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sexta-feira, 14 de agosto de 2020

CRÔNICA: DAS VANTAGENS DE SER BOBO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Crônica: Das Vantagens de Ser Bobo

                  Clarice Lispector

        O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando."

        Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.

        O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não veem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias que se descontraem diante dos bobos, e estes os veem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.

        Há desvantagem, obviamente. Uma boba, por exemplo, confiou na palavra de um desconhecido para a compra de um ar refrigerado de segunda mão: ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.

        Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

        Bobo não reclama. Em compensação, como exclama!

        Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.

        O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.

        Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

        Bobo é Chagall, que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo.

Clarice Lispector.

Entendendo a crônica:

01 – “O bobo é sempre tão simpático que há espertos que se fazem passar por bobos”. A assertiva que apresenta análise correta em relação ao parágrafo transcrito é:

a)   Há três adjetivos em função predicativa.

b)   Fazer foi usado como verbo impessoal.

c)   O verbo haver está na terceira pessoa do singular porque é impessoal.

d)   A forma verbal fazem concorda com o pronome relativo que.

e)   A oração que se fazem passar por bobos deveria estar precedida de vírgula porque explica o termo espertos.

02 – Considere as seguintes definições do “bobo” em comparação ao “esperto”, apontadas no texto.

I – Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída (linha 5).

II – O bobo é um Dostoievski (linha 13).

III – Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil (linhas 33 e 34).

IV – Os espertos ganham dos outros. Em compensação os bobos ganham a vida (linhas 35 e 36).

V – Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie (linha 36 e 37).

Dentre os pares de adjetivos abaixo listados, qual está em acordo com as definições do “bobo” elencadas acima?

a)   Sagaz – atento.

b)   Rápido – vigilante.

c)   Perspicaz – astuto.

d)   Ágil – enérgico.

e)   Sábio – engenhoso.

03 – Observe os conectivos destacados no trecho abaixo, retirado do texto. Assinale a opção em que a análise semântica está de acordo com a que foi estabelecida no texto.

      “(...) ele disse que o aparelho era novo, praticamente sem uso porque se mudara para a Gávea onde é fresco. Vai a boba e compra o aparelho sem vê-lo sequer. Resultado: não funciona. Chamado um técnico, a opinião deste era de que o aparelho estava tão estragado que o conserto seria caríssimo: mais valia comprar outro. Mas, em contrapartida, a vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto estar tranquilo. Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.” (Linhas 16 a 24).

a)   O conectivo porque estabelece uma relação de consequência.

b)   O advérbio sequer introduz uma ideia de exceção.

c)   A expressão tão... que estabelece uma relação de causa.

d)   O conectivo portanto, estabelece uma ideia de finalidade.

e)   O conectivo enquanto, estabelece ideia de comparação.

04 – Considere o trecho abaixo, retirado do texto:

        “Bem-aventurados os bobos porque sabem sem que ninguém desconfie. Aliás não se importam que saibam que eles sabem.” (Linhas 36 a 38).

A autora discorre sobre a posse de uma saber. A respeito desse saber, podemos afirmar que:

a)   Os bobos que se fazem de bobos estão praticando, na verdade, a sabedoria que os espertos deveriam ter.

b)   Os bobos que aparentemente se fazem de bobos estão praticando, na verdade, a sabedoria dos espertos.

c)   Os bobos, por serem naturalmente criativos, comprovam possuir a sabedoria necessária para vencer.

d)   Os bobos, por serem naturalmente criativos, não permitem que ninguém desconfie de sua dissimulada esperteza, que nada mais é do que produto de sua criatividade; assim definimos sua estratégia para vencer na vida.

e)   Os bobos acabam por se tornar espertos e, por isso, ganham as lutas da vida, já que não se importam que “saibam que eles sabem”.

05 – Sobre as considerações a respeito de ser esperto vs. Ser bobo encontradas no texto, assinale o par de análises que destoa das considerações feitas pela autora.

a)   Os espertos pretendem conquistar o mundo pela sagacidade; o bobo ganha o mundo por sua espontaneidade.

b)   Os espertos muitas vezes atingem seus objetivos; os bobos podem ser facilmente ludibriados.

c)   O esperto preocupa-se todo o tempo em entender o mundo para tirar proveito desse entendimento; ser bobo é sentir o mundo e tomar parte dele.

d)   Os sentimentos do esperto são mais intensos que os do bobo; o coração do bobo é pouco acessível.

e)   O esperto é prevenido; o bobo muitas vezes precisa lidar com complicações em que se mete por ser bobo.

