Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor.

        O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.

        Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior...

        — De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?

Machado de Assis.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o nome do protagonista do conto?

      O protagonista do conto é Macedo.

02 – Onde Macedo se refugia após quase ser atropelado por um tílburi?

      Macedo se refugia em uma loja de belchior.

03 – Como é descrito o dono da loja de belchior?

      O dono da loja de belchior é descrito como um homem franzino, de barba cor de palha suja, usando um gorro esfarrapado.

04 – Qual objeto chama a atenção de Macedo na loja?

      Uma gaiola com um canário dentro chama a atenção de Macedo na loja.

05 – O que Macedo murmura ao ver o canário na gaiola?

      Macedo murmura palavras de azedume, expressando sua indignação pelo destino do pássaro.

06 – Como o canário responde a Macedo quando este o questiona sobre seu passado?

      O canário nega ter sido vendido por um dono execrável ou dado a um menino, afirmando que tais ideias são fruto da imaginação de uma pessoa doente.

07 – Como o canário descreve o mundo?

      O canário descreve o mundo como um jardim espaçoso com um repuxo no meio, flores, arbustos, grama, ar claro e um pouco de azul por cima. Ele afirma que o canário é o dono desse mundo.

08 – O que acontece com o canário na narrativa?

      O canário foge de sua gaiola na casa de Macedo.

09 – Como o canário responde quando Macedo tenta convencê-lo de que o mundo é mais do que ele descreve?

      O canário trila que o mundo é um espaço infinito e azul com o sol por cima, rejeitando a descrição de Macedo sobre o mundo.

 

 

sábado, 21 de outubro de 2023

CRÔNICA: REGRA PARA USO DOS BONDES - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Crônica: REGRA PARA USO DOS BONDES

               MACHADO DE ASSIS

        A partir do fim da década de 1860 os bondes, ainda movidos por tração animal, começaram a se multiplicar no Rio de Janeiro. Desde então, muitas empresas se constituíram para explorar o negócio. Em crônica publicada em 1883, Machado de Assis atesta o sucesso desse meio de transporte coletivo “essencialmente democrático”. Com sua inconfundível ironia, o cronista Machado divulga dez de setenta artigos que regulamentariam o convívio entre os passageiros dos bondes. Por trás do efeito cômico que os artigos da crônica produzem lê-se o olhar agudo do grande escritor sobre a sociabilidade brasileira. O que faz rir nesses artigos, dos leitores contemporâneos de Machado aos de hoje, é a familiaridade com esses pequenos absurdos cotidianos. Feitos pequenos ajustes, o “puro capricho dos passageiros”, ou, em outras palavras, o desrespeito a acordos mínimos de convivência com o outro ainda prospera em nosso convívio social. Os comportamentos sociais que as regras indicam seriam óbvios demais para virarem normas e ao mesmo tempo parece ser regra vê-los desrespeitados cotidianamente. 

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiMSpQ7sWByfZYea4A8hwe78M5NhYCkFGTntsazlqCc11c9QqiaC6JJao14r1dB0h43_gqB5QDwGeLTRXC-iiWtvzqxF5CCGkZ5mIVUnTZEyx75ciHTltF1XCxmW7NYNR-N9P1LAkYcB-04frzA-GiWwL_qTh5GNh9MJ_XICFZEZUqfgFopSa96hRcwk-0/s1600/BONDE.jpg

        Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que frequentam bondes. O desenvolvimento que tem tido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

ART. I – Dos encatarroados

        Os encatarroados podem entrar nos bondes com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro. Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: — ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue. Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bonde, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc.

ART. II – Da posição das pernas

        As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação.

ART. III – Da leitura dos jornais

        Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.

ART. IV – Dos quebra-queixos

        É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: — a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer.

ART. V – Dos amoladores

        Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.

ART. VI – Dos perdigotos

        Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua.

ART. VII – Das conversas

        Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.

ART. VIII – Das pessoas com morrinha

        As pessoas que tiverem morrinhas, podem participar dos bondes indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.

ART. IX – Da passagem às senhoras

        Quando alguma senhora entrar, o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.

ART. X – Do pagamento

        Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.

Publicado originalmente na Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04/07/1883.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o objetivo do autor ao compor as regras para uso dos bondes?

      O autor deseja estabelecer regras para regular o comportamento dos passageiros nos bondes, tornando a experiência de transporte mais agradável e organizada.

02 – Quantos artigos de regulamentação o autor menciona na crônica?

