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segunda-feira, 16 de novembro de 2020

CONTO: O HOMEM QUE RESOLVEU CONTAR APENAS MENTIRAS - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO -COM GABARITO

 Conto: O HOMEM QUE RESOLVEU CONTAR APENAS MENTIRAS

              Ignácio de Loyola Brandão

        Naquela manhã, acordou disposto a só contar mentiras. A não dizer uma única verdade. A ninguém. Nem à própria mulher. E assim quando afirmou: “vou para o trabalho”, empregou sua primeira mentira. Não ia. Tinha resolvido faltar, esquecer o escritório, a mesa, os papéis. Parar, ficar na rua.

        Quando disse bom-dia para o zelador do prédio, também mentia, porque odiava o zelador, um oportunista, que não conservava o prédio, fazia fofocas entre empregadas, pedia gorjetas, ganhava porcentagem na compra de materiais de limpeza.

        Quando disse o endereço ao motorista do táxi, também mentia, não pretendia ir para aquele lugar. Mas o chofer exigira o destino pois as pessoas vivem exigindo as coisas. E nem sempre temos vontade ou possibilidade de fazer. E as exigências crescem e se tornam parte de nossa vida diária. Nos acostumamos com elas, nos acomodamos, sem perceber que cada concessão é um pedaço da gente mesmo, envenenado, que a gente engole.

        Quando o homem entrou no bar e pediu café, mentia, porque não queria café. Estava apenas fazendo um teste, enquanto observava o gesto maquinal daquele empregado que destacava uma ficha e a entregava. Será que aquele funcionário, alguma vez, imaginou que alguém pudesse não querer café? Pedir, por pedir, mas não querer? Nem sequer desejar ver a xícara fumegante?

        Com a ficha na mão, saiu pela rua. Outra mentira, não queria ficar na rua. Mas se entrasse no escritório, seria mentira maior. Odiava o escritório, o empregado, os colegas. De duas mentiras, preferiu a menor, ainda que, ponderando, descobrisse que ficar com a mentira menor era igualmente fuga, mentira, porque nesse dia tinha decidido mentir. E, quando se decide uma coisa, o melhor é levá-la até o fim.

        Andou. Pensando como a cidade era bonita com seus prédios batidos de Sol e os vidros dando mil reflexos. Bonita com a gente que andava apressada para trabalhar e construir alguma coisa. Bonita na tranquilidade da vida, no sossego das casas, na calma que se estampava nos rostos das gentes. Bonita no que oferecia de futuro e de perspectivas. Bonita nos carros que andavam em fila, ruidosamente, um atrás do outro, sempre para frente, sempre para frente. Bonita na fumaça negra que escapava dos veículos e subia em espirais, milhares de fumaças reunidas, formando uma bela nuvem negra, como um negro véu, que surgia sobre a terra, espanando o Céu.

        Andou sem querer andar.

        Viu, sem querer ver.

        Sentiu, sem querer sentir.

        Cansou, sem querer cansar.

        Tudo uma grande mentira neste dia. Como mentira era a vida que ele vivia, cotidianamente, falsificada, pré-fabricada, exaurida, imposta. Suada. Que repousante era viver este dia de mentira. Negar tudo. Reviver.

        Andou até a hora de voltar para casa. Outra mentira, não queria voltar para casa, o lar, o aconchego, o refúgio, a fuga. A verdade de sua vida encerrada entre aquelas quatro paredes, a família, o amor, o carinho, o aconchego, o lar, o refúgio, a fuga, a realidade.

        Não voltar e andar. Percorrendo as ruas, entrando nos prédios, conversando com as pessoas. No entanto, não tinha vontade de conversar. Sabia que precisava, mas não tinha vontade de falar. Falava pouco, sua língua andava entorpecida, sem prática. O medo é que um dia desacostumasse e perdesse a capacidade de se comunicar. E como andava difícil se comunicar. Ficou parado numa esquina, esperando a noite passar.

        Quando o dia chegou, tinha acabado o período da mentira, podia enfrentar de novo a verdade. E disse bom-dia ao porteiro, deu o endereço ao táxi, ligou para a mulher e o patrão. Disse no emprego que estava doente. E, na verdade, estava.

                              (Ignácio de Loyola Brandão. O homem do furo na mão e outras histórias. São Paulo: Ática, 2000. Adaptado.)

               Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P. 81-5.

Fonte  da imagem:https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.mensagenscomamor.com%2Fmensagem%2F7947&psig=AOvVaw0btdNZZ072v6p0ldf7Mkyb&ust=1605630177660000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCPDDleW8h-0CFQAAAAAdAAAAABAD

Entendendo o conto:

01 – Os fatos narrados no texto sugerem que, em seu dia de mentiras, a personagem principal:

a)   Deixa de lado todos os seus sonhos de conquista.

b)   Percebe que as escolhas de sua vida foram acertadas.

c)   Limita-se a fazer somente do que gosta.

d)   Rompe, pelo menos nesse dia, com todas as suas obrigações.

e)   Faz desse dia o mais feliz de sua vida.

02 – Todas as palavras destacadas nos trechos a seguir têm função qualitativa, exceto em:

a)   “Quando disse bom-dia para o zelador do prédio(...)”.

b)   “(...) odiava o zelador, um oportunista, que não conservava o prédio (...)”.

c)   “(...) enquanto observava o gesto maquinal daquele empregado...”.

d)   “Nem sequer desejar ver a xícara fumegante?”.

e)   “Pensando como a cidade era bonita com seus prédios batidos de Sol (...)”.

03 – No início do primeiro parágrafo, o autor usou aspas (“ ”) para indicar:

a)   Um trecho escrito propositalmente de maneira incorreta.

b)   Uma passagem importante.

c)   Fala da personagem.

d)   Comentário irônico.

e)   Pensamentos da personagem.

04 – Observe, no primeiro parágrafo, o número de frases iniciadas pelo conectivo e. A repetição desse conectivo sugere que a sensação da personagem é provocada:

a)   Por uma sucessão de acontecimentos interligados por uma relação de causa e consequência.

b)   Por uma sucessão de acontecimentos imprevistos.

c)   Por alguns fatos pouco inesperados.

d)   Pelo modo de agir de outras pessoas.

e)   Por um acúmulo de fatos de teor semelhante.

05 – Em: “De duas mentiras, preferiu a menor, ainda que, ponderando, descobrisse que ficar com a mentira menor era igualmente fuga (...)”, o conectivo em destaque expressa ideia de:

a)   Condição.

b)   Concessão.

c)   Comparação.

d)   Causa.

e)   Consequência.

06 – Sem prejuízo de sentido, as palavras em destaque nas frases a seguir podem ser substituídas pelas sugeridas entre parênteses, exceto em:

a)   “(...) enquanto observava o gesto maquinal daquele empregado (...)” (mecânico).

b)   “Nem sequer desejar ver a xícara fumegante?” (Muito quente).

c)   “Que repousante era viver este dia de mentira” (incômodo).

d)   “(...) não queria voltar para casa, o lar, o aconchego, o refúgio, a fuga” (aconchego).

e)   “Falava pouco, sua língua andava entorpecida, sem prática” (adormecida).

07 – Os fatos narrados no texto evidenciam que o cotidiano das pessoas é repleto de:

a)   Atos mecânicos.

b)   Escolhas conscientes.

c)   Fatos extraordinários.

d)   Desafios.

e)   Aborrecimentos.

08 – No trecho: “(...) formando uma bela nuvem negra, como um negro véu (...)” temos uma figura de linguagem que consiste em:

a)   Atenuar o sentido desagradável, grosseiro e indecoroso de uma palavra ou expressão.

b)   Empregar uma palavra por outra, com a qual mantém relação. No caso, a parte pelo todo.

c)   Expressar ideia contrária do que se pensa com a finalidade de criticar.

d)   Confronto entre dois termos para ressaltar a semelhança entre eles.

e)   Exagero intencional de uma expressão.

09 – O trecho: “Como mentira era a vida que ele vivia, cotidianamente, falsificada, pré-fabricada, exaurida, imposta. Suada.” Sugere que a personagem mentia por razões de ordem:

a)   Pessoal.

b)   Social.

c)   Psicológica.

d)   Familiar.

e)   Profissional.