06 – Pode-se deduzir do texto que os “bobos”:

a)   São mais felizes.

b)   São religiosos.

c)   Têm uma vida sedentária.

d)   Vivem levando desvantagem.

07 – Em se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: “Estou fazendo. Estou pensando”, as aspas marcam:

a)   A intertextualidade.

b)   A fala do enunciador.

c)   A ironia da autora.

d)   O destaque da frase.

08 – Entre os benefícios de ser bobo que integram a visão de Clarice Lispector, o que o texto mais destaca é:

a)   A confiança.

b)   A imoralidade.

c)   A instabilidade.

d)   O amor.

09 – “Enquanto o esperto não dorme à noite com medo de ser ludibriado.” Nessa frase, a palavra ludibriado pode ser substituída por:

a)   Aborrecido.

b)   Atraiçoado.

c)   Confundido.

d)   Equivocado.

10 – “Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto não teria morrido na cruz.”. Nessa frase, o se sublinhado estabelece no período uma relação de:

a)   Causalidade.

b)   Concessão.

c)   Condição.

d)   Conformidade.

 

 

quarta-feira, 8 de julho de 2020

CONTO: FELIZ ANIVERSÁRIO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

Conto: Feliz Aniversário

              Clarice Lispector

   A família foi pouco a pouco chegando. Os que vieram de Olaria estavam muito bem vestidos porque a visita significava ao mesmo tempo um passeio a Copacabana. A nora de Olaria apareceu de azul-marinho, com enfeite de paetês e um drapeado disfarçando a barriga sem cinta. O marido não veio por razões óbvias: não queria ver os irmãos. Mas mandara sua mulher para que nem todos os laços fossem cortados — e esta vinha com o seu melhor vestido para mostrar que não precisava de nenhum deles, acompanhada dos três filhos: duas meninas já de peito nascendo, infantilizadas em babados cor-de-rosa e anáguas engomadas, e o menino acovardado pelo terno novo e pela gravata. Tendo Zilda — a filha com quem a aniversariante morava — disposto cadeiras unidas ao longo das paredes, como numa festa em que se vai dançar, a nora de Olaria, depois de cumprimentar com cara fechada aos de casa, aboletou-se numa das cadeiras e emudeceu, a boca em bico, mantendo sua posição de ultrajada. “Vim para não deixar de vir”, dissera ela a Zilda, e em seguida sentara-se ofendida. As duas mocinhas de cor-de-rosa e o menino, amarelos e de cabelo penteado, não sabiam bem que atitude tomar e ficaram de pé ao lado da mãe, impressionados com seu vestido azul-marinho e com os paetês.

        Depois veio a nora de Ipanema com dois netos e a babá. O marido viria depois. E como Zilda — a única mulher entre os seis irmãos homens e a única que, estava decidido já havia anos, tinha espaço e tempo para alojar a aniversariante — e como Zilda estava na cozinha a ultimar com a empregada os croquetes e sanduíches, ficaram: a nora de Olaria empertigada com seus filhos de coração inquieto ao lado; a nora de Ipanema na fila oposta das cadeiras fingindo ocupar-se com o bebê para não encarar a concunhada de Olaria; a babá ociosa e uniformizada, com a boca aberta.

        E à cabeceira da mesa grande a aniversariante que fazia hoje oitenta e nove anos.

        Zilda, a dona da casa, arrumara a mesa cedo, enchera-a de guardanapos de papel colorido e copos de papelão alusivos à data, espalhara balões sungados pelo teto em alguns dos quais estava escrito “Happy Birthday!”, em outros “Feliz Aniversário!”  No centro havia disposto o enorme bolo açucarado. Para adiantar o expediente, enfeitara a mesa logo depois do almoço, encostara as cadeiras à parede, mandara os meninos brincar no vizinho para não desarrumar a mesa.

        E, para adiantar o expediente, vestira a aniversariante logo depois do almoço. Pusera-lhe desde então a presilha em torno do pescoço e o broche, borrifara-lhe um pouco de água-de-colônia para disfarçar aquele seu cheiro de guardado — sentara-a à mesa. E desde as duas horas a aniversariante estava sentada à cabeceira da longa mesa vazia, tesa na sala silenciosa.