      O autor menciona que existem setenta artigos em seu trabalho, mas apresenta apenas dez deles na crônica.

03 – Qual é a regra descrita no Artigo I, relacionada a pessoas que estão resfriadas?

      O Artigo I estabelece que pessoas resfriadas podem entrar nos bondes, desde que não tossem mais de três vezes dentro de uma hora ou quatro vezes se for um pigarro persistente. Caso contrário, devem caminhar, ir para a cama ou tossir em outro lugar.

04 – O que o Artigo II aborda em relação à posição das pernas dos passageiros?

      O Artigo II menciona que as pernas dos passageiros não devem constranger os outros no mesmo banco. Ele sugere que é permitido manter as pernas abertas, desde que os outros lugares sejam pagos e ocupados por meninas pobres ou viúvas desvalidas.

05 – Qual é a regra relativa à leitura de jornais mencionada no Artigo III?

      O Artigo III estabelece que os passageiros que estiverem lendo jornais devem fazê-lo sem tocar nas narinas dos vizinhos ou derrubar seus chapéus. Eles também não devem encostar o jornal nos passageiros à sua frente.

06 – Quando é permitido o uso de quebra-queixos, de acordo com o Artigo IV?

      O Artigo IV permite o uso de quebra-queixos em duas circunstâncias: quando não houver ninguém no bonde ou ao descer do bonde.

07 – O que o Artigo V aborda em relação aos amoladores?

      O Artigo V menciona que qualquer pessoa que queira compartilhar detalhes íntimos sem interesse para ninguém deve primeiro perguntar a um passageiro se ele é suficientemente cristão e resignado. Se o passageiro preferir ouvir a história, o proponente deve contar em detalhes; caso contrário, a pessoa deve dar uma descarga de pontapés.

08 – O que o Artigo VI diz sobre a emissão de perdigotos?

      O Artigo VI reserva o banco da frente para a emissão de perdigotos, exceto em dias chuvosos, quando a posição do banco pode mudar. Eles também podem ser emitidos na plataforma traseira, com a cara voltada para a rua.

09 – Qual é a orientação no Artigo IX sobre a passagem para senhoras?

      O Artigo IX estipula que, quando uma senhora entrar no bonde, o passageiro que estiver na ponta do banco deve levantar-se e dar passagem, evitando o desconforto de ficar apertado e demonstrando boa educação.

10 – O que o Artigo X descreve em relação ao pagamento no bonde?

      O Artigo X sugere que, se um passageiro estiver ao lado de um conhecido que está demorando para encontrar o dinheiro quando o condutor vem receber as passagens, o primeiro deve pagar imediatamente por ele, insinuando que a demora é injustificada.

 

 

 

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

CONTO: A CHINELA TURCA - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Conto: A Chinela Turca

             Machado de Assis

 

Vede o Bacharel Duarte. Acaba de compor o mais teso e correto laço de gravata que apareceu naquele ano de 1850, e anunciam-lhe a visita do Major Lopo Alves. Notai que é de noite, e passa de nove horas.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjvr8upmbqxCKORLQ4ExlsGCwiOl1-EkK6Sxx8zuHw-IqFyVEe63EI1A4A065F6dsRbGTXFsj6nm-9_MwkWV23nLRY4hnlcDbvQd3uqyCoSC7vKT2LdA6tnSEtD3son0HL7u6YyAX5gQ4Z7y7qDmgmzfDTOIPD66KZ1FggYwFsdYcHyrFYIkQ4Hlao13cA/s320/sapato01.jpg


Duarte estremeceu, e tinha duas razões para isso. A primeira era ser o major, em qualquer ocasião, um dos mais enfadonhos sujeitos do tempo. A segunda é que ele preparava-se justamente para ir ver, em um baile, os mais finos cabelos loiros e os mais pensativos olhos azuis, que este nossa clima, tão avaro deles, produzira. Datava de uma semana aquele namoro. Seu coração deixando-se prender entre duas valsas, confiou aos olhos, que eram castanhos, uma declaração em regra, que eles pontualmente transmitiram à moça, dez minutos antes da ceia, recebendo favorável resposta logo depois do chocolate. Três dias depois, estava a caminho a primeira carta, e pelo jeito que levavam as cousas não era de admirar que, antes do fim do ano, estivessem ambos a caminho da igreja. Nestas circunstâncias, a chegada de Lopo Alves era uma verdadeira calamidade. Velho amigo da família, companheiro de seu finado pai no exército, tinha jus o major a todos os respeitos. Impossível despedi-lo ou tratá-lo com frieza. Havia felizmente uma circunstância atenuante; o major era aparentado com Cecília, a moça dos olhos azuis; em caso de necessidade, era um voto seguro. Duarte enfiou um chambre e dirigiu-se para a sala, onde Lopo Alves, com um rolo debaixo do braço e os olhos fitos no ar, parecia totalmente alheio à chegada do bacharel.

