Poema: O Pleno E o Vazio
Carlos Drummond de Andrade
Oh se me lembro e quanto.
E se não me lembrasse?
Outra seria minh’alma,
bem diversa minha face.

Oh como esqueço e quanto.
E se não esquecesse?
Seria homem-espanto,
ambulando sem cabeça.
Oh como esqueço e lembro,
como lembro e esqueço
em correntezas iguais
e simultâneos enlaces.
Mas como posso, no fim,
recompor os meus disfarces?
Que caixa esquisita guarda
em mim sua névoa e cinza,
seu patrimônio de chamas,
enquanto a vida confere
seu limite, e cada hora
é uma hora devida
no balanço da memória
que chora e que ri, partida?
Corpo. Rio de Janeiro, Record, 1984.
Fonte: Português – 1º
grau – Descobrindo a gramática 8. Gilio Giacomozzi; Gildete Valério; Cláudia
Reda Fenga. São Paulo. FTD, 1992. p. 194.
Entendendo o poema:
01
– Qual é a principal dicotomia (oposição) explorada nos dois primeiros
quartetos do poema, e como ela afeta a identidade do eu lírico?
A dicotomia
principal é entre Lembrança (Pleno) e Esquecimento (Vazio).
Lembrar ("Oh se me
lembro e quanto") implica que a memória molda a identidade ("Outra
seria minh’alma, / bem diversa minha face").
Esquecer ("Oh como
esqueço e quanto") é visto como um mecanismo de sobrevivência. A falta
total de esquecimento ("E se não esquecesse?") o tornaria um
"homem-espanto, / ambulando sem cabeça," sugerindo que a memória
total e incessante seria destrutiva, impedindo a vida.
02
– Na terceira estrofe, o eu lírico descreve o ato de lembrar e esquecer como
"em correntezas iguais / e simultâneos enlaces." O que essa imagem
sugere sobre o processo da memória?
Essa imagem
sugere que lembrar e esquecer não são processos opostos e excludentes, mas sim
forças coexistentes e igualmente poderosas que agem ao mesmo tempo. A memória
não é um reservatório estático, mas um fluxo dinâmico ("correntezas")
onde o pleno e o vazio estão continuamente se misturando e se interligando
("simultâneos enlaces").
03
– Por que o eu lírico questiona: "Mas como posso, no fim, / recompor os
meus disfarces?" após refletir sobre a memória e o esquecimento?
O questionamento
revela uma crise de identidade. O "disfarce" representa a persona
social ou a identidade coerente que o indivíduo apresenta ao mundo. Ao
constatar que a memória e o esquecimento atuam em "correntezas
iguais," ele percebe que seu ser é constantemente alterado e instável.
Assim, ele duvida de sua capacidade de manter uma identidade fixa e crível (o
disfarce) diante da complexidade e da inconstância de sua vida interior.
04
– O que a "caixa esquisita" mencionada na última estrofe simboliza e
o que ela contém?
A "caixa
esquisita" simboliza o interior do ser humano, a mente ou a psique,
especificamente o local onde a memória e a consciência residem. O que ela
guarda é a totalidade das experiências:
"névoa e cinza": o
esquecimento, a dor e o que foi perdido.
"patrimônio de
chamas": as lembranças intensas, a paixão e a vitalidade do que foi
vivido. É o repositório paradoxal que contém a destruição e a riqueza emocional
da vida.
05
– Como a última estrofe relaciona a memória ("balanço da memória")
com o conceito de tempo ("cada hora / é uma hora devida")?
A última estrofe
estabelece uma relação direta entre a memória e o tempo vivido como uma dívida
existencial. O "balanço da memória" é a contabilidade que a vida faz,
comparando o que foi vivido com o que resta. A frase "cada hora / é uma
hora devida" sugere que o tempo não é apenas passado, mas uma
responsabilidade ou um compromisso com o ser. A memória, ao fazer esse balanço
e estar "partida" (entre o riso e o choro), é o instrumento que nos
força a enfrentar o preço emocional do tempo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário