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quarta-feira, 22 de novembro de 2023

CONTO: O COLOCADOR DE PRONOMES -(FRAGMENTO) - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: O Colocador de Pronomes – Fragmento

            Monteiro Lobato

        Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.

        Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima da gramática.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicot6OAK0dwE4yDJwckR-dE1Fx2V8bczdX5lQ87y3SW_eO5Hh7uu60QqWh3jMzKJ1lot7La46z6tjQI3nwQDknOyyJ45fCw8QjllIDIrw9RZ8pH4iipX3ErfzMBA7uiY1eLEPo_ToYSBfqiDVJ8zKFk9TKVsb-cK9bIhhFyM_sXxIzl4At0rL5u8i2-Ek/s320/PRONOMES.jpg


        E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.

        Mártir da gramática, fique este documento da sua vida como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização,

        Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no “Itaoquense”, com bastante sucesso.

        Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.

        Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.

        Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de olhares, diálogos de flores – o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina, com o

        Acorda, donzela…

        Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.

        Aqui se estrepou…

        Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:

        Anjo adorado!

        Amo-lhe!

        Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de pretexto – para umas certidõesinhas, explicou.

        Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.

        Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:

        – A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca – nunca, ouviu? – que contra ela se cometa o menor deslize.

        Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o

        – É sua esta peça de flagrante delito?

        O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.

        – Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o declarar… Pois agora…

        O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.

        – … é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.

        O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com lágrimas nos olhos disse, gaguejante:

        – Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí fora!…

        Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.

        – Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!

        E voltando-se para dentro, gritou:

        – Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!

        O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.

        – Laurinha, quer o coronel dizer…

        O velho fechou de novo a carranca.

        – Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dezer amo-“te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher…

        – Oh, coronel…

        – … ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!

        O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da gramática matrimonial.

        – Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa – quem fala, e neste caso vassuncê; da Segunda pessoa – a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa – de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!

        Não havia fuga possível.

        O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:

        – Deus vos abençoe, meus filhos!

        No mês seguinte, e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor Aldrovando, o conspícuo sabedor de língua que durante cinquenta anos a fio coçaria na gramática a sua incurável sarna filológica.

        Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma. Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo da praxe, mas a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio, enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções de matar o tempo – empalamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que saía – Aldrovando apalpava com erótica emoção a gramática de Augusto Freire da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico que o determinaria na vida, para matá-lo, afinal…

        (...)

        E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo e que a temos a evoluir na boca do povo.

        – Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos. Deletreemo-lo ao acaso.

        E, baixando as cangalhas, lia:

        – Teve lugar ontem… É língua esta espurcícia negral? Ó meu seráfico Frei Luiz, como te conspurcam o divino idioma estes sarrafaçais da moxinifada!

        – … no Trianon… Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar com alienígenos arrevesos? Tão bem ficava – a Benfica, ou, se querem neologismo de bom cunho o Logratório…Tarelos é que são, tarelos!

        E suspirava deveras compungido.

        – Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor. Aí! Onde param os boas letras d’antanho? Fez-se peru o níveo cisne. Ninguém atende à lei suma – Horácio! Impera o desprimor, e o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos vertem cá mercadores de má morte. E é de notar, outrossim, que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordície de Oitavo Mirbelo, Canhenho duma dama de servir, (1) creio, à… advinhe ao que, amigo? A Carta de Guia do meu divino Francisco Manoel!…

        – Mas a evolução…

        – Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época, a “evolução” darwinica, os vocábulos macacos – pitecofonemas que “evolveram”, perderam o pelo e se vestem hoje à moda de França, com vidro no olho. Por amor a Frei Luiz, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve, não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.

        Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando em duas fases distingas: a estática, em que apenas acumulou ciência, e a dinâmica, em que, transfeito em apóstolo, veio a campo com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.

        Abriu campanha com memorável ofício ao congresso, pedindo leis repressivas contra os ácaros do idioma.

        – “Leis, senhores, leis de Dracão, que diques sejam, e fossados, e alcaçares de granito prepostos à defensão do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade, que quem ao semelhante a vida tira. Vêde, senhores, os pronomes, em que lazeira jazem…

        Os pronomes, aí! Eram a tortura permanente do professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los por aí pré ou pospostos contra-regras elementares do dizer castiço. E sua representação alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria à criação dum Santo Ofício gramatical.

        Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória, e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.

        – Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes! Isto seria auto-condenar-nos à morte! Tinha graça!

        Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza do seu gesto, e Aldrovando, com a mortificação n’alma, teve que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos “galicígrafos de papel e graxa”. Transigiu e, breve, desses “pulmões da pública opinião” apostrofou o país com o verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias ultra violentas, escritas no mais estreme vernáculo.

        Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis períodos engrenados à moda de Lucena; e ao cabo da aspérrima campanha viu que pregara em pleno deserto. Leram-no apenas a meia dúzia de Aldrovandos que vegetam sempre em toda parte, como notas rezinguentas da sinfonia universal.

        A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os “periódicos” fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.

        – Espaço não há para as sãs ideias, objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recende à podriqueira!… Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia alimpar-vos a gafa!… exclamou, profético, sacudindo à soleira da redação o pó das cambaias botinas de elástico.

        Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório gramatical.

        – Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores em leis, os charlatãs de toda espécie. Abra-se um para a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito, já se vê, que me não move amor de bens terrenos.

        Falhou a nova tentativa. Apenas moscas vagabundas vinham esvoejar na salinha modesta do apóstolo. Criatura humana nem uma só lá apareceu afim de remendar-se filologicamente.

        Ele, todavia, não esmoreceu.

        – Experimentemos processo outro, mais suasório.

        E anunciou a montagem da “Agência de Colocação de Pronômes e Reparos Estilísticos”.

        Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de cincas, um calhamaço a compor-se com os “afeites” do lídimo vernáculo, fosse lá que, sem remuneração nenhuma, nele se faria obra limpa e escorreita.

        Era boa a ideia, e logo vieram os primeiros originais necessitados de ortopedia, sonetos a consertar pés de verso, ofícios ao governo pedindo concessões, cartas de amor.

        Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando, que os autores não mais reconheciam suas próprias obras. Um dos clientes chegou a reclamar.

        – Professor, v. s. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas não que me traduzisse a memória em latim…

        Aldrovando empertigou-se.

        – Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é alí com o alveitar da esquina.

        Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes. Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção…

        O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar exasperava o apóstolo.

        – Hei de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me à férula os maráus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós, fila-los-eis pela gorja… Salta rumor!

        E foi-lhes “empós”, Andou pelas ruas examinando dísticos e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a “asnidade”, ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos catequistas.

        Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda uma tabuleta – “Ferra-se cavalos” – escoicinhava a santa gramática.

        – Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim me parece que erre, alarve que és. Se erram paredros, nesta época de ouro da corrupção…

        O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.

        – Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo, que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que seriamente à língua lusa ofende. Venho pedir-te, em nome do asseio gramatical, que o expunjas.

        – ? ? ?

        – Que reformes a tabuleta, digo.

        – Reformar a tabuleta? Uma tabuleta nova, com a licença paga? Estará acaso rachada?

        – Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem ali os dizeres à sã gramaticalidade.

        O honesto ferreiro não entendia nada de nada.

        – Macacos me lambam se estou entendendo o que v. s. diz…

        – Digo que está a forma verbal com eiva grave. O “ferra-se” tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é “cavalos”.

        O ferreiro abriu o resto da boca.

        – O sujeito sendo “cavalos”, continuou o mestre, a forma verbal é “ferram-se” – “ferram-se cavalos!”

        – Ahn! Respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz v. s. que …

        – … que “ferra-se cavalos” é um solecismo horrendo e o certo é “ferram-se cavalos”.

        – V. S. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não sou plural. Aquele “se” da tabuleta refere-se cá a este seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos – Ferra Serafim cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e ficou como está: Ferra Se (rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor, e entendi-o muito bem.

        Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.

        – Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!… Mas não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão dum “m” ali…

        – Se V. S. paga…

        Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada, perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá para gozar-se dela

        Por mal seu, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo a entronização do “m” com maus negócios na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração dos dizeres e lá raspou o “m” do professor.

        A cara que Aldrovando fez quando no passeio desse dia deu com a vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava uma apóstrofe de fulminar quando o ferreiro, às brutas, lhe barrou o passo.

        – Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço e na língua, sou eu. E é ir andando antes que eu o ferre com bom par de ferros ingleses!

        O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas e moscou-se.

        – “Sancta simplicitas!” ouviram-no murmurar na rua, de rumo à casa, em busca das consolações seráficas de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas, chorou…

        O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o rim a rezingar, não se sentia com forças para a continuação da guerra.

        – Não hei de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande livro onde compendie a muita ciência que hei acumulado.

        E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais claudicava a gente de Gomorra.

        Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica. Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para a lusitanidade. Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido de vez! Maravilhosa coisa…

        Pronto o primeiro tomo – Do pronome Se – anunciou a obra pelos jornais, ficando à espera das chusmas de editores que viriam disputá-la à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos pecuniários.

        Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso que era, cederia por cinquenta. E cinquenta contos para um velho celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos hipotecários sempre eram seus quinhentos mil réis por mês de renda, a pingarem pelo resto da vida na gavetinha onde, até então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!… E Aldrovando, contente, esfregava as mãos de ouvido alerta, preparando frases para receber o editor que vinha vindo…

        Que vinha vindo mas não veio, aí!… As semanas se passaram sem que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse a chatinar o maravilhoso livro.

        – Não me vêm a mim? Salta rumor! Pois me vou a eles!

        E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade.

        Má gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam o nariz, dizendo “Não é vendável”; ou: “Porque não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo governo?

        Aldrovando, com a morte n’alma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se nas últimas resistências.

        – Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o cartel. Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim. Bofé!

        Para lugar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, não morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso da sua ciência impressa. Editaria ele mesmo um por um todos os volumes da obra salvadora.

        Disse e fez.

        Passou esse período de vida alternando revisão de provas com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.

        Dedicou-o a Fr. Luz de Souza:

        À memória daquele que me sabe as dores,

        O Autor.

        Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má colocação doutro pronome lhe cortaria o fio da vida.