— Que bom vento o trouxe a Catumbi a semelhante hora? Perguntou Duarte, dando à voz uma expressão de prazer, aconselhada não menos pelo interesse que pelo bom-tom.

 — Não sei se o vento que me trouxe é bom ou mau, respondeu o major sorrindo por baixo do espesso bigode grisalho; sei que foi um vento rijo. Vai sair?

— Vou ao Rio Comprido.

— Já sei; vai à casa da viúva Meneses. Minha mulher e as pequenas já lá devem estar: eu irei mais tarde, se puder. Creio que é cedo, não? Lopo Alves tirou o relógio e viu que eram nove horas e meia. Passou a mão pelo bigode, levantou-se, deu alguns passos na sala, tornou a sentar-se e disse:

— Dou-lhe uma notícia, que certamente não espera. Saiba que fiz... Fiz um drama. — Um drama! Exclamou o bacharel.

— Que quer? Desde criança padeci destes achaques literários. O serviço militar não foi remédio que me curasse, foi um paliativo. A doença regressou com a força dos primeiros tempos. Já agora não há mais remédio senão deixá-la, e ir simplesmente ajudando a natureza.

Duarte recordou-se de que efetivamente o major falava noutro tempo de alguns discursos inaugurais, duas ou três nênias e boa soma de artigos que escrevera acerca das campanhas do Rio da Prata. Havia porém muitos anos que Lopo Alves deixara em paz os generais platinos e os defuntos; nada fazia supor que a moléstia volvesse, sobretudo caracterizada por um drama. Esta circunstância explicá-la-ia o bacharel, se soubesse que Lopo Alves algumas semanas antes, assistira à representação de uma peça do gênero ultrarromântico, obra que lhe agradou muito e lhe sugeriu a ideia de afrontar as luzes do tablado. Não entrou o major nestas minusciosidades necessárias, e o bacharel ficou sem conhecer o motivo da explosão dramática do militar. Nem o soube, nem curou disso. Encareceu muito as faculdades mentais do major, manifestou calorosamente a ambição que nutria de o ver sair triunfante naquela estreia, prometeu que o recomendaria a alguns amigos que tinha no Correio Mercantil, e só estacou e empalideceu quando viu o major, trêmulo de bem-aventurança, abrir o rolo que trazia consigo.

— Agradeço-lhe as suas boas intenções, disse Lopo Alves, e aceito o obséquio que me promete; antes dele, porém, desejo outro. Sei que é inteligente e lido; há de me dizer francamente o que pensa deste trabalho. Não lhe peço elogios, exijo franqueza e franqueza rude. Se achar que não é bom, diga-o sem rebuço.

Duarte procurou desviar aquele cálix de amargura; mas era difícil pedi-lo, e impossível alcançá-lo. Consultou melancolicamente o relógio, que marcava nove horas e cinquenta e cinco minutos, enquanto o major folheava paternalmente as cento e oitenta folhas do manuscrito.

— Isto vai depressa, disse Lopo Alves; eu sei o que são rapazes e o que são bailes. Descanse que ainda hoje dançará duas ou três valsas com ela, se a tem, ou com elas. Não acha melhor irmos para o seu gabinete?

Era indiferente, para o bacharel, o lugar do suplício; acedeu ao desejo do hóspede. Este, com a liberdade que lhe davam as relações, disse ao moleque que não deixasse entrar ninguém. O algoz não queria testemunhas. A porta do gabinete fechou-se; Lopo Alves tomou lugar ao pé da mesa, tendo em frente o bacharel, que mergulhou o corpo e o desespero numa vasta poltrona de marroquim, resoluto a não dizer palavra para ir mais depressa ao termo.

O drama dividia-se em sete quadros. Esta indicação produziu um calafrio no ouvinte. Nada havia de novo naquelas cento e oitenta páginas, senão a letra do autor. O mais eram os lances, os caracteres, as ficelles, e até o estilo dos mais acabados tipos do romantismo desgrenhado. Lopo Alves cuidava pôr por obra uma invenção, quando não fazia mais do que alinhavar as suas reminiscências. Noutra ocasião, a obra seria um bom passatempo. Havia logo no primeiro quadro, espécie de prólogo, uma criança roubada à família, um envenenamento, dous embuçados, a ponta de um punhal e quantidade de adjetivos não menos afiados que o punhal. No segundo quadro dava-se conta da morte de um dos embuçados, que devia ressuscitar no terceiro, para ser preso no quinto, e matar o tirano do sétimo. Além da morte aparente do embuçado, havia no segundo quadro o rapto da menina, já então moça de dezessete anos, um monólogo que parecia durar igual prazo, e o roubo de um testamento.

Eram quase onze horas quando acabou a leitura deste segundo quadro. Duarte mal podia conter a cólera; era já impossível ir ao Rio Comprido. Não é fora de propósito conjeturar que, se o major expirasse naquele momento, Duarte agradecia a morte como um benefício da Providência. Os sentimentos do bacharel não faziam crer tamanha ferocidade; mas a leitura de um mau livro é capaz de produzir fenômenos ainda mais espantosos. Acresce que, enquanto aos olhos carnais do bacharel aparecia em toda a sua espessura a grenha de Lopo Alves, fugiam-lhe ao espírito os fios de ouro que ornavam a formosa cabeça de Cecília; via com os olhos azuis, a tez branca e rosada, o gesto delicado e gracioso, dominando todas as demais damas que deviam estar no salão da viúva Meneses. Via aquilo, e ouvia mentalmente a música, a palestra, o soar dos passos, e o rugeruge das sedas; enquanto a voz rouquenha e sensaborona de Lopo Alves ia desfiando os quadros e os diálogos, com a impassibilidade de uma grande convicção.

Voava o tempo, e o ouvinte já não sabia a conta dos quadros. Meia-noite soara desde muito; o baile estava perdido. De repente, viu Duarte que o major enrolava outra vez o manuscrito, erguia-se, empertigava-se, cravava nele uns olhos odientos e maus, e saía arrebatadamente do gabinete. Duarte quis chamá-lo, mas o pasmo tolhera-lhe a voz e os movimentos. Quando pôde dominar-se, ouviu o bater do tacão rijo e colérico do dramaturgo na pedra da calçada.

Foi à janela; nada viu nem ouviu; autor e drama tinham desaparecido.

— Por que não fez ele isso a mais tempo? Disse o rapaz suspirando.

O suspiro mal teve tempo de abrir as asas e sair pela janela fora, em demanda do Rio Comprido, quando o moleque do bacharel veio anunciar-lhe a visita de um homem baixo e gordo.

— A esta hora? Exclamou Duarte.

— A esta hora, repetiu o homem baixo e gordo, entrando na sala. A esta ou a qualquer hora, pode a polícia entrar na casa do cidadão, uma vez que se trata de um delito grave.

— Um delito!

— Creio que me conhece...

— Não tenho essa honra.

— Sou empregado na polícia.

— Mas que tenho eu com o senhor? De que delito se trata?

— Pouca cousa: um furto. O senhor é acusado de ter subtraído uma chinela turca. Aparentemente não vale nada ou vale pouco a tal chinela. Mas há chinela e chinela. Tudo depende das circunstâncias.

O homem disse isto com um riso sarcástico, e cravando no bacharel uns olhos de inquisidor. Duarte não sabia sequer da existência do objeto roubado. Concluiu que havia equívoco de nome, e não se zangou com a injúria irrogada à sua pessoa, e de algum modo à sua classe, atribuindo-se-lhe a ratonice. Isto mesmo disse ao empregado da polícia, acrescentando que não era motivo, em todo caso, para incomodá-lo a semelhante hora.

— Há de perdoar-me, disse o representante da autoridade. A chinela de que se trata vale algumas dezenas de contos de réis; é ornada de finíssimos diamantes, que a tornam singularmente preciosa. Não é turca só pela forma, mas também pela origem. A dona, que é uma de nossas patrícias mais viajeiras, esteve, há cerca de três anos no Egito, onde a comprou a um judeu. A história, que este aluno de Moisés referiu acerca daquele produto da indústria muçulmana, é verdadeiramente miraculosa, e, no meu sentir, perfeitamente mentirosa. Mas não vem ao caso dizê-la. O que importa saber é que ela foi roubada e que a polícia tem denúncia contra o senhor.

Neste ponto do discurso, chegara-se o homem à janela; Duarte suspeitou que fosse um doudo ou um ladrão. Não teve tempo de examinar a suspeita, porque dentro de alguns segundos, viu entrar cinco homens armados, que lhe lançaram as mãos e o levaram, escada abaixo, sem embargo dos gritos que soltava e dos movimentos desesperados que fazia. Na rua havia um carro, onde o meteram à força. Já lá estava o homem baixo e gordo, e mais um sujeito alto e magro, que o receberam e fizeram sentar no fundo do carro. Ouviu-se estalar o chicote do cocheiro e o carro partiu à desfilada.

— Ah! Ah! Disse o homem gordo. Com que então pensava que podia impunemente furtar chinelas turcas, namorar moças louras, casar talvez com elas... e rir ainda por cima do gênero humano.

Ouvindo aquela alusão à dama dos seus pensamentos, Duarte teve um calafrio. Tratava-se, ao que parecia, de algum desforço de rival suplantado. Ou a alusão seria casual e estranha à aventura? Duarte perdeu-se num cipoal de conjeturas, enquanto o carro ia sempre andando a todo galope. No fim de algum tempo, arriscou uma observação.

— Quaisquer que sejam os meus crimes, suponho que a polícia...

— Nós não somos da polícia, interrompeu friamente o homem magro.

— Ah!

— Este cavalheiro e eu fazemos um par. Ele, o senhor e eu fazemos um terno. Ora, terno não é melhor que par; não é, não pode ser. Um casal é o ideal. Provavelmente não me entendeu?

— Não, senhor.

— Há de entender logo mais.

Duarte resignou-se à espera, enfronhou-se no silêncio, derreou o corpo, e deixou correr o carro e a aventura. Obra de cinco minutos depois estacavam os cavalos.

— Chegamos, disse o homem gordo.

Dizendo isto, tirou um lenço da algibeira e ofereceu-o ao bacharel para que tapasse os olhos. Duarte recusou, mas o homem magro observou-lhe que era mais prudente obedecer que resistir. Não resistiu o bacharel; atou o lenço e apeou-se. Ouviu, daí a pouco, ranger uma porta; duas pessoas, — provavelmente as mesmas que o acompanharam no carro, — seguraram-lhe as mãos e o conduziram por uma infinidade de corredores e escadas. Andando, ouvia o bacharel algumas vozes desconhecidas, palavras soltas, frases truncadas. Afinal pararam; disseram-lhe que se sentasse e destapasse os olhos. Duarte obedeceu; mas ao desvendar-se, não viu ninguém mais. Era uma sala vasta, assaz iluminada, trastejada com elegância e opulência.

Era talvez sobreposse a variedade dos adornos; contudo, a pessoa que os escolhera devia ter gosto apurado.

Os bronzes, charões, tapetes, espelhos, — a cópia infinita de objetos que enchiam a sala, era tudo da melhor fábrica. A vista daquilo restituiu a serenidade de ânimo ao bacharel; não era provável que ali morassem ladrões.

Reclinou-se o moço indolentemente na otomana... Na otomana! Esta circunstância trouxe à memória do rapaz o princípio da aventura e o roubo da chinela. Alguns minutos de reflexão bastaram para ver que a tal chinela era já agora mas que problemática. Cavando mais fundo no terreno das conjeturas, pareceu-lhe achar uma explicação nova e definitiva. A chinela vinha a ser pura metáfora; tratava-se do coração de Cecília, que ele roubara, delito de que o queria punir o já imaginado rival. A isto deviam ligar-se naturalmente as palavras misteriosas do homem magro: o par é melhor que o terno; um casal é o ideal.

— Há de ser isto, concluiu Duarte; mas quem será esse pretendente derrotado?

Neste momento abriu-se uma porta do fundo da sala e negrejou a batina de um padre alvo e calvo. Duarte levantou-se, como por efeito de uma mola. O padre atravessou lentamente a sala, ao passar por ele deitou-lhe a bênção, e foi sair por outra porta rasgada na parede fronteira. O bacharel ficou sem movimento, a olhar para a porta, a olhar sem ver, estúpido de todos os sentidos. O inesperado daquela aparição baralhou totalmente as ideias anteriores a respeito da aventura. Não teve tempo, entretanto, de cogitar alguma nova explicação, porque a primeira porta foi de novo aberta e entrou por ela outra figura, desta vez o homem magro, que foi direito a ele e o convidou a segui-lo. Duarte não opôs resistência. Saíram por uma terceira porta, e, atravessados alguns corredores mais ou menos alumiados, foram dar a outra sala, que só o era por duas velas postas em castiçais de prata. Os castiçais estavam sobre uma mesa larga. Na cabeceira desta havia um homem velho que representava ter cinquenta e cinco anos; era uma figura atlética, farta de cabelos na cabeça e na cara.