10 – No trecho: “Falava pouco, sua língua andava entorpecida, sem prática”, os verbos destacados exprimem fatos:

a)   Concluídos.

b)   Incertos, duvidosos.

c)   Supostamente concluídos no passado.

d)   Passados anteriores a outros também passado.

e)   Inacabados no momento em que são narrados.

11 – No trecho: “Sabia que precisava, mas não tinha vontade de falar.”, a alteração em que a conjunção mas é substituída sem perda de sentido original é:

a)   “Sabia que precisava, porém não tinha vontade de falar”.

b)   “Sabia que precisava, portanto não tinha vontade de falar”.

c)   “Sabia que precisava, assim não tinha vontade de falar”.

d)   “Sabia que precisava, porque não tinha vontade de falar”.

e)   “Sabia que precisava, isto é, não tinha vontade de falar”.

12 – Em: “Quando o dia chegou, tinha acabado o período da mentira(...)”, o conectivo em destaque pode ser substituído, sem alteração de sentido, por:

a)   No momento em que.

b)   Uma vez que.

c)   Desde que.

d)   Mesmo que.

e)   Embora.

13 – No trecho: “Disse no emprego que estava doente. E, na verdade, estava.”, a doença a que se refere o autor sugere:

a)   Cansaço físico.

b)   Inconformismo.

c)   Infelicidade.

d)   Preguiça.

e)   Malandragem.

14 – Para identificar o assunto do conto, faça no caderno o que se pede:

a)   Identifique a(s) personagem(ns) principal(is).

Um homem comum, de família.

b)   Identifique o conflito vivido pela(s) personagem(ns) principal(is).

O homem estava cansada da vida de obrigações que levava.

c)   Identifique a principal ação realizada por ela(s).

Passou um dia contando mentiras para as pessoas que encontrava.

d)   Identifique o lugar e o momento da ação.

A ação se passa em uma cidade, em um período que vai da manhã de um dia até a manhã do dia seguinte.

e)   Após responder a essas questões, reúna as informações em um só período e apresente o assunto do conto.

Um homem de família (protagonista), cansado da vida sem alternativas que levava (conflito da personagem), levanta um certo dia (tempo) disposto a vagar pela cidade, contando apenas mentiras (lugar e ação) a quem encontrar.

15 – Para identificar o tema do conto: AçãoJustificativa.

a)   Reúna as mentiras contadas pela personagem principal e as ações realmente praticadas por ela. Para isso, copie no caderno e preencha-o:

·        Mentiu para a mulher dizendo que iria para o trabalho.

Não iria. Tinha resolvido esquecer o escritório, a mesa, os papéis naquele dia.

·        Mentiu a dizer bom-dia para o zelador.

Ele odiava o zelador porque o considerava oportunista e fofoqueiro.

·        Mentiu ao informar o destino ao motorista de táxi.

Deu qualquer destino porque as pessoas vivem exigindo coisas.

·        Mentiu ao pedir café no bar.

Na realidade não queria café, apenas observar o gesto maquinal do funcionário.

·        Mentia ao sair pela rua, mas ir para o escritório seria uma mentira maior.

Odiava o escritório, o emprego, os colegas.

·        Andou até a hora de voltar para casa, mas não queria voltar para casa.

Via sua vida encerrada entre quatro paredes.

b)   As justificativas apresentadas pelo homem sugerem seu descontentamento com certos aspectos de sua vida. Copie-os no caderno.

·        Trabalho.

·        Organização da cidade.

·        Relação com as demais pessoas.

·        A vida familiar.

·        Aparência física.

·        Falta de tempo para o lazer.     

     c)   Identificar o conflito do texto é importante para chegar ao tema. As informações acima (letra b) sugerem qual é o conflito vivido pela personagem principal. Aponte-o.

O homem está cansado de seu cotidiano cheio de regras, de pessoas, de imposições e de atividades que não foram escolhidas por ele.  

d)   Indique no caderno qual destes trechos melhor justifica a sua resposta ao item anterior:

·        “Naquela manhã, acordou disposto a só contar mentiras.”

·        “E as exigências crescem e se tornam parte de nossa vida diária. Nos acostumamos com elas, nos acomodamos, sem perceber que cada concessão é um pedaço da gente mesmo, envenenado, que a gente engole.”    