        Muito corretamente havia ele escrito na dedicatória: …daquele que me sabe… e nem poderia escrever doutro modo um tão conspícuo colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém – até os fados conspiram contra a língua! – e por artimanha do diabo que os rege empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e recompõe-na a seu modo …d’aquele que sabe-me as dores… E assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.

        (...)

        O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:

        – Isto no “sebo” sempre renderá cinco tostões. Já serve!

        Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias num certo número de exemplares destinados à crítica. Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa quando seus olhos deram com a horrenda cinca: “daquele QUE SABE-ME as dores”.

        – Deus do céu! Será possível?

        Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória a Fr. Luiz de Souza, o horripilantíssimo

        – “que sabe-me”…

        Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto uma estranha marca de dor – dor gramatical inda não descrita nos livros de patologia – permaneceu imóvel uns momentos.

        Depois empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se nas garras de repentina e violentíssima ânsia.

        Ergueu os olhos para Frei Luiz de Souza e murmurou:

        – Luiz! Luiz! Lamma Sabachtani?!

        E morreu.

        De que não sabemos – nem importa ao caso. O que importa é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes.

        Paz à sua alma.

Monteiro Lobato.

Entendendo o conto:

01 – Quem é Aldrovando Cantagalo?

      Aldrovando Cantagalo é um jovem escrevente que se apaixona pela filha do Coronel Triburtino e enfrenta dificuldades por conta de um erro de gramática.

02 – Qual é o erro de gramática cometido por Aldrovando?

      Aldrovando comete o erro de utilizar o pronome inadequadamente ao declarar seu amor pela filha do Coronel, escrevendo "Amo-lhe", quando deveria ter escrito "Amo-te".

03 – Qual é a reação do Coronel Triburtino ao erro de gramática de Aldrovando?

      O Coronel Triburtino decide, de maneira vingativa, declarar Aldrovando como noivo da filha "errada" (do Carmo) devido ao uso inadequado do pronome na declaração de amor.

04 – Qual é o objetivo principal de Aldrovando em relação à gramática?

      Aldrovando torna-se um fervoroso defensor das regras gramaticais, lutando incansavelmente para corrigir os erros cometidos na linguagem cotidiana.

05 – Como Aldrovando tenta corrigir os erros gramaticais na sociedade?

      Ele cria uma Agência de Colocação de Pronomes e Reparos Estilísticos, oferecendo seus serviços gratuitamente para corrigir erros em escritos, porém sem muito sucesso.

06 – Qual é o grande projeto literário de Aldrovando?

      Aldrovando escreve um tratado sobre a colocação dos pronomes, acreditando que isso resolverá um ponto fraco na linguagem do brasileiro.

07 – Como termina a vida de Aldrovando?

      Aldrovando morre subitamente ao perceber que, mesmo tendo dedicado tanto esforço à sua obra, um erro de gramática persiste nos exemplares publicados, causando-lhe uma profunda agonia.

08 – Quais são as reações da sociedade em relação aos esforços de Aldrovando?

      A sociedade não valoriza seus esforços, ridicularizando-o e não reconhecendo sua dedicação à correção gramatical.

09 – Quais são as expectativas iniciais de Aldrovando em relação à publicação de sua obra?

      Ele acredita que sua obra terá grande aceitação e trará reconhecimento, além de proventos financeiros consideráveis.

10 – Qual é o significado simbólico da morte de Aldrovando?

      A morte de Aldrovando simboliza a luta solitária e frustrante contra os erros gramaticais na sociedade, mostrando como suas tentativas de correção foram em vão e não foram reconhecidas pelo público em geral.

 

 

CONTO: ERA NO PARAÍSO... MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Era no Paraíso...

            Monteiro Lobato

        Era no paraíso e Deus estava contente. Tinha criado a luz, as estrelas, o ar, a água e por fim criou a Vida, semeando-a sob milhares de formas por cima da terra fresquinha e nua. E esfervilhou de viventes o orbe, aqui bactéria e mastodonte, ali musgo e baobá, além craca e baleia — a suma variedade de aspectos dentro da perfeita unidade de plano.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEikqTrOolughSvjICLIVZ9sRfBoHtVXHho3sZyhK8AmIkq-_IuWjunpK1ZdFqz6Y-NXYyFZ8L6if7OQqAPilM6ree6B_NeCh6TThI576ZWtp2hiA6a_3ImIxbHMgUdaeXS5SiuIpQnI-51xZuHapZrJs1eEcOHvFNN5vtaYorz8GgwnhJQwkNffcvUPCaM/s320/MUNDO.JPG


        E Deus, que achara aquilo bom, deliberou consolidar sua obra de vida per secula seculorum com o invento da Fome e do Amor, dois apetites tremendos engastados no âmago das criaturas à guisa de moto-contínuo da Perpetuação. E cofiando a imensa barba branca, velha como o Tempo, lançou a palavra mágica que tudo move e tudo explica:

        — Comei-vos uns aos outros e nos intervalos amai!

        Em seguida elaborou para regência da animalidade o Código da Sabedoria Ingênita.

        Não deu esse nome ao Código, visto como, no começo, não existindo homem, não existiam nomes.