— Conhece-me? Perguntou o velho, logo que Duarte entrou na sala.

— Não, senhor.

— Nem é preciso. O que vamos fazer exclui absolutamente a necessidade de qualquer apresentação. Saberá em primeiro lugar que o roubo da chinela foi um simples pretexto...

— Oh! Decerto! Interrompeu Duarte.

— Um simples pretexto, continuou o velho, para trazê-lo a esta nossa casa. A chinela não foi roubada; nunca saiu das mãos da dona. João Rufino, vá buscar a chinela.

O homem magro saiu, e o velho declarou ao bacharel que a famosa chinela não tinha nenhum diamante, nem fora comprada a nenhum judeu do Egito; era, porém, turca, segundo se lhe disse, e um milagre de pequenez. Duarte ouviu as explicações, e, reunindo todas as forças, perguntou resolutamente:

— Mas, senhor, não me dirá de uma vez o que querem de mim e o que estou fazendo nesta casa?

— Vai sabê-lo, respondeu tranquilamente o velho.  

A porta abriu-se e apareceu o homem magro com a chinela na mão. Duarte, convidado a aproximar-se da luz, teve ocasião de verificar que a pequenez era realmente miraculosa. A chinela era de marroquim finíssimo; no assento do pé, estufado e forrado de seda cor azul, rutilavam duas letras bordadas a ouro.

— Chinela de criança, não lhe parece? Disse o velho.

— Suponho que sim.

— Pois supõe mal; é chinela de moça.

— Será; nada tenho com isso.

— Perdão! Tem muito, porque vai casar com a dona.

— Casar! Exclamou Duarte.

— Nada menos. João Rufino, vá buscar a dona da chinela.

Saiu o homem magro, e voltou logo depois. Assomando à porta, levantou o reposteiro e deu entrada a uma mulher, que caminhou para o centro da sala. Não era mulher, era uma sílfide, uma visão de poeta, uma criatura divina.

Era loura; tinha os olhos azuis, como os de Cecília, extáticos, uns olhos que buscavam o céu ou pareciam viver dele. Os cabelos, desleixadamente penteados, faziam-lhe em volta da cabeça um como resplendor de santa; santa somente, não mártir, porque o sorriso que lhe desabrochava os lábios, era um sorriso de bem aventurança, como raras vezes há de ter tido a terra.

Um vestido branco, de finíssima cambraia, envolvia-lhe castamente o corpo, cujas formas aliás desenhava, pouco para os olhos, mas muito para a imaginação.

Um rapaz, como o bacharel, não perde o sentimento da elegância, ainda em lances daqueles. Duarte, ao ver a moça, compôs o chambre, apalpou a gravata e fez uma cerimoniosa cortesia, a que ela correspondeu com tamanha gentileza e graça, que a aventura começou a parecer muito menos aterradora.

— Meu caro doutor, esta é a noiva. A moça abaixou os olhos; Duarte respondeu que não tinha vontade de casar.

— Três cousas vai o senhor fazer agora mesmo, continuou impassivelmente o velho: a primeira, é casar; a segunda, escrever o seu testamento; a terceira engolir droga do Levante...

— Veneno! Interrompeu Duarte.

— Vulgarmente é esse o nome; eu dou-lhe outro: passaporte do céu.

Duarte estava pálido e frio. Quis falar, não pôde; um gemido, sequer, não lhe saiu do peito. Rolaria ao chão, se não houvesse ali perto uma cadeira em que se deixou cair.

— O senhor, continuou o velho, tem uma fortunazinha de cento e cinquenta contos. Esta pérola será a sua herdeira universal. João Rufino, vá buscar o padre.

O padre entrou, o mesmo padre calvo que abençoara o bacharel pouco antes; entrou e foi direto ao moço, engrolando sonolentamente um trecho de Neemias ou qualquer outro profeta menos; travou-lhe da mão e disse:  

— Levante-se!

— Não! Não quero! Não me casarei!

— E isto? Disse da mesa o velho, apontando-lhe uma pistola.

