Política de Privacidade

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

CRÔNICA: A BORBOLETA AMARELA - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

 Crônica: A borboleta amarela

             Rubem Braga

        Era uma borboleta. Passou roçando em meus cabelos, e no primeiro instante pensei que fosse uma bruxa ou qualquer outro desses insetos que fazem vida urbana; mas, como olhasse, vi que era uma borboleta amarela.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgqjzr5iWOERo2K2W03a62cYK7t6-zpt0sneCJDmHLumkz3ua98fDp7SQzohwD9wFwjN6qWMtZJ5SRv5Fu2eUUwFZRlO6EiIgkntgRO4uL1gFasWjiVkmumVH55nmsCkvpVyqBptdc3cduaTswriR4Jke62THclDhIKSpJCwZVbS5pSM4fM1BJ_Qp4amzA/s320/BORBOLETA.jpg


        Era na esquina de Graça Aranha com Araújo Porto Alegre; ela borboleteava junto ao mármore negro do Grande Ponto; depois desceu, passando em face das vitrinas de conservas e uísques; eu vinha na mesma direção; logo estávamos defronte da ABI. Entrou um instante no hall, entre duas colunas; seria uma jornalista? – pensei com certo tédio.

        Mas logo saiu. E subiu mais alto, acima das colunas, até o travertino encardido. Na Rua México eu tive de esperar que o sinal abrisse; ela tocou, fagueira, para o outro lado, indiferente aos carros que passavam roncando sob suas leves asas. Fiquei a olhá-la. Tão amarela e tão contente da vida, de onde vinha, aonde iria? Fora trazida pelo vento das ilhas – ou descera saçaricante e leve da floresta da Tijuca ou de algum morro – talvez o de São Bento? Onde estaria uma hora antes, qual sua idade? Nada sei de borboletas. Nascera, acaso, no jardim do Ministério da Educação? Não; o Burle Marx faz bons jardins, mas creio que ainda não os faz com borboletas – o que, aliás, é uma boa ideia. Quando eu o mandar fazer os jardins do meu palácio, direi: Burle, aqui sobre esses manacás, quero uma borboleta amare… Mas o sinal abriu e atravessei a rua correndo, pois já ia perdendo de vista a minha borboleta.

        A minha borboleta! Isso, que agora eu disse sem querer, era o que eu sentia naquele instante: a borboleta era minha – como se fosse meu cão ou minha amada de vestido amarelo que tivesse atravessando a rua na minha frente, e eu devesse segui-la. Reparei que nenhum transeunte olhava a borboleta; eles passavam, devagar ou depressa, vendo vagamente outras coisas – as casas, os veículos – ou se vendo; só eu vira a borboleta, e a seguia, com meu passo fiel. Naquele ângulo há um jardinzinho, atrás da Biblioteca Nacional. Ela passou entre os ramos de acácia e de uma árvore sem folhas, talvez um flamboyant; havia, naquela hora, um casal de namorados pobres em um banco, e dois ou três sujeitos espalhados pelos outros bancos, dos quais uns são de pedra, outros de madeira, sendo que estes são pintados de azul e branco. Notei isso pela primeira vez, aliás, naquele instante, eu sempre passo por ali; é que minha borboleta amarela me tornava sensível às cores.

        Ela borboleteou um instante sobre um casal de namorados; depois passou quase junto da cabeça de um mulato magro, sem gravata, que descansava num banco; e seguiu em direção à avenida. Amanhã eu conto mais.

Rubem Braga. Para gostar de ler. São Paulo, Ática, 1979.

Fonte: Gramática da Língua Portuguesa Uso e Abuso. Suzana d’Avila – Volume Único. Editora do Brasil S/A. Ensino de 1º grau. 1997. p. 149.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o contraste fundamental que o cronista estabelece no início do texto ao descrever a borboleta e o cenário?

      O contraste fundamental é entre a fragilidade, a beleza e a liberdade da natureza (a borboleta amarela, "fagueira," "contente da vida") e a aridez, o cinza e a pressa da vida urbana (a esquina de ruas movimentadas, o "mármore negro," os "carros que passavam roncando"). A borboleta é um elemento estranho e fascinante nesse ambiente de concreto.

02 – O cronista demonstra humor e ironia ao pensar no que a borboleta poderia ser ao entrar na ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Qual é o teor dessa ironia?

      O cronista manifesta ironia ao pensar se a borboleta "seria uma jornalista?" e sentir "certo tédio" em seguida. Isso satiriza a rotina, a seriedade e a trivialidade da vida profissional e intelectual urbana, que é vista como tediosa e oposta à beleza espontânea e livre da borboleta.

03 – A borboleta provoca uma grande mudança na percepção do cronista. Qual é o principal efeito que ela causa no seu olhar, conforme ele mesmo relata no quarto parágrafo?

      A borboleta o torna "sensível às cores" e aos detalhes do ambiente que ele antes ignorava, apesar de passar por ali diariamente. Ele nota a cor dos bancos e a presença de "namorados pobres," indicando que a borboleta o tira da alienação e aguça sua sensibilidade para a poesia e a vida ao seu redor.

04 – No quarto parágrafo, o eu lírico afirma que a borboleta era "minha." O que esse sentimento de posse inesperado sugere sobre sua conexão com o inseto?

      O sentimento de posse sugere que a borboleta despertou uma forte conexão afetiva e um desejo de contemplação exclusiva. Ao compará-la a "meu cão ou minha amada de vestido amarelo," o cronista transfere para o inseto o afeto e a fidelidade que se tem por um ser querido, elevando a borboleta a um símbolo pessoal de beleza e inspiração.

05 – Qual é a reação dos outros transeuntes à borboleta e o que essa indiferença sublinha sobre o tema da crônica?

      Os transeuntes não olham para a borboleta, passando "vendo vagamente outras coisas" (casas, veículos). Essa indiferença sublinha o tema da alienação e da cegueira urbana. O cronista é o único capaz de quebrar sua rotina e notar, e valorizar, a beleza efêmera da natureza.

06 – O cronista passa algum tempo especulando sobre a origem da borboleta (morro de São Bento, Tijuca, jardim do Ministério da Educação). O que essa especulação reforça no texto?

      A especulação reforça o mistério, a efemeridade e a natureza imprevisível da beleza. Ao não saber de onde a borboleta veio, o cronista enfatiza que a inspiração e a poesia são dádivas que irrompem inesperadamente na rotina, vindo de um lugar desconhecido, puro e incontrolável (a natureza).

07 – De que forma a atitude do cronista de "correr" para não perder a borboleta ilustra uma característica fundamental do gênero crônica?

      O ato de correr para não perder de vista o objeto de sua atenção ilustra a característica da observação minuciosa do cotidiano e a valorização do efêmero. A crônica transforma um fato banal (uma borboleta na rua) em um momento de reflexão e poesia, mostrando a capacidade do cronista de capturar a beleza passageira do dia a dia antes que ela desapareça.

Nenhum comentário:

Postar um comentário