        De vez em quando consciente dos guardanapos coloridos. Olhando curiosa um ou outro balão estremecer aos carros que passavam. E de vez em quando aquela angústia muda: quando acompanhava, fascinada e impotente, o voo da mosca em torno do bolo.

        Até que às quatro horas entrara a nora de Olaria e depois a de Ipanema.

        Quando a nora de Ipanema pensou que não suportaria nem um segundo mais a situação de estar sentada defronte da concunhada de Olaria — que cheia das ofensas passadas não via um motivo para desfitar desafiadora a nora de Ipanema — entraram enfim José e a família. E mal eles se beijavam, a sala começou a ficar cheia de gente que ruidosa se cumprimentava como se todos tivessem esperado embaixo o momento de, em afobação de atraso, subir os três lances de escada, falando, arrastando crianças surpreendidas, enchendo a sala — e inaugurando a festa.

        Os músculos do rosto da aniversariante não a interpretavam mais, de modo que ninguém podia saber se ela estava alegre. Estava era posta à cabeceira. Tratava-se de uma velha grande, magra, imponente e morena. Parecia oca.

        — Oitenta e nove anos, sim senhor! disse José, filho mais velho agora que Jonga tinha morrido. — Oitenta e nove anos, sim senhora! disse esfregando as mãos em admiração pública e como sinal imperceptível para todos.

        Todos se interromperam atentos e olharam a aniversariante de um modo mais oficial. Alguns abanaram a cabeça em admiração como a um recorde. Cada ano vencido pela aniversariante era uma vaga etapa da família toda. Sim senhor! disseram alguns sorrindo timidamente.

        — Oitenta e nove anos! ecoou Manoel que era sócio de José. É um brotinho! disse espirituoso e nervoso, e todos riram, menos sua esposa.

        A velha não se manifestava.

        Alguns não lhe haviam trazido presente nenhum. Outros trouxeram saboneteira, uma combinação de jérsei, um broche de fantasia, um vasinho de cactos — nada, nada que a dona da casa pudesse aproveitar para si mesma ou para seus filhos, nada que a própria aniversariante pudesse realmente aproveitar constituindo assim uma economia: a dona da casa guardava os presentes, amarga, irônica.

        — Oitenta e nove anos! repetiu Manoel aflito, olhando para a esposa.

        A velha não se manifestava.

        Então, como se todos tivessem tido a prova final de que não adiantava se esforçarem, com um levantar de ombros de quem estivesse junto de uma surda, continuaram a fazer a festa sozinhos, comendo os primeiros sanduíches de presunto mais como prova de animação que por apetite, brincando de que todos estavam morrendo de fome. O ponche foi servido, Zilda suava, nenhuma cunhada ajudou propriamente, a gordura quente dos croquetes dava um cheiro de piquenique; e de costas para a aniversariante, que não podia comer frituras, eles riam inquietos. E Cordélia? Cordélia, a nora mais moça, sentada, sorrindo.

        — Não senhor! respondeu José com falsa severidade, hoje não se fala em negócios!

        — Está certo, está certo! recuou Manoel depressa, olhando rapidamente para sua mulher que de longe estendia um ouvido atento.

        — Nada de negócios, gritou José, hoje é o dia da mãe!

        Na cabeceira da mesa já suja, os copos maculados, só o bolo inteiro — ela era a mãe. A aniversariante piscou os olhos.

        E quando a mesa estava imunda, as mães enervadas com o barulho que os filhos faziam, enquanto as avós se recostavam complacentes nas cadeiras, então fecharam a inútil luz do corredor para acender a vela do bolo, uma vela grande com um papelzinho colado onde estava escrito “89″. Mas ninguém elogiou a ideia de Zilda, e ela se perguntou angustiada se eles não estariam pensando que fora por economia de velas — ninguém se lembrando de que ninguém havia contribuído com uma caixa de fósforos sequer para a comida da festa que ela, Zilda, servia como uma escrava, os pés exaustos e o coração revoltado. Então acenderam a vela. E então José, o líder, cantou com muita força, entusiasmando com um olhar autoritário os mais hesitantes ou surpreendidos, “vamos! todos de uma vez!” — e todos de repente começaram a cantar alto como soldados. Despertada pelas vozes, Cordélia olhou esbaforida. Como não haviam combinado, uns cantaram em português e outros em inglês. Tentaram então corrigir: e os que haviam cantado em inglês passaram a português, e os que haviam cantado em português passaram a cantar bem baixo em inglês.