·        “[...] porque nesse dia tinha decidido mentir. E, quando se decide uma coisa, o melhor é levá-la até o fim.”

·        “Quando o dia chegou, tinha acabado o período da mentira, podia enfrentar de novo a verdade.”

e)   Após destacar o conflito, é possível identificar o tema. Nesse conto, basta atribuir um nome à sensação vivida pelo homem. Indique no caderno quais dos temas a seguir poderiam dar nome a essa sensação:

·        Desilusão amorosa.

·        Fracasso no emprego.

·        Desejo de tranquilidade.

·        Insatisfação com as imposições do cotidiano.

·        Abandono das relações de hipocrisia.

16 – Releia um trecho da reflexão feita pela personagem principal no sexto parágrafo, depois responda no caderno:

        “Andou. Pensando como a cidade era bonita com seus prédios batidos de Sol e os vidros dando mil reflexos. Bonita com a gente que andava apressada para trabalhar e construir alguma coisa. Bonita na tranquilidade da vida, no sossego das casas, na calma que se estampava nos rostos das gentes. Bonita no que oferecia de futuro e de perspectivas. Bonita nos carros que andavam em fila, ruidosamente, um atrás do outro, sempre para frente, sempre para frente. Bonita na fumaça negra que escapava dos veículos e subia em espirais, milhares de fumaças reunidas, formando uma bela nuvem negra, como um negro véu, que surgia sobre a terra, espanando o Céu.”

a)   Todas essas características da cidade podem ser consideradas realmente belas?

Não.

b)   A ironia é a figura de linguagem que consiste em afirmar o contrário do que se quer dizer. Considerando essa informação, explique por que esse parágrafo pode ser considerado irônico.

O julgamento que a personagem fazia da cidade pode ser considerado irônico por não retratar somente aspectos que realmente pudessem ser considerados bonitos.

c)   A ironia desse parágrafo poderia se relacionar com o fato de o homem ter decidido contar apenas mentiras? Explique sua resposta.

Sim. Até o julgamento da cidade refletiria uma mentira contada pelo homem.

17 – Releia a última parte do conto:

        “Quando o dia chegou, tinha acabado o período da mentira, podia enfrentar de novo a verdade. E disse bom-dia ao porteiro, deu o endereço ao táxi, ligou para a mulher e o patrão. Disse no emprego que estava doente. E, na verdade, estava.”

a)   Detenha-se no significado do verbo enfrentar. Em que contextos empregamos essa palavra?

Por exemplo, em contextos relacionados a desafio, a dificuldade.

b)   Observe que outros verbos poderiam ter sido empregados na oração “podia enfrentar de novo a verdade”:

·        Podia viver de novo a verdade.

·        Podia participar de novo da verdade.

·        Podia retomar a verdade.

·        Podia reconciliar-se com a verdade.

Na sua opinião, por que foi usado o verbo enfrentar, e não outro mais suave?

A verdade a que a personagem estava acostumada não era fácil para ela, ao menos não era a verdade que ela queria. Daí o emprego do verbo enfrentar em lugar de outro de sentido mais suave.

c)   A verdade na vida do homem era representada pelo seu cotidiano ou pelo dia em que resolveu contar apenas mentiras? Justifique sua resposta.

A verdade foi representada pelo dia em que resolveu contar apenas mentiras; esse foi o único momento em que ele viveu de acordo com o que realmente sentia, e não de acordo com as convenções sociais.

d)   “Disse no emprego que estava doente. E, na verdade, estava.” Na sua opinião, qual era a doença do homem que resolveu contar apenas mentiras?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Pelo desânimo da personagem diante da realidade vivida, ao desejo de ser ele mesmo numa sociedade cheia de regras e de regularidades.

18 – Observe que a palavra homem aparece apenas duas vezes no texto: uma no título, outra no começo do quarto parágrafo. Nos demais períodos, o sujeito está oculto. Além disso, a personagem não tem nome próprio. Assim, responda no caderno:      

     a)   Essa maneira de apresentar a personagem a especifica (isto é, torna suas características particulares, únicas, exclusivas) ou a universaliza (ou seja, torna suas sensações e comportamentos semelhantes aos da maioria das pessoas)?