— Mas então é um assassinato?

— É; a diferença está no gênero de morte: ou violenta com isto, ou suave com a droga. Escolha! Duarte suava e tremia. Quis levantar-se e não pôde. Os joelhos batiam um contra o outro. O padre chegou-se-lhe ao ouvido, e disse baixinho:

— Quer fugir?

— Oh! Sim! Exclamou, não com os lábios, que podia ser ouvido, mas com os olhos em que pôs toda a vida que lhe restava.

— Vê aquela janela? Está aberta; embaixo fica um jardim. Atire-se dali sem medo.

— Oh! Padre! Disse baixinho o bacharel.

— Não sou padre, sou tenente do exército. Não diga nada.

A janela estava apenas cerrada; via-se pela fresta uma nesga do céu, já meio claro. Duarte não hesitou, coligiu todas as forças, deu um pulo do lugar onde estava e atirou-se a Deus misericórdia por ali abaixo. Não era grande altura, a queda foi pequena; ergueu-se o moço rapidamente, mas o homem gordo, que estava no jardim, tomou-lhe o passo.

— Que é isso? Perguntou ele rindo.

Duarte não respondeu, fechou os punhos, bateu com eles violentamente nos peitos do homem e deitou a correr pelo jardim fora. O homem não caiu; sentiu apenas um grande abalo; e, uma vez passada a impressão, seguiu no encalço do fugitivo. Começou então uma carreira vertiginosa. Duarte ia saltando cercas e muros, calcando canteiros, esbarrando árvores, que uma ou outra vez se lhe erguiam na frente. Escorria-lhe o suor em bica, alteava-se-lhe o peito, as forças iam a perder-se pouco a pouco; tinha uma das mãos feridas, a camisa salpicada do orvalho das folhas, duas vezes esteve a ponto de ser apanhado, o chambre pegara-se-lhe em uma cerca de espinhos. Enfim, cansado, ferido, ofegante, caiu nos degraus de pedra de uma casa, que havia no meio do último jardim que atravessara.

Olhou para trás; não viu ninguém, o perseguidor não o acompanhara até ali. Podia vir, entretanto; Duarte ergueu-se a custo, subiu os quatro degraus que lhe faltavam, e entrou na casa, cuja porta, aberta, dava para uma sala pequena e baixa.

Um homem que ali estava, lendo um número do Jornal do Comércio, pareceu não o ter visto entrar. Duarte caiu numa cadeira. Fitou os olhos no homem. Era o Major Lopo Alves.

O major, empunhando a folha, cujas dimensões iam-se tornando extremamente exíguas, exclamou repentinamente:

— Anjo do céu, estás vingado! Fim do último quadro.

Duarte olhou para ele, para a mesa, para as paredes, esfregou os olhos, respirou à larga.

 — Então! Que tal lhe pareceu?

— Ah! Excelente! Respondeu o bacharel, levantando-se.

— Paixões fortes, não?

— Fortíssimas. Que horas são?

— Deram duas agora mesmo. Duarte acompanhou o major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpouse, foi até à janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: — Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco.

 FIM

  Entendendo o texto

01. Quem é o protagonista do conto?

O protagonista do conto é o Bacharel Duarte.

02. Por que Duarte estava se arrumando no início do conto? Duarte estava se arrumando porque estava se preparando para ir a um baile onde encontraria uma moça com quem estava se relacionando.

03. Por que a visita do Major Lopo Alves incomoda Duarte?

A visita do Major Lopo Alves incomoda Duarte porque ele estava se preparando para encontrar uma moça de quem estava apaixonado, e a presença do Major atrapalharia seus planos.

04. Qual é o certo "crime" de Duarte no conto?

O certo "crime" de Duarte no conto é o roubo de uma chinela turca valiosa.

05. Quem é a verdadeira dona da chinela turca?

   A verdadeira dona da chinela turca é a noiva que foi apresentada a Duarte.

06. Qual é o verdadeiro propósito da visita do Major Lopo Alves?  O verdadeiro propósito da visita do Major Lopo Alves era distrair e pregar uma peça em Duarte, envolvendo-o em uma narrativa fantástica.

07. O que o Major Lopo Alves revela a Duarte no final do conto? No final do conto, o Major revela que toda a situação foi uma encenação eletrônica para entreter Duarte e fazer com que ele vivesse uma experiência emocional intensa.

08. O que o Major Lopo Alves afirma ser o "melhor drama"?

O Major Lopo Alves afirma que o "melhor drama" está no espectador, ou seja, nas emoções e reações do público diante de uma história.

09. Como o conto "A Chinela Turca" se desenrola em relação à realidade e à imaginação?

O conto se desenrola misturando elementos da realidade e da imaginação. O encontro do protagonista com o Major e a narrativa do drama fantástico acontecem na realidade, enquanto o final revela que tudo foi uma representação fictícia orquestrada para mexer com as emoções de Duarte.

    10. Cite a moral da história.

           Mantenha a porta da sua casa igual seu coração, trancado.

 

   

 

 

sábado, 5 de novembro de 2022

CRÔNICA: O NASCIMENTO DA CRÔNICA - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Crônica: O nascimento da crônica

               Machado de Assis

        Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.

        Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

        Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

        Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

        Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

        Não afirmo sem prova.

        Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

        Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?

SANTOS, Joaquim Ferreira dos (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 27.

Fonte: Língua Portuguesa – Ensino Médio – 2° ano. Caderno 4 – 1ª edição – 1ª impressão – Maxiprint Editora – São Paulo, 2018. p. 40-2.

Entendendo a crônica:

01 – O eu da crônica afirma que há uma forma correta para se começar uma crônica: por meio de uma trivialidade. Em seguida, ele cita alguns exemplos que confirmam o seu ponto de vista. Analise o que foi dito e os exemplos apontados e explique o que ele quis dizer.

      Ao afirmar que uma crônica nasce da trivialidade, o eu cronista afirma que esse gênero nasce a partir de temas simples, de situações cotidianas, corriqueiras, como uma conversa sobre o clima, por exemplo, que é o que ele cita.

02 – Apesar de ser um texto escrito com uma linguagem mais aprimorada, própria da época e do estilo do autor, há a intenção, por parte do eu do cronista, de estabelecer uma aproximação com o leitor. Como isso acontece? Explique.

      De fato, trata-se de um texto escrito por um autor que perpassou o século XIX e o início do século XX, com uma escrita rebuscada e um vocabulário mais erudito. Entretanto, há a tentativa de aproximação com o leitor, especialmente por meio dos vocativos estabelecidos ao longo do texto, com o intuito de colocar esse leitor no meio das discussões, como por exemplo quando se observa o seguinte trecho: “Mas, leitor amigo”.

03 – Na tentativa de estabelecer a origem da crônica, o eu do cronista passa por algumas épocas distintas, apontando o calor como o assunto central para o nascimento desse gênero. Aponte as personagens destacadas, ao longo do texto, que confirmam essa ideia, apresentando a associação feita entre as personagens e o calor.

      Primeiro, o eu do cronista cita Adão e Eva, alegando que, quando Eva nos fez perder o paraíso, veio o calor e tudo mais que norteia o nosso cotidiano, como tufões, seca, etc. Depois, foi a vez das duas primeiras vizinhas que, ao iniciarem uma conversa trivial, após uma refeição, certamente, falaram do calor. Por fim, o eu do cronista vai a um cemitério, onde todos reclamam do calor, menos os coveiros responsáveis por abrir e por fechar as covas, debaixo de chuva ou de sol, e que não reclamam do sol escaldante naquele dia.

04 – Justifique o uso da pontuação destacada nos exemplos a seguir:

a)   “[...] fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e ‘La glace est rompue’ [...]” (reticências dentro dos colchetes e aspas simples)

As reticências dentro dos colchetes indicam que alguma informação foi suprimida antes e depois do trecho citado. As aspas simples indicam uma expressão em língua estrangeira e, ainda, um trecho dentro de outro trecho citado.

b)   “Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras.” (Vírgulas)

As duas primeiras vírgulas estão isolando um vocativo, uma expressão de chamamento. A última vírgula isola uma oração subordinada adjetiva explicativa.

c)   “[...] que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!” (Pontos de exclamação)

Todos os pontos de exclamação, no trecho transcrito, indicam a expressão enfática de um sentimento, de uma sensação, no caso, o incômodo diante do calor excessivo.

d)   “E eles?” (Ponto de interrogação)

O ponto de interrogação foi usado para indicar uma pergunta direta.

05 – Por fim, observe que todos os excertos apresentados no exercício 4 figuram entre aspas. Explique o porquê dessa condição.

      Todos os trechos foram colocados entre aspas, pois foram retirados do texto “O nascimento da crônica”. Trata-se, portanto, de uma citação textual.