        Enquanto cantavam, a aniversariante, à luz da vela acesa, meditava como junto de uma lareira.

        Escolheram o bisneto menor que, debruçado no colo da mãe encorajadora, apagou a chama com um único sopro cheio de saliva! Por um instante bateram palmas à potência inesperada do menino que, espantado e exultante, olhava para todos encantado. A dona da casa esperava com o dedo pronto no comutador do corredor – e acendeu a lâmpada.

        — Viva mamãe!

        — Viva vovó!

        — Viva D. Anita, disse a vizinha que tinha aparecido.

        — Happy birthday! gritaram os netos, do Colégio Bennett.

        Bateram ainda algumas palmas ralas.

        A aniversariante olhava o bolo apagado, grande e seco.

        — Parta o bolo, vovó! disse a mãe dos quatro filhos, é ela quem deve partir! assegurou incerta a todos, com ar íntimo e intrigante. E, como todos aprovassem satisfeitos e curiosos, ela se tornou de repente impetuosa: — parta o bolo, vovó!

        E de súbito a velha pegou na faca. E sem hesitação, como se hesitando um momento ela toda caísse para a frente, deu a primeira talhada com punho de assassina.

        — Que força, segredou a nora de Ipanema, e não se sabia se estava escandalizada ou agradavelmente surpreendida. Estava um pouco horrorizada.

        — Há um ano atrás ela ainda era capaz de subir essas escadas com mais fôlego do que eu, disse Zilda amarga.

        Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha.

        Em breve as fatias eram distribuídas pelos pratinhos, num silêncio cheio de rebuliço. As crianças pequenas, com a boca escondida pela mesa e os olhos ao nível desta, acompanhavam a distribuição com muda intensidade. As passas rolavam do bolo entre farelos secos. As crianças angustiadas viam se desperdiçarem as passas, acompanhavam atentas a queda.

        E quando foram ver, não é que a aniversariante já estava devorando o seu último bocado?

        E por assim dizer a festa estava terminada. Cordélia olhava ausente para todos, sorria.

        — Já lhe disse: hoje não se fala em negócios! respondeu José radiante.

        — Está certo, está certo! recolheu-se Manoel conciliador sem olhar a esposa que não o desfitava. Está certo, tentou Manoel sorrir e uma contração passou-lhe rápido pelos músculos da cara.

        — Hoje é dia da mãe! disse José.

        Na cabeceira da mesa, a toalha manchada de coca-cola, o bolo desabado, ela era a mãe. A aniversariante piscou. Eles se mexiam agitados, rindo, a sua família. E ela era a mãe de todos. E se de repente não se ergueu, como um morto se levanta devagar e obriga mudez e terror aos vivos, a aniversariante ficou mais dura na cadeira, e mais alta. Ela era a mãe de todos. E como a presilha a sufocasse, ela era a mãe de todos e, impotente à cadeira, desprezava-os. E olhava-os piscando. Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração, Rodrigo, com aquela carinha dura, viril e despenteada. Cadê Rodrigo? Rodrigo com olhar sonolento e intumescido naquela cabecinha ardente, confusa. Aquele seria um homem. Mas, piscando, ela olhava os outros, a aniversariante. Oh o desprezo pela vida que falhava. Como?! como tendo sido tão forte pudera dar à luz aqueles seres opacos, com braços moles e rostos ansiosos? Ela, a forte, que casara em hora e tempo devidos com um bom homem a quem, obediente e independente, ela respeitara; a quem respeitara e que lhe fizera filhos e lhe pagará os partos e lhe honrara os resguardos. O tronco fora bom. Mas dera aqueles azedos e infelizes frutos, sem capacidade sequer para uma boa alegria. Como pudera ela dar à luz aqueles seres risonhos, fracos, sem austeridade? O rancor roncava no seu peito vazio. Uns comunistas, era o que eram; uns comunistas. Olhou-os com sua cólera de velha. Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Incoercível, virou a cabeça e com força insuspeita cuspiu no chão.