Essa maneira de apresentar a personagem a universaliza.      

    b)   Assinale a alternativa que melhor justifica a resposta ao item a, ao mesmo tempo que sintetiza uma conclusão que pode ser tirada do conto:

·        As pessoas que desejam abandonar família, emprego e obrigações em geral querem viver a vida simplesmente, sem se preocupar com mais nada.

·        O descontentamento com o cotidiano é vivido por todos. Em algum momento da vida, todo ser humano necessita expressar mais livremente sua verdadeira natureza, fugindo das convenções sociais que o limitam.

·        O desejo de mentir está em todos os seres humanos. Isso aparece como uma forma de recriar a realidade para suportá-la.

·        As pessoas devem se acostumar a fazer o que não querem, afinal, essa é uma imposição da realidade vivida por todos.

 

 

 

domingo, 9 de dezembro de 2018

CRÔNICA: O NÃO, O SIM E A FELICIDADE - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

CRÔNICA: O NÃO, O SIM E A FELICIDADE
                               
 Ignácio de Loyola Brandão

        — Às dez horas em casa!
        — Pai, tenho 18 anos!
        Surpreso com o que podia ser interpretado como provável contestação, ele batia o martelo:
        — Dez em ponto! Nem um minuto mais.
        Chegar de volta às dez da noite, em ponto, era arriscado. O relógio do pai podia estar adiantado e o dele comandava a operação. Mesmo que o dele batesse com o da Matriz corria-se o risco da interpretação. “Essa igreja! Sempre atrasada”. Exatamente igual à bola de futebol. Na risca, ela está fora ou dentro? Depende da disposição do juiz. Ou seja, aos 18 anos, tínhamos de chegar em casa no máximo às dez para as dez da noite, se não quiséssemos encontrar a porta fechada. Não adiantava bater na janela do irmão, o pai ficava acordado por algum tempo, à espreita. Dormia-se na rua? Não, batia-se na porta, sabendo do caminhão que seria despejado em cima, das ameaças de cortar a mesada (no meu caso nem era mesada, ele me dava um dinheiro de vez em quando, para um refrigerante, um sanduíche. Não que fosse avarento, não tinha mesmo). Empregos? Numa cidade do interior, década de 50? Que emprego? Caixeiro do comércio? E o estudo?
        Não havia científico noturno ainda. Claro que existiam permissões para se ficar até mais tarde. Raras. Em finais de semana, dias de baile. Chave de casa? Por que um jovem de 18 anos não tinha a chave de casa? Não era costume, não se dava, e pronto. Parece pré-história para o jovem de hoje, e no entanto tais coisas aconteciam há 40 anos, o que é nada histórica e sociologicamente. As relações pais e filhos eram mistos de respeito e terror. Ninguém chamava o pai de você, a não ser um ou outro colega, invejado. De qualquer modo, soava estranho, era o mesmo que um deputado não se referir ao outro como vossa excelência, mesmo sendo inimigo mortal. Pai era senhor. Assim como se cumprimentava pedindo a bênção, beijando a mão. E palavrão? Coisa de rua, de gente desclassificada, de marginal, de filho de lavadeira. Filho de lavadeira? Havia preconceito, de todos os lados, havia intolerância, levava-se uma existência cinza. Quanto amigo meu levou tapa na boca, porque o pai, ao virar a esquina, deu com o filho, de 21 anos, fumando. Exageros? Totalitarismo? Em parte sim, em parte não.
        Pode parecer ridículo, mas havia nisso um cerimonial de civilização. Ainda que existisse animosidade, cumpria-se um protocolo de educação, de reverência por alguém que nos colocou no mundo, deu educação, sustentou. No fundo, eles, os pais, continuavam com ritual de despotismo trazido pela tradição, transmitindo o que tinham aprendido. O mundo andava devagar, não havia por que romper com o estabelecido. As coisas funcionavam, e se funcionavam mal, não havia ainda suficiente clareza e lucidez para quebrar normas que começavam a ficar obsoletas. Enfim, não se colocava em questão. Era ruim para nós? Era. Uma camisa-de-força, um cerco apertado constituído por nãos. Era bom? Era. Ali aprendemos que a vida era assim, uma camisa-de-força, composta por um conjunto de nãos. Tínhamos de conhecê-los, aprender a driblá-los pela vida afora, despistá-los, superá-los com capacidade, inteligência, esforço. Evidente que o não favorecia a mentira, a hipocrisia.
        Atualmente, sorrimos, quando filhas de 13 anos nos comunicam:
        — Hoje vou dar uma festinha à noite!
        — Saiu um livro de educação sexual. Quem pode comprar para mim?
        — P…q…p, pô…*** grtfhun #$% trá-lá-lá!
        — Podem me buscar na festa à uma hora!
        Este uma é da madrugada, é claro. E quando se vai apanhá-las, vê-se que existem meninas que ainda vão ficar até mais tarde, porque há filhas sempre reclamando:
        — Sou a primeira a deixar as festas!
        Quando chegam em casa, abrem a porta, porque têm chave. Todas as meninas de sua idade têm chaves de casa, mesadas semanais, ficam lendo à noite até a hora que querem, contestam os pais, marcam festas em casa, ligam o som no máximo do volume. Sabem tudo sobre sexo, perguntam para os pais e professores coisas que fariam um jovem — não de 13, mas de 18 — ser expulso de casa no nosso tempo (ao menos, espera-se que não cometam erros infantis). Namoram, telefonam sem parar, pedem aos pais um cigarro para experimentar (e o pai, dentro da escola moderna do consentimento para não traumatizar, não reprimir, dá).
        Nossas angústias eram simples, menos existenciais. E bem definidas. Concretas. Doíam do mesmo modo. Havia aquela intolerância, contra a qual brigávamos. Mas nosso problema maior era o futuro, o que seremos, o que queremos. Vão dar certo nossos sonhos? Era a grande pergunta, porque havia sonhos. Na permissividade atual, neste final de século do sim, estas angústias se complicaram extremamente para os adolescentes e jovens. São abstratas, metafísicas, sem soluções, porque indefinidas, tênues. Nossos filhos, vivendo em meio a violência e caos, são superprotegidos, defendidos, confundiu-se liberdade com permissividade, romperam-se os limites e eles desconhecem os nãos que poderiam torná-los mais lutadores, preparados, até mesmo raivosos. Nem existem sonhos ou utopias, o que se quer é ter dinheiro, status, vida confortável. O não levou minha geração a uma reação de raiva e ao mesmo tempo perigosa. O não que nos traumatizou, nos conduziu a dizer um sim complexo para nossos filhos. Quem sabe eles não se sintam perdidos, sem condução, soltos no mundo, circulando sem que alguém dê um toque no cordão que nos liga, ajudando a dizer: cuidado, aí tem areia movediça?
        Nós não acreditávamos que nossos pais sabiam. Nossos filhos acreditam que não nos incomodamos com eles, que os abandonamos no mundo. Uma geração teve o não. A outra teve o sim. Somos felizes? Nossos filhos serão?
                   (Ignácio de Loyola Brandão. Pais & Teens, ano 1, nº 2.)