        — Não existindo homens?...

        Sim, o homem não estava nos planos do Criador. Esta revelação mirífica, que ainda há de roer pelos alicerces as caducas verdades oficiais (e talvez me conquiste o prêmio Nobel), está ansiosinha por me fugir da pena. Que fuja, que se espoje no espírito do leitor. Adeus, filha!...

        Não era escrito esse Código. Lei escrita vale por pura invenção humana — donde a rapidez com que envelhecem os códigos humanos e as humanas leis. Escrever é fixar e fixar é matar. Perpétuo movimento, a vida é infixa. Entretanto, se o não escreveu, foi além Jeová: impregnou com ele cada uma das criaturas recém-formadas, de modo que ao nascer já viessem ricas da sabedoria infusa e agissem automaticamente de acordo com os imutáveis preceitos da lei natural. 

        Este saber sem aprender receberia do homem o nome de Intuição, assim como o Código Ingênito receberia o nome de Instinto. Os futuros homens se caracterizariam pelo vezo de dar nome às coisas, gozando-se da fama de sábios os que com maior entono e mais pomposamente as nomeassem. Grande doutor, o que tomasse o pulso a um doente, lhe espiasse a língua e gravibundo dissesse, tirando do nariz os óculos de ouro: polinevrite metabólica; e, grande mestre, o que apontasse o dedo para um grupo de estrelas e declarasse com voz firme: constelação do Centauro. Doença e estrelas, com ou sem nome, seguiriam o seu curso prefixo — mas nada de louvores ao médico que apenas dissesse: doença, ou ao mestre que humilde murmurasse: astros. Paga ou louvor não os teria o ignorante, isto é, o homem que não sabe nomes. Viva o nome!

        Assim, inoculou Deus em todos os seres a sabedoria da vida e pô-los no orbe como notas cromáticas do pot-pourri sinfônico de cuja audição integral somente os seus ouvidos gozariam o privilégio.

        E Deus achou que estava ótimo.

        Grandes coisas tinham feito. A gravitação dos mundos era jogo de movimentos que mais tarde derrubaria o queixo a Newton — mas não passava de mecânica pura.

        A concepção do éter, da luz, do calor, assombrosas invenções eram — mas mecânica fria.

        O bonito fora a criação da Vida, porque, obra de arte das mais autênticas, só ela dava medida completa dos imensos recursos do alto engenho de Deus.

        Quanta afinação no tumulto aparente! A bactéria às voltas com o mastodonte, o musgo em simbiose com o baobá, a craca aparasitada à baleia...

        Vida em vida, vida devorando vida, vida sobrepondo-se à vida, vida criando vida... O perpétuo ressoar dos uivos de cólera, berros de dor, guinchos de alegria, gemidos de gozo sonorizando o perpétuo agitar-se das formas — voo de ave, arranque de tigre, coleio de serpe, rabanar de peixe, tocaiar de sáurio...

        Tão pitoresca saiu a ópera VIDA que o Sumo Esteta a elegeu para recreio de sua Eterna Displicência. E, debruçado na amplidão, as longas barbas dispersas ao vento, o contemplativo Jeová antecipou a figura do sábio que no fundo dos laboratórios cisma sobre o microscópio.

        Ora, pois, certo dia de estuporante mormaço, um casal de chimpanzés dormitava beatificamente no esgalho de enorme embaúba. Digeriam as bananas comidas e prelibavam, risonhos, as bananas da manhã seguinte.

        Eram chimpanzés como os demais, sábios de sabedoria inculcada pelo Eterno, e bem-comportadinhas notas da ópera paradisíaca.

        Mas Éolo suspirou no seu antro e um forte pé de vento deu, que vascolejou com frenesi a árvore e fez o chimpanzé macho, perdido o equilíbrio, precipitar-se de ponta-cabeça ao chão.

        Seria aquilo um tombo como qualquer outro, sem consequências funestas, se a malícia da serpente não houvesse colocado ao pé da embaúba uma grande laje, na qual se chocou o crânio do infeliz desarvorado.

        Perdeu os sentidos o macaco; e a macaca, presa de grande aflição, pulou incontinenti a socorrê-lo. Rondou-lhe em torno aos guinchos, soprou-lhe nos olhos, amimou-o, beliscou-lhe as carnes insensíveis e, por fim, convencida de que estava bem morto, deu de ombros, já com a ideia na escolha de quem lhe consolasse a viuvez.

        Mas não morrera o raio do chimpanzé. Minutos depois entreabria os olhos, piscava sete vezes e levava as mãos à fronte, significando que lhe doía.

        Neste comenos funga no juncal próximo um tigre. Desde o Paraíso que os tigres “adoram” os macacos, como desde o Paraíso que os macacos arrenegam dos tigres. Em virtude de tal divergência, a fungadela felina valeu por frasco de amoníaco nas ventas do contuso. Pôs-se de pé, inda tonto e, ajudado da companheira, marinhou embaúba acima, rumo ao galho de pouso, onde, a bom recato, pudesse distrair a dor de cabeça com a linda cena que é um tigre faminto à caça de bicho que não seja chimpanzé.