        — Mamãe! gritou mortificada a dona da casa. Que é isso, mamãe! gritou ela passada de vergonha, e não queria sequer olhar os outros, sabia que os desgraçados se entreolhavam vitoriosos como se coubesse a ela dar educação à velha, e não faltaria muito para dizerem que ela já não dava mais banho na mãe, jamais compreenderiam o sacrifício que ela fazia. — Mamãe, que é isso! — disse baixo, angustiada. — A senhora nunca fez isso! — acrescentou alto para que todos ouvissem, queria se agregar ao espanto dos outros, quando o galo cantar pela terceira vez renegarás tua mãe. Mas seu enorme vexame suavizou-se quando ela percebeu que eles abanavam a cabeça como se estivessem de acordo que a velha não passava agora de uma criança.

        — Ultimamente ela deu pra cuspir, terminou então confessando contrita para todos.

        Todos olharam a aniversariante, compungidos, respeitosos, em silêncio.

        Pareciam ratos se acotovelando, a sua família. Os meninos, embora crescidos — provavelmente já além dos cinquenta anos, que sei eu! — os meninos ainda conservavam os traços bonitinhos. Mas que mulheres haviam escolhido! E que mulheres os netos — ainda mais fracos e mais azedos — haviam escolhido. Todas vaidosas e de pernas finas, com aqueles colares falsificados de mulher que na hora não aguenta a mão, aquelas mulherezinhas que casavam mal os filhos, que não sabiam pôr uma criada em seu lugar, e todas elas com as orelhas cheias de brincos — nenhum, nenhum de ouro! A raiva a sufocava.

        — Me dá um copo de vinho! disse.

        O silêncio se fez de súbito, cada um com o copo imobilizado na mão.

        — Vovozinha, não vai lhe fazer mal? insinuou cautelosa a neta roliça e baixinha.

        — Que vovozinha que nada! explodiu amarga a aniversariante. — Que o diabo vos carregue, corja de maricas, cornos e vagabundas! me dá um copo de vinho, Dorothy! — ordenou.

        Dorothy não sabia o que fazer, olhou para todos em pedido cômico de socorro. Mas, como máscaras isentas e inapeláveis, de súbito nenhum rosto se manifestava. A festa interrompida, os sanduíches mordidos na mão, algum pedaço que estava na boca a sobrar seco, inchando tão fora de hora a bochecha. Todos tinham ficado cegos, surdos e mudos, com croquetes na mão. E olhavam impassíveis.

        Desamparada, divertida, Dorothy deu o vinho: astuciosamente apenas dois dedos no copo. Inexpressivos, preparados, todos esperaram pela tempestade.

        Mas não só a aniversariante não explodiu com a miséria de vinho que Dorothy lhe dera como não mexeu no copo. Seu olhar estava fixo, silencioso. Como se nada tivesse acontecido.

        Todos se entreolharam polidos, sorrindo cegamente, abstratos como se um cachorro tivesse feito pipi na sala. Com estoicismo, recomeçaram as vozes e risadas. A nora de Olaria, que tivera o seu primeiro momento uníssono com os outros quando a tragédia vitoriosamente parecia prestes a se desencadear, teve que retornar sozinha à sua severidade, sem ao menos o apoio dos três filhos que agora se misturavam traidoramente com os outros. De sua cadeira reclusa, ela analisava crítica aqueles vestidos sem nenhum modelo, sem um drapeado, a mania que tinham de usar vestido preto com colar de pérolas, o que não era moda coisa nenhuma, não passava era de economia. Examinando distante os sanduíches que quase não tinham levado manteiga. Ela não se servira de nada, de nada! Só comera uma coisa de cada, para experimentar.

        E por assim dizer, de novo a festa estava terminada. As pessoas ficaram sentadas benevolentes. Algumas com a atenção voltada para dentro de si, à espera de alguma coisa a dizer. Outras vazias e expectantes, com um sorriso amável, o estômago cheio daquelas porcarias que não alimentavam mas tiravam a fome. As crianças, já incontroláveis, gritavam cheias de vigor. Umas já estavam de cara imunda; as outras, menores, já molhadas; a tarde cala rapidamente. E Cordélia, Cordélia olhava ausente, com um sorriso estonteado, suportando sozinha o seu segredo. Que é que ela tem? alguém perguntou com uma curiosidade negligente, indicando-a de longe com a cabeça, mas também não responderam. Acenderam o resto das luzes para precipitar a tranquilidade da noite, as crianças começavam a brigar. Mas as luzes eram mais pálidas que a tensão pálida da tarde. E o crepúsculo de Copacabana, sem ceder, no entanto se alargava cada vez mais e penetrava pelas janelas como um peso.