Entendendo o texto:
01 – O texto põe em discussão a mudança de atitudes e valores que ocorreu nas últimas décadas, opondo duas gerações: a geração de quarenta anos atrás, quando o narrador era jovem, e a geração dos jovens de hoje.
Observe o título do texto. Qual é a geração do "sim" e qual é a do "não"?
      A geração do NÃO é a de quarenta anos atrás e a do SIM dos dias de hoje.

02 – Nos primeiros parágrafos do texto, o autor descreve como era a educação familiar no passado. Nos parágrafos seguintes, compara-a com a educação atual. Comente as diferenças nas situações vividas pelos jovens quanto aos seguintes aspectos:

a)   Horário para voltar e acesso a casa após saídas à noite;
Antigamente o horário de voltar para casa dos meninos de 18 anos era dez pras dez da noite. E os de hoje as meninas de 13 anos não tem nem horários para chegar em casa.

b)   Dinheiro dado pelos pais;
Antigamente os pais, davam dinheiro apenas para um refrigerante ou um sanduíche, e mesmo assim de vez em quando, hoje os filhos recebem mesadas semanais, e dinheiro quando querem.

c)   Consumo de coisas proibidas, como cigarro;
Hoje eles podem namorar, gastarem o quanto quiserem, pedir cigarro até mesmo para os pais.

d)   Forma de tratar os pais;
Antigamente ninguém contestava com as coisas que os pais falavam, eles falavam e pronto; hoje em dia não, filhos contestam, e ainda saem ganhando.

e)   Uso de palavrões na linguagem.
Antes palavrões era para pessoas mal-educadas, hoje qualquer jovem fala.