        Desde essa desastrada queda nunca mais funcionou normalmente o cérebro do pobre macaco. Doíam-lhe os miolos, e ele queixava-se de vágados e de estranho mal-estar.

        É que sofrera seriíssima lesão.

        Digo isto porque sou homem e sei dar nomes aos bois; homem ignorante, porém, não vou mais longe, nem ponho nome grego à lesão. Afirmo apenas que era lesão, certo de que me entendem os meus incontáveis colegas em ignorância nomenclativa.

        Lesão grave, gravíssima, e de resultados imprevisíveis à própria presciência de Jeová.

        A Bíblia já tratou do assunto; de modo simbólico, entretanto, fugindo de tomar a Queda ao pé da letra. Moisés, redator do Gênesis, tinha veleidades poéticas — mas não previra Darwin, nem a força do prêmio Nobel como áureo pai de grandes descobertas. Moisés poetizou... Fez um Adão, uma Eva, uma serpente e um pomo, que certos exegetas declaram ser a maçã, e outros, a banana. Compôs assim uma peça com a mestria consciente de Edgar Poe ao carpinteirar O corvo, mas sem deixar, como Poe, um estudo da psicologia da composição, onde demonstrasse que fez aquilo por a + b e com bem estudada pontaria. E foi pena! Quanto papel, tinta e sangue tal esclarecimento não pouparia à humanidade, sempre rixenta na interpretação dos textos bíblicos!

        Vem daí que é o Gênesis uma peça de fina psicologia, e por igual penetrante nas cabeças duras e nas dos Pascais, permeabilíssimas; o que escasseia ao Gênesis é acordo com a verdade dos fatos. Essa verdade, mais preciosa que o diamante Cullinan, eu a achei sob o montão de cascalho das hipóteses e sem nenhum alarde aqui a estampo de graça. Já é ser generoso! Tenho nas unhas a verdade das verdades e não requeiro do Congresso um prêmio de cinquenta contos! Contento-me com um apenas...

        A partir da Queda, o nosso macaco entrou a mudar de gênio. Sua cabeça perdeu o frescor da antiga despreocupação e deu de elaborar uns mostrengozinhos, informes, aos quais, com alguma licença, caberia o nome de ideias.

        Vacilava, ele que nunca vacilara e sempre agira com os soberbos impulsos do automatismo. Entre duas bananas pateteava na escolha tomado de incompreensíveis indecisões — e por vezes perdeu ambas, iludido por monos de bote pronto que não vacilavam nem escolhiam.

        Para galgar de um ramo a outro calculava agora não só a distância como a força do salto — e errava, ele que antes da lesão nunca errara pulo.

        Até em suas relações sentimentais com a velha companheira o chimpanzé variou. Ganho de malsãs curiosidades, examinava as outras macacas do bando, comparava-as à sua e cometia o pecado de desejar a macaca do próximo.

        Como também claudicasse na escolha das frutas, comeu diversas impróprias à alimentação símia, daí provindo as primeiras perturbações gastrointestinais observadas na higidez do Paraíso — enterites, colites, disenteria ou o que seja.

        Quando iam águias pelo céu, punha-se a contemplar os seus harmoniosos voos, com vagos anseios nas tripas e muito desejo na alma de ser águia. Era a inveja a nascer, má cuscuta que vicejaria luxuriantemente na execrável descendência desse mono. Invejou as aves que dormiam em ninho fofo e os animais que moravam em boas tocas de pedra. Abandonou o viver em árvore, prescrito para os da sua laia pelo Código Ingênito, e deu de andar sobre a terra de pé sobre as patas traseiras, com as dianteiras — futuras mãos — ocupadas em construir ninho, como os via fazer às perdizes, ou toca, como as tem o tatu.

        E sempre nervoso e inquieto, e descontente com a ordem das coisas estabelecida no Éden, imaginava mudanças e “melhoramentos”. E variava e tresvariava, e malucava, arrastando consigo a pobre companheira que, sem nada compreender de tudo aquilo, em tudo o imitava passivamente, dócil e meiga.

        Aconteceu o que tinha de acontecer. A admirável disciplina reinante no Éden viu-se logo perturbada pelo estranho proceder do macaco, advindo daí murmurações e por fim queixas a Jeová. E tais e tantas foram as queixas, que o Sumo, zangado com a nota desafinadora da sua música divina, ordenou ao anjo Gabriel que pusesse no olho da rua o sustenido anárquico.

        Até esse ponto vai certo Moisés. Onde começa a fazer poesia é daí por diante. De fato, Jeová ordenou a expulsão do rebelde e são Gabriel deu para executá-la os primeiros passos. A curiosidade, porém, que dizem feminina mas aqui se vê que é divina, fez o Criador reconsiderar.

        — Suspende, Gabriel! Estou curioso de ver até que extremos irá o desarranjo mental do meu macaco.

        Era Gabriel o Sarrazani daquele jardim zoológico e, graças ao convívio com o Eterno, adquirira alguma coisa da divina presciência. Assim foi que objetou:

        — Vossa Eternidade me perdoe, mas se lá deixamos o trapalhão aquilo vira em “humanidade”...

        — Sei disso — retorquiu o Soberano Senhor de todas as coisas. — A lesão do cérebro do meu macaco põe-no à margem da minha Lei Natural e fá-lo-á discrepar da harmonia estabelecida. Nascerá nele uma doença, que seus descendentes, cheios de orgulho, chamarão inteligência — e que, ai deles! lhes será funestíssima. Esse mal, oriundo da Queda, transmitir-se-á de pais a filhos — e crescerá sempre, e terrivelmente influirá sobre a terra, modificando-lhe a superfície de maneira muito curiosa. E, deslumbrados por ela, os homens ter-se-ão na conta de criaturas privilegiadas, entes à parte no universo, e olharão com desprezo para o restante da animalidade. E será assim até que um senhor Darwin surja e prove a verdadeira origem do Homo sapiens...

        — ?!

        — Sim. Eles nomear-se-ão Homo sapiens apesar do teu sorriso, Gabriel, e ter-se-ão como feitos por mim de um barro especial e à minha imagem e semelhança.

        — ?!!

        — Os demais chimpanzés permanecerão como eu os criei; só o ramo agora a iniciar-se com a prole do lesado é que se destina a sofrer a diferenciação mórbida, cuja resultante será cair o governo da terra nas unhas de um bicho que não previ.

        — ?!!!

        — Essa inteligência se caracterizará pela ânsia de ver-me através das coisas, e para que bem a compreendas, Gabriel, te direi que será como asas sem ave, luz sem sol, dedos sem pés...

        Gabriel não compreendeu coisa nenhuma da longa definição de Jeová — e como sucederia o mesmo com os meus leitores, interrompo-a nos dedos sem pés. Até aí ainda a percepção é possível; mas no ponto em que Jeová lhe assinalou a essência última, nem Einstein pescaria um x...

        Vendo o ar aparvalhado de Gabriel, o Criador pulou da metagênese abaixo e falou fisicamente.

        — Essa inteligência apurará aos extremos a crueldade, a astúcia e a estupidez. Por meio da astúcia se farão eles engenhosos, porque o engenho não passa da astúcia aplicada à mecânica. E à força de engenho submeterão todos os outros animais, e edificarão cidades, e esfuracarão montanhas, e rasgarão istmos, destruirão florestas, captarão fluidos ambientes, domesticarão as ondas hertzianas, descobrirão os raios cósmicos, devassarão o fundo dos mares, roerão as entranhas da terra...

        Gabriel estremeceu. Apavorou-o a força futura da inteligência nascente; mas Jeová sorriu, e quando Jeová sorria Gabriel serenava.

        — Nada receies. Essa inteligência terá alguns atributos da minha, como o carvão os tem do diamante, mas estará para a minha como o carvão está para o diamante. A fraqueza dela provirá da sua jaça de origem. Inteligência sem memória, inteligência de chimpanzé, o homem esquecerá sempre. Esquecerá o que ensinei aos seus precursores peludos e esquecerá de colher a boa lição da experiência nova.

        “Seu engenho criará engenhosíssimas armas de alto poder destrutivo — e empolgados pelo ódio se estraçalharão uns aos outros em nome de pátrias, por meio de lutas tremendas a que chamarão guerras, vestidos macacalmente, ao som de músicas, tambores e cornetas — esquecidos de que não criei nem ódio, nem corneta, nem pátria.

        “E transporão mares, e perfurarão montes, e voarão pelo espaço, e rodarão sobre trilhos na vertigem louca de vencer as distâncias e chegar depressa — esquecidos de que eu não criei a pressa nem o trilho.

        “E viverão em guerra aberta com os animais, escravizando-os e matando-os pelo puro prazer de matar — esquecidos de que eu não criei o prazer de matar por matar.

        “E inventarão alfabetos e línguas numerosas, e disputarão sem tréguas sobre gramática, e quanto mais gramáticas possuírem menos se entenderão. E se entenderão de tal modo imperfeito que aclamarão o messias do entendimento geral um doutor Zamenhoff...”

        — Já sei! Um que proporá a supressão das línguas.

        — Não! Apenas o criador de mais uma. E eles elaborarão ciências e excogitarão toda a mecânica das coisas, adivinhando o átomo e o planeta invisível, e saberão tudo — menos o segredo da vida.

        “E um Pascal, muito cotado entre eles, dará murros na cabeça, na tortura de compreender os xx supremos — e os homens admirarão grandemente esses murros.

        “E criarão artes numerosas, e terão sumos artistas e jamais alcançarão a única arte que implantei no Éden — a arte de ser biologicamente feliz.

        “E organizarão o parasitismo na própria espécie, e enfeitar-se-ão de vícios e virtudes igualmente antinaturais. E inventarão o Orgulho, a Avareza, a Má-Fé, a Hipocrisia, a Gula, a Luxúria, o Patriotismo, o Sentimentalismo, o Filantropismo, a Colocação dos Pronomes — esquecidos de que eu não criei nada disso e só o que eu criei é.

        “E em virtude de tais e tais macacalidades, a inteligência do homem não conseguirá nunca resolver nenhum dos problemas elementares da vida, em contraste com os outros seres, que os terão a todos solvidos de maneira felicíssima.