        — Tenho que ir, disse perturbada uma das noras levantando-se e sacudindo os farelos da saia. Vários se ergueram sorrindo.

        A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma armadilha. E, impassível, piscando, recebeu aquelas palavras propositadamente atropeladas que lhe diziam tentando dar um final arranco de efusão ao que não era mais senão passado: a noite já viera quase totalmente. A luz da sala parecia então mais amarela e mais rica, as pessoas envelhecidas. As crianças já estavam histéricas.

        — Será que ela pensa que o bolo substitui o jantar, indagava-se a velha nas suas profundezas.

        Mas ninguém poderia adivinhar o que ela pensava. E para aqueles que junto da porta ainda a olharam uma vez, a aniversariante era apenas o que parecia ser: sentada à cabeceira da mesa imunda, com a mão fechada sobre a toalha como encerrando um cetro, e com aquela mudez que era a sua última palavra. Com um punho fechado sobre a mesa, nunca mais ela seria apenas o que ela pensasse. Sua aparência afinal a ultrapassara e, superando-a, se agigantava serena. Cordélia olhou-a espantada. O punho mudo e severo sobre a mesa dizia para a infeliz nora que sem remédio amava talvez pela última vez: É preciso que se saiba. É preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta.

        Porém nenhuma vez mais repetiu. Porque a verdade era um relance. Cordélia olhou-a estarrecida. E, para nunca mais, nenhuma vez repetiu — enquanto Rodrigo, o neto da aniversariante, puxava a mão daquela mãe culpada, perplexa e desesperada que mais uma vez olhou para trás implorando à velhice ainda um sinal de que uma mulher deve, num ímpeto dilacerante, enfim agarrar a sua derradeira chance e viver. Mais uma vez Cordélia quis olhar.

        Mas a esse novo olhar — a aniversariante era uma velha à cabeceira da mesa.

        Passara o relance. E arrastada pela mão paciente e insistente de Rodrigo a nora seguiu-o espantada.

        — Nem todos têm o privilégio e o orgulho de se reunirem em torno da mãe, pigarreou José lembrando-se de que Jonga é quem fazia os discursos.

        — Da mãe, vírgula! riu baixo a sobrinha, e a prima mais lenta riu sem achar graça.

        — Nós temos, disse Manoel acabrunhado sem mais olhar para a esposa. Nós temos esse grande privilégio disse distraído enxugando a palma úmida das mãos.

        Mas não era nada disso, apenas o mal-estar da despedida, nunca se sabendo ao certo o que dizer, José esperando de si mesmo com perseverança e confiança a próxima frase do discurso. Que não vinha. Que não vinha. Que não vinha. Os outros aguardavam. Como Jonga fazia falta nessas horas — José enxugou a testa com o, lenço — como Jonga fazia falta nessas horas! Também fora o único a quem a velha sempre aprovara e respeitara, e isso dera a Jonga tanta segurança. E quando ele morrera, a velha nunca mais falara nele, pondo um muro entre sua morte e os outros. Esquecera-o talvez. Mas não esquecera aquele mesmo olhar firme e direto com que desde sempre olhara os outros filhos, fazendo-os sempre desviar os olhos. Amor de mãe era duro de suportar: José enxugou a testa, heroico, risonho.

        E de repente veio a frase:

        — Até o ano que vem! disse José subitamente com malícia, encontrando, assim, sem mais nem menos, a frase certa: uma indireta feliz! Até o ano que vem, hein? repetiu com receio de não ser compreendido.

        Olhou-a, orgulhoso da artimanha da velha que espertamente sempre vivia mais um ano.

        — No ano que vem nos veremos diante do bolo aceso! esclareceu melhor o filho Manoel, aperfeiçoando o espírito do sócio. Até o ano que vem, mamãe! e diante do bolo aceso! disse ele bem explicado, perto de seu ouvido, enquanto olhava obsequiador para José. E a velha de súbito cacarejou um riso frouxo, compreendendo a alusão.

        Então ela abriu a boca e disse:

        — Pois é.