03 – Segundo o narrador, no passado o relacionamento entre pais e filhos era difícil e autoritário, e o jovem tinha pouca liberdade. Apesar disso, o narrador, hoje, não vê apenas o lado negativo daquele tipo de relacionamento. Releia estes trechos:
• "Totalitarismo? Em parte sim, em parte não." (6º parágrafo)
• "Era ruim para nós? Era. Uma camisa-de-força, um cerco apertado constituído por nãos. Era bom? Era." (7° pará­grafo)

De acordo com as ideias gerais do texto, explique:
a)   Por que era ruim aquele tipo de educação familiar?
Porque o jovem não tinha muita liberdade.

b)   E por que era bom?
Era bom, pois assim ele podia seguir o “caminho certo” e não tomar o “errado” com a finalidade de hoje.

04 – Muitas vezes, o não gerava a mentira e a hipocrisia.
a)   Com que finalidade se mentia naquela época?
As pessoas chegavam a mentir para fugirem um pouco do autoritarismo da época.

b)   Nesse contexto, mentir era bom ou ruim?
Naquela época era bom.

05 – Segundo o texto, os jovens de hoje sabem de muitas coisas e "perguntam para os pais e professores coisas que fariam um jovem — não de 13, mas de 18 — ser expulso de casa no nosso tempo (ao menos, espera-se que não cometam erros infantis)".
Levante hipóteses: O que possivelmente são, para o narrador, "erros infantis"?
      Perguntar sobre sexo e namoro.

06 – No penúltimo parágrafo, o narrador opõe as angústias dos jovens de antes às dos jovens de hoje e afirma que, no passado, essas angústias eram mais bem definidas e concretas. Por que o narrador vê as angústias dos jovens atuais como mais complexas que as dos jovens do passado?
      Porque os jovens do passado respeitavam os pais e os de hoje não respeitam.

07 – No mesmo parágrafo, o narrador afirma que o futuro era a grande preocupação dos jovens: "Vão dar certo nossos sonhos? Era a grande pergunta, porque havia sonhos".
a)   Qual é o ponto de vista do narrador a respeito dos sonhos dos jovens atuais?
O sonho dos jovens de hoje é ganhar muito dinheiro.

b)   Em contraposição aos sonhos, alimentados pela geração de antes, qual é o projeto da geração atual, segundo o narrador?
Pessoas mais atualizadas.

c)   Comparada à geração atual, que qualidade o narrador vê nos jovens da sua geração?
Eles não dão ouvidos ao que os pais dizem.

08 – Para o narrador, "confundiu-se liberdade com permissividade". Qual é a diferença entre elas?
      Liberdade é a independência com responsabilidade; a autonomia. E permissividade é a pessoa que dá permissão, tolerante e indulgente.

09 – Ao afirmar "O não que nos traumatizou, nos conduziu a dizer um sim complexo para nossos filhos", o narrador revela estar seguro ou inseguro quanto ao modo como os pais de hoje têm educado os filhos?
      Inseguro, porque através do sim os jovens confundiram a liberdade com permissividade, e se tornaram jovens mais angustiados do que os de antes.

10 – O texto põe em discussão duas formas de educar os filhos e, em vez de apresentar respostas na sua conclusão, termina com perguntas: "Uma geração teve o não. A outra teve o sim. Somos felizes? Nossos filhos serão?”.
a)   O narrador deixa clara sua posição sobre qual a melhor maneira de educar os jovens?
Sim, a de antigamente.

b)   O fato de o texto ser encerrado com perguntas confirma ou nega sua resposta anterior?
Confirma.

c)   Observe o título do texto. De acordo com as ideias gerais apresentadas pelo narrador, que sentido ele tem.
De nos mostrar que nem sempre o NÃO necessariamente era causa da infelicidade da mesma forma que os SIM nem sempre é a causa da felicidade.