        “Não saberá comer; e ao lado das minhas abelhas, de tão sábio regime alimentar — sábio porque por mim prescrito —, o homem morrerá de fome ou indigestão, ou definhará achacoso em consequência de erros ou vícios dietéticos.

        “Não saberá morar — e ao lado das minhas aranhas, tão felizes na casa que lhes ensinei, habitarão ascorosas espeluncas sem luz, ou palácios.

        “Não resolverá o problema da vida em sociedade, e experimentará mil soluções, errando em todas. E revoluções tremendas agitarão de espaço em espaço os homens no desespero de destruir o parasitismo criado pela inteligência — e as novas formas de equilíbrio surgidas afirmar-se-ão com os mesmos vícios das velhas formas destruídas. E o homem olhará com inveja para os meus animaizinhos gregários, que são felizes porque seguem a minha lei sapientíssima.

        “E não solverá o problema do governo; e mais formas de governo invente, mais sofrerá sob elas — esquecido de que não criei governo. E criará o Estado, monstro de maxilas leoninas, por meio do qual a minoria astuta parasitará cruelmente a maioria estúpida. E a fim de manter nédio e forte esse monstro, os sábios escreverão livros, os matemáticos organizarão estatísticas, os generais armarão exércitos, os juízes erguerão cadafalsos, os estadistas estabelecerão fronteiras, os pedagogos atiçarão patriotismos, os reis deflagrarão guerras tremendas e os poetas cantarão os heróis da chacina — para que jamais a guerra cesse de ser uma permanente.

        “Queres ver ao vivo, Gabriel, o que vai ser a chimpanzeização do mundo? Corre essa cortina do futuro e espia por um momento a humanidade.”

        Gabriel correu a cortina do futuro e espiou. E viu sobre a crosta da terra uma certa poeira movediça. Mas, ansioso de detalhes, Gabriel microscopou e distinguiu uma dolorosa caravana de chimpanzés pelados, em atropelada marcha para o desconhecido.

        Miserável rebanho! Uns grandes, outros pequenos; estes louros, aqueles negríssimos — nada que recordasse a perfeição somática dos outros viventes, tão iguaizinhos dentro do tipo de cada espécie. Que feia variedade! Ao lado do Apolo, o torto, o capenga, o cambaio, o corcovado, o corcunda, o raquítico, o trôpego, o careteante, o zanaga, o zarolho, o careca, o manco, o cego, o tonto, o surdo, o espingolado, o nanico... Caricaturas móveis, com os mais grotescos disparates nas feições, era impossível apanhar-lhes de pronto o tipo-padrão. E Gabriel evocou mentalmente a linda coisa que é um desfile de abelhas ou pinguins, no qual não há um só indivíduo que destoe do padrão comum.

        Da manada humana subia um rumor confuso. Gabriel desencerrou os ouvidos e pôde distinguir sons para ele inéditos: tosse, espirros, escarradelas, fungos, borborigmos, ronqueira asmática, gemidos nevrálgicos, ralhos, palavrões de insulto, blasfêmias, gargalhadas, guinchos de inveja, rilhar de dentes, bufos de cólera, gritos histéricos...

        Depois observou que à frente das multidões caminhavam seres de escol, semideuses lantejoulantes, vestidos fantasiosamente, pingentados de cristaizinhos embutidos em engastes metálicos, com penas de aves na cabeça, cordões e fitas, crachás e miçangas...

        — Quem são?

        — Os chefes, os magnatas, os reis: os condutores de povos. Conduzem-nos... não sabem para onde.

        E viu, entremeio à multidão, homens armados, tangendo o triste rebanho a golpes de espada ou vergalho. E viu uns homens de toga negra que liam papéis e davam sentenças, fazendo pendurar de forcas miseráveis criaturas, e a outras cortar a cabeça, e a outras lançar em ergástulos para o apodrecimento em vida. E viu homens a cavalo, carnavalescamente vestidos, empenachados de plumas, que arregimentavam as massas, armavam-nas e atiravam-nas umas contra as outras. E viu que depois de tremenda carnificina um grupo abandonava o campo em desordem, e outro, atolado em sangue e em carne gemebunda, cantava o triunfo num delírio orgíaco, ao som de músicas marciais. E viu que os homens de penacho organizadores das chacinas eram tidos em elevadíssima conta. Todos os aplaudiam, delirantes, e os carregavam em charolas de apoteose. E viu que a multidão caminhava sempre inquieta e em guarda, porque o irmão roubava o irmão, e o filho matava o pai, e o amigo enganava o amigo, e todos se maldiziam e se caluniavam, e se detestavam e jamais se compreendiam...

        Horrorizado, Gabriel cerrou a cortina do futuro e disse ao Criador:

        — Se vai ser assim, cortemos pela raiz tanto mal vindouro. Um chimpanzé a menos no Paraíso e estará evitado o desastre.

        — Não! — respondeu o Criador. — Tenho um rival: o Acaso. Ele criou o homem, provocando a lesão desse macaco, e quero agora ver até a que extremos se desenvolverá essa criatura aberrante e alheia aos meus planos.

        Gabriel piscou por uns momentos (catorze vezes ao certo), desnorteado pela expressão “quero ver” jamais caída dos lábios do Senhor. Haveria porventura algo fechado, ou obscuro, à presciência divina?

        E Gabriel ousou interpelar Jeová.

        — Não sois, então, Senhor, a Presciência Absoluta?

        Jeová franziu os sobrolhos terríveis e murmurou apenas:

        — Eu Sou, e se Sou, Sou também O que se não interpela.

        Gabriel encolheu-se como fulminado pelo raio e sumiu-se da presença do Eterno com pretexto de uma vista de olhos pelo Éden.

        Linda tarde! O sol moribundo chapeava debruns de cobre nos gigantescos samambaiuçus, a cuja sombra dormitavam megatérios de focinhos metidos entre as patorras.

        As arqueopterix desajeitadonas chocavam na areia seus grandes ovos.

        Um urso das cavernas catava as pulgas da companheira com a minuciosa atenção dum entomologista apaixonado, e de longe vinham urros de estegossauros perseguidos por mutucões venenosos.

        Ao fundo dum vale de avencas viçosas como bambus, dois labirintodontes amavam-se em silencioso e pacato idílio, não longe de um leão fulvo que comia a carne fumegante da gazela caçada.

        Aves gorjeavam amores nos ramos; serpes monstruosas magnetizavam monstruosas rãs; flores carnívoras abriam a goela das corolas para a apanha de animaizinhos incautos.

        Paz. Paz absoluta. Felicidade absoluta. A Vida comia a Vida e a Vida amava para que não se extinguisse a Vida — tudo rigorosamente de acordo com a senha divina.

        Só Adão, o macaco lesado, discrepava, piscando os olhinhos vivos, como a ruminar certa ideia.

        Gabriel parou perto dele e deixou-se ficar a observá-lo. Viu que Adão, de olhos ferrados numa toca de onça, raciocinava: “Ela sai e eu entro, e fecho a porta com uma pedra, e a casa fica sendo minha...”.

        Eva, a macaca ilesa, permanecia muda ao lado, embevecida no macho pensante. Não o compreendia — não o compreenderia nunca! —, mas admirava-o, imitava-o e obedecia-lhe passivamente.

        Nisto, a onça deixou o antro e foi tocaiar uma veadinha.

        — Acompanhe-me! — disse Adão à companheira, e ambos precipitaram-se para a toca da onça, cuja entrada fecharam por dentro com uma grande pedra roliça. E ficaram donos.

        Gabriel, que acompanhara toda aquela maromba, acendeu um cigarro de papiro, baforou para o céu três fumaças e murmurou:

        — Ele já é inteligência. Ela não passa de imitação. É lógico: só ele foi lesado no cérebro; mas vão ver que Eva, a instintiva, ainda acabará fingindo-se lesada...

        E o primeiro difamador da mulher foi jogar sua partida de gamão com o Todo-Poderoso.

Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018) Escrito Iba Mendes às 12:54. Marcadores: Conto de Monteiro LobatoEra no Paraíso... 

Entendendo o conto:

01 – Qual é a premissa principal do conto?

      O conto descreve a criação da vida no paraíso e explora a introdução da inteligência no macaco Adão, causando desequilíbrio na harmonia do Éden.

02 – Como Deus instruiu inicialmente as criaturas no paraíso?

      Deus impregnou todas as criaturas com o conhecimento da sabedoria da vida, denominada intuição, e estabeleceu o Código da Sabedoria Ingênita, chamado instinto.

03 – Por que Adão, o macaco, se torna diferente das outras criaturas do paraíso?

      Adão sofre uma lesão no cérebro após uma queda, resultando em mudanças significativas em seu comportamento e no início da inteligência.

04 – Quais são algumas mudanças observadas em Adão após a lesão?

      Adão começa a ter comportamentos mais complexos, como indecisões na escolha de frutas, inveja de outras criaturas e desejo por mudanças não naturais no Éden.

05 – Por que Deus decide não expulsar imediatamente Adão do paraíso?

      Deus quer ver até que ponto a inteligência aberrante do macaco evoluirá, mesmo sabendo que essa mudança causará grandes problemas futuros.

06 – Como Gabriel, o anjo, reage ao observar o futuro da humanidade?

      Gabriel fica horrorizado ao observar a humanidade, vendo uma multidão desordenada e sofrida, liderada por indivíduos questionáveis e imersa em conflitos e maldades.

07 – Quais são algumas das previsões sombrias feitas por Deus sobre o futuro da humanidade?

      Deus prevê que a inteligência humana criará guerras, governos opressivos, sistemas destrutivos para o meio ambiente e um estado de desequilíbrio constante.

08 – Quais são as características notáveis observadas em Adão e Eva após a lesão de Adão?

      Adão demonstra comportamento mais inteligente e estratégico, enquanto Eva permanece na imitação e obediência, incapaz de compreender completamente as ideias do companheiro.

09 – Como o conto sugere a origem da humanidade a partir de Adão e Eva?

      O conto sugere que a humanidade evoluiu a partir do desequilíbrio da inteligência de Adão, que se tornou um ponto de partida para uma linhagem diferente e problemática no paraíso.