Conto: A hora da onça beber água
Thiago de Mello
A onça que se cuide. É na hora da sede
que pode chegar sua vez. Porque o caçador escovado não conhece apenas o lugar
onde ela gosta de beber água. Sabe principalmente que onça é bicho de hábitos
desassombrados e de metabolismo admiravelmente regular: pra cada coisa ela tem
seu instinto certo. Não chega à perfeição do Emanuel Kant, raro animal alemão,
que saía de casa todos os dias, sempre à mesma hora e com tamanha pontualidade,
que, ao passar a pé, a caminho da universidade, pela porta do relojoeiro da cidade,
prontamente este conferia o relógio: era as nove em ponto da manhã. Não. Onça
não precisa de relógio, e não me consta, embora não seja de todo inverossímil,
que ela, lá nos seus silêncios de olhos imóveis, se dedique à crítica da razão
pura. O fato é que o bom mateiro sabe que a onça espera a primeira claridade da
manhã, aquele instante em que as estrelas se despedem dos pássaros noturnos,
para então se levantar e sair, com sua macia solenidade felina, narinas
crescidas farejando o vento, no rumo do riacho de água fresquinha. Rente à
beira, ela pára, mas não vai bebendo logo, não. Primeiro ela bate a água de
leve com a pata. Dizem alguns que é para sentir a temperatura da água; eu
concordo é com a minha gente da floresta, que acha que ela quer ver é se tem
poraquê, o peixe-elétrico, cuja vibração ela pressente na pele, ou se tem
piranha fervilhando ali por perto (a onça não é besta: ela sabe que em rio que
tem piranha até jacaré nada de costas). Aí, então, sim, ela bebe sua água do
dia. Pois é bem nesse momento que lhe chega o balaço calibre 44, rifle de papo
amarelo. É um tiro só, que o caboclo não falha na mira, feita sem afobação, lá
do alto da forquilha da árvore, onde ele varou a noite de tocaia.
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1O04wFt57V3Q8yJtSN3sNz5ue7Iu_jeQe8GXjM5_o2QqoA7QY0q0YiXAAiWjIf73Ru5hdC6m-2J4VPOXYxm8XqeRD72EG6JLSK96sH4dXHy8oWa_1KAfcZ3i4J2wLCUmMc0Yir8QxjNUDjjmiSqSprm94xmb6RxOpnNK7wfZ606u8xGUq6qtA1Y_0Ie0/s1600/images.jpg
Não é sempre, porém, que a hora de
beber água traz à onça o último gole de vida. Um ditado já avisa que um dia é
da caça, outro é do caçador. E é tolo quem se esquece de que, quando mais se
tem precisão, mais o tiro sai pela culatra. E vezes há em que o tiro nem chega
a sair. Como aconteceu com o Altamirano lá na boca do igarapé do Pucu. Vou
contar como foi.
Mas antes, faço questão de esclarecer
que o Altamirano não era um desses que matam onça só pela cobiça do couro, que
vale lá fora os olhos da cara. Não. O caso do Altamirano, uma flor de pessoa, a
quem conheci nos anos 50, lá na Costa do Varre-Vento, foi um caso de vingança,
que pode não ser um sentimento dos mais nobres, mas adianto que o caboclo teve
os seus poderosos motivos. Chego mesmo, hoje, com o tempo bem andado, a achar
que foi uma questão de amor.
Altamirano tinha uma novilha
branquinha, chamada Princesa, que era o xodó dele. Os dois se queriam tanto,
que ele chegava de manhãzinha na cerca do curral e meigamente a chamava pelo
nome:
-- Prin-ce-sa!
Pois não é que a vaquinha (eu vi,
ninguém me contou) reconhecia o amigo? Lá de longe, ela lhe respondia com um
mugido demorado de gosto que parecia uma canção:
-- Hummmmm, Hummmmm...
Pois sucedeu que um dia a Princesa
amanheceu toda estraçalhada, o quarto dianteiro já arrancado, Altamirano não
precisou adivinhar; mal olhou, ficou logo sabendo. Além do mais, lá estavam, na
terra molhada de sereno, as enormes marcas das patas da onça: era uma das
baitas. Diante dos restos da sua novilhinha, o caboclo se jurou: hoje eu dou
fim nessa danada.
Mal anoiteceu, saiu com sua espingarda
e foi esperar a fera. Abrigou-se num vão da sacopema formada pelas raízes altas
de uma mungubeira, e ali ficou de atalaia. Ah, mas ele estava possuído pela
ira, e a ira é sentimento que pode privar o homem dos sentidos e da
inteligência. Pois não foi o que o Altamirano se descuidou do vento? Escolheu
um lugar entre a onça e o vento, vento que levou para o faro agudíssimo da fera
o cheiro do Altamirano.
Leitor, queres saber de uma coisa? Eu
vou é encurtar a história, porque ela termina triste. A onça veio por detrás,
matou o Altamirano e depois foi beber sua água.
Na vida, por via das dúvidas, a gente
precisa sempre levar em conta o jeito do vento, senão o vento, o vento que é
tão bom, pode se transformar, de repente, num grande amigo da onça.
Thiago de Mello.
Fonte: Letra e Vida.
Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – Coletânea de textos –
Módulo 3 – CENP – São Paulo – 2005. p. 42-43.
Entendendo o conto:
01 – Qual o principal objetivo
do caçador "escovado" ao observar os hábitos da onça?
O principal
objetivo do caçador é aproveitar o momento em que a onça está mais vulnerável,
ou seja, na hora em que ela vai beber água, para abatê-la com um tiro certeiro.
Ele se baseia nos hábitos regulares do animal para prever seu comportamento.
02 – Que precauções a onça
toma antes de beber água, e qual a crença popular sobre isso?
Antes de beber
água, a onça bate de leve na superfície com a pata. Alguns dizem que é para
sentir a temperatura, mas a crença popular da floresta é que ela faz isso para
verificar a presença de peixe-elétrico (poraquê) ou piranhas por perto, que
poderiam representam um perigo para ela.
03 – Por que o caso do
Altamirano é diferente dos caçadores comuns de onça?
O conto esclarece
que Altamirano não caçava onças pela cobiça do couro. Seu caso foi motivado por
vingança e, posteriormente, interpretado como uma questão de amor, devido à
morte de sua novilha Princesa, a quem ele tinha grande afeto.
04 – Quem era Princesa e qual
a relação dela com Altamirano?
Princesa era uma
novilha branquinha, o grande xodó de Altamirano. Eles tinham uma relação de
muito carinho e reconhecimento mútuo, com Altamirano a chamando e a novilha
respondendo com um mugido.
05 – Qual foi o erro fatal de
Altamirano ao armar a tocaia para a onça?
O erro fatal de
Altamirano foi se descuidar do vento. Ele escolheu um local onde o vento levava
seu cheiro diretamente para a onça, que, com seu faro agudíssimo, conseguiu
detectá-lo.
06 – Que ditado popular é
mencionado no conto para ilustrar a imprevisibilidade da caça?
O ditado popular
mencionado é: "um dia é da caça, outro é do caçador". Isso ressalta
que, apesar das estratégias, o resultado de uma caçada pode variar, e nem
sempre o caçador sai vitorioso.
07 – Qual a principal lição ou
moral que o narrador busca transmitir ao final do conto?
A principal lição
é a importância de se considerar os fatores externos, como o vento, em qualquer
situação da vida. O narrador enfatiza que o que pode parecer inofensivo (o
vento) pode se tornar um "grande amigo da onça" se não for levado em
conta, levando a desfechos tristes e inesperados.
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