        Estimulado pela coisa ter dado tão inesperadamente certo, José gritou-lhe emocionado, grato, com os olhos úmidos:

        — No ano que vem nos veremos, mamãe!

        — Não sou surda! disse a aniversariante rude, acarinhada.

        Os filhos se olharam rindo, vexados, felizes. A coisa tinha dado certo.

        As crianças foram saindo alegres, com o apetite estragado. A nora de Olaria deu um cascudo de vingança no filho alegre demais e já sem gravata. As escadas eram difíceis, escuras, incrível insistir em morar num prediozinho que seria fatalmente demolido mais dia menos dia, e na ação de despejo Zilda ainda ia dar trabalho e querer empurrar a velha para as noras — pisado o último degrau, com alívio os convidados se encontraram na tranquilidade fresca da rua. Era noite, sim. Com o seu primeiro arrepio.

        Adeus, até outro dia, precisamos nos ver. Apareçam, disseram rapidamente. Alguns conseguiram olhar nos olhos dos outros com uma cordialidade sem receio. Alguns abotoavam os casacos das crianças, olhando o céu à procura de um sinal do tempo. Todos sentindo obscuramente que na despedida se poderia talvez, agora sem perigo de compromisso, ser bom e dizer aquela palavra a mais — que palavra? eles não sabiam propriamente, e olhavam-se sorrindo, mudos. Era um instante que pedia para ser vivo. Mas que era morto. Começaram a se separar, andando meio de costas, sem saber como se desligar dos parentes sem brusquidão.

        — Até o ano que vem! repetiu José a indireta feliz, acenando a mão com vigor efusivo, os cabelos ralos e brancos esvoaçavam. Ele estava era gordo, pensaram, precisava tomar cuidado com o coração. Até o ano que vem! gritou José eloquente e grande, e sua altura parecia desmoronável. Mas as pessoas já afastadas não sabiam se deviam rir alto para ele ouvir ou se bastaria sorrir mesmo no escuro. Além de alguns pensarem que felizmente havia mais do que uma brincadeira na indireta e que só no próximo ano seriam obrigados a se encontrar diante do bolo aceso; enquanto que outros, já mais no escuro da rua, pensavam se a velha resistiria mais um ano ao nervoso e à impaciência de Zilda, mas eles sinceramente nada podiam fazer a respeito: “Pelo menos noventa anos”, pensou melancólica a nora de Ipanema. “Para completar uma data bonita”, pensou sonhadora.

        Enquanto isso, lá em cima, sobre escadas e contingências, estava a aniversariante sentada à cabeceira da mesa, erecta, definitiva, maior do que ela mesma. Será que hoje não vai ter jantar, meditava ela. A morte era o seu mistério.

Clarice Lispector Extraído do livro Laços de Família, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998.

Entendendo o conto:

01 – De que se trata o conto?

      Trata-se do tratamento desumano oferecido a uma senhora velha por seus filhos.

02 – Quem é a personagem principal?

      D. Anita.

03 – Dentro deste tipo textual (conto) há que narrador?

a)   Narrador-personagem.

b)   Narrador-observador.

c)   Narrador-onisciente.

04 – Qual o cenário em que se desenrola a história?

      No apartamento de Zilda, a filha com quem a aniversariante mora.

05 – Quem são os personagens que participam da ação apresentada no conto?

      D. Anita (protagonista), Zilda, a nora de Olaria, a nora de Ipanema, netos e bisnetos de Dona Anita, Cordélia (a nora mais nova), José, Manoel, Rodrigo (o neto de 7 anos) e Dorothy.

06 – Em que passagem do texto ocorre o clímax, ou seja, o momento de maior tensão da história? Explique.

      O clímax da história se dá quando D. Anita, insatisfeita com o caráter de seus filhos e netos, pronuncia inesperadamente um frase de ofensa à família.

07 – O narrador revela que existe problemas mal resolvidos nas situações familiares, como?

      Na descrição das cenas percebe-se a distância entre os irmãos e entre os filhos e a mãe, a futilidade e a superficialidade das relações e das personagens.

08 – Por que o conto “Feliz aniversário”, é considerado um conto brutal?

      Porque mexe com o esteriótipo da família perfeita e feliz, desfolhando para o leitor um universo de aparências.

