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quinta-feira, 3 de julho de 2025

CONTO: A HORA DA ONÇA BEBER ÁGUA - THIAGO DE MELLO - COM GABARITO

 Conto: A hora da onça beber água

           Thiago de Mello

        A onça que se cuide. É na hora da sede que pode chegar sua vez. Porque o caçador escovado não conhece apenas o lugar onde ela gosta de beber água. Sabe principalmente que onça é bicho de hábitos desassombrados e de metabolismo admiravelmente regular: pra cada coisa ela tem seu instinto certo. Não chega à perfeição do Emanuel Kant, raro animal alemão, que saía de casa todos os dias, sempre à mesma hora e com tamanha pontualidade, que, ao passar a pé, a caminho da universidade, pela porta do relojoeiro da cidade, prontamente este conferia o relógio: era as nove em ponto da manhã. Não. Onça não precisa de relógio, e não me consta, embora não seja de todo inverossímil, que ela, lá nos seus silêncios de olhos imóveis, se dedique à crítica da razão pura. O fato é que o bom mateiro sabe que a onça espera a primeira claridade da manhã, aquele instante em que as estrelas se despedem dos pássaros noturnos, para então se levantar e sair, com sua macia solenidade felina, narinas crescidas farejando o vento, no rumo do riacho de água fresquinha. Rente à beira, ela pára, mas não vai bebendo logo, não. Primeiro ela bate a água de leve com a pata. Dizem alguns que é para sentir a temperatura da água; eu concordo é com a minha gente da floresta, que acha que ela quer ver é se tem poraquê, o peixe-elétrico, cuja vibração ela pressente na pele, ou se tem piranha fervilhando ali por perto (a onça não é besta: ela sabe que em rio que tem piranha até jacaré nada de costas). Aí, então, sim, ela bebe sua água do dia. Pois é bem nesse momento que lhe chega o balaço calibre 44, rifle de papo amarelo. É um tiro só, que o caboclo não falha na mira, feita sem afobação, lá do alto da forquilha da árvore, onde ele varou a noite de tocaia.


Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1O04wFt57V3Q8yJtSN3sNz5ue7Iu_jeQe8GXjM5_o2QqoA7QY0q0YiXAAiWjIf73Ru5hdC6m-2J4VPOXYxm8XqeRD72EG6JLSK96sH4dXHy8oWa_1KAfcZ3i4J2wLCUmMc0Yir8QxjNUDjjmiSqSprm94xmb6RxOpnNK7wfZ606u8xGUq6qtA1Y_0Ie0/s1600/images.jpg

        Não é sempre, porém, que a hora de beber água traz à onça o último gole de vida. Um ditado já avisa que um dia é da caça, outro é do caçador. E é tolo quem se esquece de que, quando mais se tem precisão, mais o tiro sai pela culatra. E vezes há em que o tiro nem chega a sair. Como aconteceu com o Altamirano lá na boca do igarapé do Pucu. Vou contar como foi.

        Mas antes, faço questão de esclarecer que o Altamirano não era um desses que matam onça só pela cobiça do couro, que vale lá fora os olhos da cara. Não. O caso do Altamirano, uma flor de pessoa, a quem conheci nos anos 50, lá na Costa do Varre-Vento, foi um caso de vingança, que pode não ser um sentimento dos mais nobres, mas adianto que o caboclo teve os seus poderosos motivos. Chego mesmo, hoje, com o tempo bem andado, a achar que foi uma questão de amor.

        Altamirano tinha uma novilha branquinha, chamada Princesa, que era o xodó dele. Os dois se queriam tanto, que ele chegava de manhãzinha na cerca do curral e meigamente a chamava pelo nome:

        -- Prin-ce-sa!

        Pois não é que a vaquinha (eu vi, ninguém me contou) reconhecia o amigo? Lá de longe, ela lhe respondia com um mugido demorado de gosto que parecia uma canção:

        -- Hummmmm, Hummmmm...

        Pois sucedeu que um dia a Princesa amanheceu toda estraçalhada, o quarto dianteiro já arrancado, Altamirano não precisou adivinhar; mal olhou, ficou logo sabendo. Além do mais, lá estavam, na terra molhada de sereno, as enormes marcas das patas da onça: era uma das baitas. Diante dos restos da sua novilhinha, o caboclo se jurou: hoje eu dou fim nessa danada.

        Mal anoiteceu, saiu com sua espingarda e foi esperar a fera. Abrigou-se num vão da sacopema formada pelas raízes altas de uma mungubeira, e ali ficou de atalaia. Ah, mas ele estava possuído pela ira, e a ira é sentimento que pode privar o homem dos sentidos e da inteligência. Pois não foi o que o Altamirano se descuidou do vento? Escolheu um lugar entre a onça e o vento, vento que levou para o faro agudíssimo da fera o cheiro do Altamirano.

        Leitor, queres saber de uma coisa? Eu vou é encurtar a história, porque ela termina triste. A onça veio por detrás, matou o Altamirano e depois foi beber sua água.

        Na vida, por via das dúvidas, a gente precisa sempre levar em conta o jeito do vento, senão o vento, o vento que é tão bom, pode se transformar, de repente, num grande amigo da onça.

Thiago de Mello.

Fonte: Letra e Vida. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos – Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 42-43.

Entendendo o conto:

01 – Qual o principal objetivo do caçador "escovado" ao observar os hábitos da onça?

      O principal objetivo do caçador é aproveitar o momento em que a onça está mais vulnerável, ou seja, na hora em que ela vai beber água, para abatê-la com um tiro certeiro. Ele se baseia nos hábitos regulares do animal para prever seu comportamento.

02 – Que precauções a onça toma antes de beber água, e qual a crença popular sobre isso?

      Antes de beber água, a onça bate de leve na superfície com a pata. Alguns dizem que é para sentir a temperatura, mas a crença popular da floresta é que ela faz isso para verificar a presença de peixe-elétrico (poraquê) ou piranhas por perto, que poderiam representam um perigo para ela.

03 – Por que o caso do Altamirano é diferente dos caçadores comuns de onça?

      O conto esclarece que Altamirano não caçava onças pela cobiça do couro. Seu caso foi motivado por vingança e, posteriormente, interpretado como uma questão de amor, devido à morte de sua novilha Princesa, a quem ele tinha grande afeto.

04 – Quem era Princesa e qual a relação dela com Altamirano?

      Princesa era uma novilha branquinha, o grande xodó de Altamirano. Eles tinham uma relação de muito carinho e reconhecimento mútuo, com Altamirano a chamando e a novilha respondendo com um mugido.

05 – Qual foi o erro fatal de Altamirano ao armar a tocaia para a onça?

      O erro fatal de Altamirano foi se descuidar do vento. Ele escolheu um local onde o vento levava seu cheiro diretamente para a onça, que, com seu faro agudíssimo, conseguiu detectá-lo.

06 – Que ditado popular é mencionado no conto para ilustrar a imprevisibilidade da caça?

      O ditado popular mencionado é: "um dia é da caça, outro é do caçador". Isso ressalta que, apesar das estratégias, o resultado de uma caçada pode variar, e nem sempre o caçador sai vitorioso.

07 – Qual a principal lição ou moral que o narrador busca transmitir ao final do conto?

      A principal lição é a importância de se considerar os fatores externos, como o vento, em qualquer situação da vida. O narrador enfatiza que o que pode parecer inofensivo (o vento) pode se tornar um "grande amigo da onça" se não for levado em conta, levando a desfechos tristes e inesperados.

 

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