 


quarta-feira, 27 de maio de 2020

CONTO: UMA GALINHA - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

Conto: Uma Galinha
           
              Clarice Lispector

      Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
    Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
        Foi, pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo da cozinheira dar um grito — e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos alcançou o telhado onde está, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais intensa.
        De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz, porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
        Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava ofegante num beirai de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um momento. E então parecia tão livre.
        Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga.
        Que é que havia nas suas vísceras que fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
        Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos.
        Foi então que aconteceu. De pura afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou, respirando, abotoando e desabotoando os olhos.
        Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez àquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal, porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!
        Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não era nem suave, nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
        — Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
        — Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.
        Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava: "E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do sobressalto.
        Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo – se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já mecanizado.
        Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira do telhado, prestes a anunciar.
        Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado às fêmeas cantar, ela não cantaria, mas ficaria muito mais contente.
        Embora nem nesses instantes a expressão de sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
        Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos.

Fonte: https:// arquivos.gconcursos.com/prova/arquivo.prova/47449/itame-2015-camara-municipal-de-inhumas-go-arquivista-prova-pdf. Acesso: 06 abr. 2020.
Interpretando e analisando o conto:
01 – Assinale a alternativa correta. “A galinha tornara-se a rainha da casa”.
a)   Por ter tido coragem para fugir da morte;
b)   Por cantar como um galo todas as manhãs;
c)   Por ter botado um ovo, começado a chocá-lo e comovido a todos.
d)   Por ter cabeça de galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.

02 – Se em “Mesmo que ela cante baixinho, fará sucesso” o trecho em negrito fosse substituído por “Mesmo que ela cantasse baixinho”, a continuação correta seria:
a)   Faz sucesso.
b)   Fez sucesso.
c)   Fará sucesso.
d)   Faria sucesso.

03 – Assinale a alternativa em que contém discurso direto:
a)   Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã. Parecia calma.
b)   Mal porém conseguiu desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos: – Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!
c)   Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar a beira do telhado, prestes a anunciar.
d)   Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi presa.

04 – Em todos os trechos citados do texto há adjetivo, exceto em:
a)   [...] não souberam dizer se era gorda ou magra.
b)   Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada.
c)   Até que um dia mataram-na, comeram-na e passaram-se os anos.
d)   [...] hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo.

05 – Assinale a alternativa correta no que se refere ao uso da vírgula – “O rapaz, porém, era um caçador adormecido”.
a)   Para isolar o vocativo.
b)   Para isolar o aposto.
c)   Para separar conjunções.
d)   Para separar adjuntos adverbiais deslocados.

06 – Por que, afinal, a família desistiu de comer a galinha? E por que, tempos depois, eles decidem comê-la?
      Exemplo de hipóteses interpretativas: A família desistiu de comer a galinha porque percebeu que ela era agora necessária para dar vida ao ovo que ela chocava. Depois eles decidem comê-la porque ela não está mais chocando ovo nenhum.   
  
07 – Às vezes, a narrativa do conto oscila entre a humanização e animalização da galinha. Cite trechos do texto que comprovam essa afirmativa.
      Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.

08 – Percebe-se, no conto, que o narrador(a) faz uma projeção da galinha para uma mulher / mãe que gostaria muito de não ter o sentido de sua vida reduzido à maternidade. Não quer (ou não ousa) cantar como o galo (ou cantar de galo), mas ficaria feliz em saber que pode. Qual a relação da projeção feita pelo narrador(a) com as mulheres anuais? Justifique sua resposta.
      As mulheres, atualmente, não gostam de ver suas vidas reduzidas à maternidade. Muitas mulheres amam o papel da maternidade, mas a maioria delas desejam ser vistas, não apenas como mães, mas como pessoas independentes, capazes, boas profissionais, etc.

09 – Qual é a(s) personagens principal do conto?
      A galinha.

10 – Em que tempo e em que lugar se passa essa narrativa? Justifique sua resposta.
      Tempo psicológico – Terceira pessoa. Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã. Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha.
      Na casa da família – na murada do terraço, no terraço do vizinho – Foi pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances, alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou – o tempo da cozinheira dar um grito – e em breve estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé.

11 – Que tipo de narrador está presente nesta narrativa? Justifique sua resposta.
      Narrador observador.

12 – Faça um resumo desse conto em, no máximo, cinco linhas, contando com suas próprias palavras o que você leu.
      Resposta pessoal do aluno.